Do ser de Jacinto
[A FESTA] Jacinto não estava preocupado, talvez inquieto, estava tudo mais que preparado para a festa e a celebração tão especial. O lugar, a hora, os convidados e os presentes, nada descurava a monumentalidade da circunstância bordada a fino para receber a matriarca.
Amanhã chegaria um sábado, não um qualquer, o sábado do aniversário de sua mãe, com os braços estendidos para si, respirando no seu pescoço e na sua cara 80 anos sólidos de bafo quente e fértil, 80 anos de emoções que abarcavam tudo e todos.
O coração batia-lhe descompassado e desenfreado com o projecto. Reveu na memória o restaurante, a ementa, as presenças, as flores, tudo ao pormenor sem que algo lhe sugerisse dúvida ou defeito.
Vinham os irmão que se perderam no tempo, as filhas com a mesma cara da mãe e os netos queridos, desprendidos dessa filialidade não fossem eles ainda crianças virgens daquela força sanguínia.
Quando se reúne a família recuamos no tempo, voltamos aos sentimentos na sua génese profícua e lembramo-nos que amar é isso mesmo, saber recuar no tempo e sentir a pulsão profusa da vida no princípio.
[O PAI] Jacinto não estava preocupado, talvez inquieto, a noite parecia-lhe rastejar lenta pelas estrelas e o dia que a precederia, um amanhã longe e preguiçoso como o sol que não despontava.
Fora roubado a seu pai no crescer, não por este lhe faltar ao amor mas porque quis o destino que através de sua mãe se fizesse ele um menino-homem, o guiassem ensinamentos de um masculino invisível e ficcionado que só ela conheceu primitivo no leito e humanista no coração profundo.
Distantes das matriarcas envolve estes homens, orfãos de pai, uma sombra triste no olhar e a atenção abandonada aos outros - esses que têm viva a vigência do que os explica e determina como são - uma sombra que quando perdida os impele para as mães à procura da cumplicidade feminina que a sua sensibilidade assexuada lá concerta com razão e à procura do perdão para a vergonha pueril que chegam a sentir pela expressão opaca e ambígua da sua masculinidade, como pais que também são.
A noite preparava-o para a perenidade da vida. Cada aniversário que sua mãe fazia era menos um ano que vivia e outro mais que seu pai não cumpria.
Há sempre outros aniversários imbuídos no único que se celebra. Nos mais novos cada um que fazem é mais um que alcançamos como seus pais, mas já nos mais velhos é menos um que nós, os novos, podemos não assitir como o próximo deles que pode não vir.
[A MÃE] Jacinto não estava preocupado, talvez inquieto, o amanhã daquela noite eterna assumia-se perfeito com todas as musas convidadas para um conto vivo com a magia possível e a impossível.
Não conseguia dormir. Levantou-se e foi até à cozinha comer qualquer coisa sem que o satisfizesse o bocado de pão e o chouriço que encontrara.
Voltou à cama e pegou seguro num livro onde linha a linha as letras mais pareciam desencontrar-se e baralhar-lhe a atenção.
Voltou atrás na mancha de texto e a história não era a história que se propunha, era a acção desenvolta e romântica de um passeio junto ao mar pela mão de sua mãe.
Fechou o livro e cerrou os olhos. Não resistiu e pertinente espreitou novamente a narrativa de outrora ao que não lhe encontrou o sentido mas os sentimentos.
Afagou a rugosidade do papel e tomou-lhe o peso e o calor escrito como faria amanhã com sua mãe, quando entre todos os que tinham que estar a abraçasse forte e a apertasse contra o corpo saudoso na procura da mesma solidez vivencial e temperatura narrativa.
Há muito tempo, aquando de seu nascimento, surpreendeu todos por tardio e teve o condão do menino pródigo que reúne todos à sua volta pelo encanto milagroso.
Nasceu pequenino e menino e ganhou da matriaca a magia no nome quando ela o passou a Jacinto.
Amanhã iria reencontrar a magia no colo dócil e protector de sua mãe que nunca ganhou idade como os livros que a lembram sempre, essa que não tem 80 anos porque aos olhos dos filhos elas não envelhecem ou perdem o viço como os livros que lhes testemunham.
Flores, muitas flores, as bastantes que nunca são de mais para Jacinto, a criança nascida tardia e entre irmãos priviligiada com nome de flor frágil como ela.
O menino sensível iria reencontrar a inocência da generosidade que nunca o deixou crescer aos olhos dos mais velhos a não ser na sensibilidade apurada para as letras que o afagam à noite na cama e o inspiram de dia na inércia orfã de pai.
[A FAMÍLIA] Jacinto não estava preocupado, talvez inquieto, esperava-o a mutualidade e a compaixão.
Encontrar-se-iam tios perdidos entre si no tempo espacial mas unidos pela reciprocidade do calor maternal e pela obra da paternidade. Isso que os acompanha sempre e fortifica o vínculo sanguíneo. Quando se abraçam quase se fundem, quase, não porque não o desejem mas porque como nunca se apartaram em sentimento, a saudade da carne os constrange e inibe à comoção.
A família no esquecimento perde o desenho da expressão e a sombra da forma, mas nunca o cheiro e o calor do abraço que dissipa todas as fronteiras e reserva tudo numa memória viva.
Mesmo que quilómetros ou anos nos divorciem da família e nos estrangulem com a ausência, a memória do abraço nunca cai no esquecimento, que esse se existe é para a culpa ou para o que pouco nos importa. A família não está nos desmandos do amor porque este não se esquece, este está na carne viva.
Esperava-o no sábado a família e o princípio de tudo. Afinal 80 anos não eram qualquer coisa. 80 Anos são 29.400 dias a respirar atento à fragilidade dos outros que é isso que as mães fazem: não envelhecem e só nos deixam quando é hora de crescermos para o mundo.
Jacinto parecia preocupado e inquieto, apoquentariam-o os anos que lhe restavam ver sua mãe fazer?