sábado, outubro 30, 2004

Do ser de Jacinto

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[A FESTA] Jacinto não estava preocupado, talvez inquieto, estava tudo mais que preparado para a festa e a celebração tão especial. O lugar, a hora, os convidados e os presentes, nada descurava a monumentalidade da circunstância bordada a fino para receber a matriarca.
Amanhã chegaria um sábado, não um qualquer, o sábado do aniversário de sua mãe, com os braços estendidos para si, respirando no seu pescoço e na sua cara 80 anos sólidos de bafo quente e fértil, 80 anos de emoções que abarcavam tudo e todos.
O coração batia-lhe descompassado e desenfreado com o projecto. Reveu na memória o restaurante, a ementa, as presenças, as flores, tudo ao pormenor sem que algo lhe sugerisse dúvida ou defeito.
Vinham os irmão que se perderam no tempo, as filhas com a mesma cara da mãe e os netos queridos, desprendidos dessa filialidade não fossem eles ainda crianças virgens daquela força sanguínia.
Quando se reúne a família recuamos no tempo, voltamos aos sentimentos na sua génese profícua e lembramo-nos que amar é isso mesmo, saber recuar no tempo e sentir a pulsão profusa da vida no princípio.

[O PAI] Jacinto não estava preocupado, talvez inquieto, a noite parecia-lhe rastejar lenta pelas estrelas e o dia que a precederia, um amanhã longe e preguiçoso como o sol que não despontava.

Fora roubado a seu pai no crescer, não por este lhe faltar ao amor mas porque quis o destino que através de sua mãe
se fizesse ele um menino-homem, o guiassem ensinamentos de um masculino invisível e ficcionado que só ela conheceu primitivo no leito e humanista no coração profundo.
Distantes das matriarcas envolve estes homens, orfãos de pai, uma sombra triste no olhar e a atenção abandonada aos outros - esses que têm viva a vigência do que os explica e determina como são - uma sombra que quando perdida os impele para as mães à procura da cumplicidade feminina que a sua sensibilidade assexuada lá concerta com razão e à procura do perdão para a vergonha pueril que chegam a sentir pela expressão opaca e ambígua da sua masculinidade, como pais que também são.
A
noite preparava-o para a perenidade da vida. Cada aniversário que sua mãe fazia era menos um ano que vivia e outro mais que seu pai não cumpria.
Há sempre outros aniversários imbuídos no único que se celebra. Nos mais novos cada um que fazem é mais um que alcançamos como seus pais, mas já nos mais velhos é menos um que nós, os novos, podemos não assitir como o próximo deles que pode não vir.

[A MÃE] Jacinto não estava preocupado, talvez inquieto, o amanhã daquela noite eterna assumia-se perfeito com todas as musas convidadas para um conto vivo com a magia possível e a impossível.
Não conseguia dormir. Levantou-se e foi até à cozinha comer qualquer coisa sem que o satisfizesse o bocado de pão e o chouriço que encontrara.
Voltou à cama e pegou seguro num livro onde linha a li
nha as letras mais pareciam desencontrar-se e baralhar-lhe a atenção.
Voltou atrás na mancha de texto e a história não era a história que se propunha, era a acção desenvolta e romântica de um passeio junto ao mar pela mão de sua mãe.
Fechou o livro e cerrou os olhos. Não resistiu e pertinente espreitou novamente a narrativa de outrora ao que não lhe encontrou o sentido mas os sentimentos.
Afagou a rugosidade do papel e tomou-lhe o peso e o calor escrito como faria amanhã com sua mãe, quando entre todos os que tinham que estar a abraçasse forte e a apertasse contra o corpo saudoso na procura da mesma solidez vivencial e temperatura narrativa.

Há muito tempo, aquando de seu nascimento, surpreendeu todos por tardio e teve o condão do menino pródigo que reúne todos à sua volta pelo encanto milagroso.
Nasceu pequenino e menino e ganhou da matriaca a magia no nome quando ela o passou a Jacinto.
Amanhã iria reencontrar a magia no colo dócil e protector de sua mãe que nunca ganhou idade como os livros que a lembram sempre, essa que não tem 80 anos porque aos olhos dos filhos elas não envelhecem ou perdem o viço como os livros que lhes testemunham.

Flores, muitas flores, as bastantes que nunca são de mais para Jacinto, a criança nascida tardia e entre irmãos priviligiada com nome de flor frágil como ela.
O menino sensível iria reencontrar a inocência da generosidade que nunca o deixou crescer aos olhos dos mais velhos a não ser na sensibilidade apurada para as letras que o afagam à noite na cama e o inspiram de dia na inércia orfã de pai.


[A FAMÍLIA] Jacinto não estava preocupado, talvez inquieto, esperava-o a mutualidade e a compaixão.
Encontrar-se-iam tios perdidos entre si no tempo espacial mas unidos pela reciprocidade do calor maternal e pela obra da paternidade. Isso que os acompanha sempre e fortifica o vínculo sanguíneo. Quando se abraçam quase se fundem, quase, não porque não o desejem mas porque como nunca se apartaram em sentimento, a saudade da carne os constrange e inibe à comoção.
A família no esquecimento perde o desenho da expressão e a sombra da forma, mas nunca o cheiro e o calor do abraço que dissipa todas as fronteiras e reserva tudo numa memória viva.
Mesmo que quilómetros ou anos nos divorciem da família e nos estrangulem com a ausência, a memória do abraço nunca cai no esquecimento, que esse se existe é para a culpa ou para o que pouco nos importa. A família não está nos desmandos do amor porque este não se esquece, este está na carne viva.

Esperava-o no sábado a família
e o princípio de tudo. Afinal 80 anos não eram qualquer coisa. 80 Anos são 29.400 dias a respirar atento à fragilidade dos outros que é isso que as mães fazem: não envelhecem e só nos deixam quando é hora de crescermos para o mundo.

Jacinto parecia preocupado e inquieto, apoquentariam-o os anos que lhe restavam ver sua mãe fazer?

sexta-feira, outubro 29, 2004

Stress bloguista

Conselhos para o bloguista reduzir o seu stress:
1) Encontrar a solução mais coerente para o problema em questão: consultando informação concreta nos sites ou bloggs idóneos e reconhecidos pela comunidade; procurar ajuda interagindo-se com os seus parceiros da blogosfera; não desistir e insistir até ao fim para descortinar a solução ideal; se falhar resta-lhe construir outro blogg.
2) Comprometer-se com os objectivos estabelecidos e a atingir: possibilitar maior participação nos posts se entender que o enriquece e ajuda à consciencialização do seu papel na blogosfera.
3) Usar técnicas de relaxamento mental que o ajudam a controlar o desânimo ou o pragmatismo exacerbado.
4) Praticar exercícios de construção e desconstrução mental que contribuem para o aumento da sua capacidade de raciocínio e coerência filosófica e que lhe confiram mais resistência empírica e ideológica aos seus conteúdos.
5) navegar na blogosfera e conviver entre bloggs para a partilha de ideias e desenvoltura.
Fonte: O meu amigo bloguista

quinta-feira, outubro 28, 2004

O dicionário

Posted by Hello

Há gente que compra a Lotaria para maior fortuna dado que o emprego não os sacia intelectualmente, a mulher já não eleva a alma e dos filhos é melhor não falar que lhes sobra a continuidade igualmente precária e uma angústia 'encalhada'.
Outros há, mais puristas, que gostam de estudar e montar bem um investimento ou as parcas e tímidas economias.
Vão ao Bingo de um clube qualquer e na companhia do que consideram ser ainda melhor que as loiras de carne e osso - uma loira de cevada fresquinha -, com grande tara desenvolvem e repartem esse capital reunido a custo e distribuído por apostas regidas por uma lógica caseira e espalhadas em cartões depurados à lupa e preenchidos de sequências onde cada número lhes provoca tantas arritmias como o seu valor numeral e real, que só não desfalecem ali mesmo porque o capital nunca chega para isso.
Cá por casa outros valores prevalecem: Não importa o que não se tem porque a abundância serve a ventura dos que aspiram ao intocável e consumado mas pouco se ajusta ao devaneio louco já que a fortuna está para a esperança como um detergente para a nódoa.
Hoje a casa está mais rica sem que de dinheiro se trate. São milhares de palavras e milhões de letrinhas para me atascar.
Sim, ATASCAR-ME, ENTERRAR-ME ou até AFUNDAR-ME naqueles novos SIGNIFICADOS, SIGNIFICATIVOS, SENTIDOS, VALORES, CONTEÚDOS e IDÉIAS.
Vocês não sabem mas cá em casa quem manda é a livralhada.
Governam livros brancos, livros de bolso, livros de cabeceira, livros de colectânea literária e até alguns livros técnicos, que num espaçinho de pinho velho e bem 'entaladinhos' habitam agora na mesma estante e acompanhados do recém-chegado dicionário - novinho em folha mas velho de sabedoria para a riqueza espiritual e literata daquela sala também velhinha.
Não impera ali a ambição à riqueza financeira ou capitalista, que essa não me enche as medidas nem faz juz ao que me doutrina.
Sou escrevinhadora sem pretensões e uma convicta e modesta leitora dos rabiscos dos outros.
Esses sim, tenho-os como os obreiros do meu bel-prazer mais intenso: os que me conciliam com o mundo - às vezes tão feio e anti-saber -, e os que me completam no que os outros não conseguem.
A literatura é, desde muito nova, minha companheira e agora, já mais velha, ela constitui acima de tudo um excelente antibiótico para a contrariedade pessoal e uma arma para o desassossego de alguém que não se esgota na realidade simples e perene das 'coisas', 'essas' que estão à vista e com certeza aquéns da verdadeira fortuna: a poesia viva.

quarta-feira, outubro 27, 2004

Estaria na adega do Barca Velha ou numa película de Wong Kar-wai?

Posted by Hello
Cheguei a casa e tinha o 'meu-mais-que-tudo' - perdoem-me a expressão mas estamos em 'alta relacional' - esse que agora tenho à minha espera no sofá, sorrindo malandro ao fundo do corredor enfiado num belo kimono de seda decorado por motivos campestres que se espalhavam num padrão esverdeado e bordeaux que por sinal lhe assentava muito bem à figura de menino.
Olhou-me com deferência quase presidencial e disse solene que me aguardava na cozinha assim que estivesse mais à vontade, desaparecendo para esta sem que eu tivesse tempo sequer de perguntar "como estás?" ou o que quer que fosse e quedei-me apalermada com aquele visual estranho e o tom sério.
Despi-me, vesti uma túnica branca e mal lhe surgi à porta já ele me pegava pelos braços, arrastava sem força e me obrigava a sentar na mesa da cozinha quase às escuras sem se esquecer sequer de me aliviar ainda as mãos daqueles cigarros que tanto o aborrecem.
Assim que pisei o palco da cozinha e entrei naquele filme rapidamente percebi suas intenções e limitei-me a seguir os seus comandos e alguns instintos pessoais não fosse chocar com alguma coisa daquele cenário.
Um pouco enfeitiçada executei sem falha os diálogos que me estavam reservados naquela encenação toda.
O realizador plantou-me num jardim extenso e sumptuoso de iguarias japonesas que só visto: Tempura de Vegetais regada com sal, limão e gengibre; Obentô de arroz, peixe e pickles e o famoso Sushi que do resto já não me recordo bem tão bizarros eram os seus nomes.
Inquiri-o sobre a surpresa ao que me silenciou com um beijo estupendo - que só ele me sabe dar -, um beijo bestial e afastou-se cerimonioso para preparar o vinho que iria acompanhar o banquete.
Resolvi não o voltar a inquirir (já me torcia o nariz por mais que uma vez) e não resisti mais à dialéctica do argumento limitando-me a observá-lo no trato de meste com o néctar que me esperava, com certeza de excelência.
Já não sabia onde estava, se na adega escura e silenciosa do Barca Velha, se numa película de Wong Kar-wai.
Se acompanhada por um enólogo experiente e doutrinário, se por um verdadeiro samurai trajado a preceito: calças harmoniosas como uma saia e uma jaqueta curta e solta.
Ocorre-me até a analogia tonta de me ver no papel do Senhor que não obriga este guerreiro a trabalhar e apenas lhe permite cumprir seu dever de manter-se em boa forma para combater e defender a harmonia lá de casa - só lhe faltava o sabre e o rabo-de-cavalo.
A ambiguidade revelava-se intensa e perturbadora: ora alquimia de um bom vinho duriense em balão semielítipco 'enfiado' pelas fossas nasais ora a performance minuciosa do baishaku com um cálice de saquê.
Não importava. Era soberbo e digno de exemplo aquele Dom Juan na apreciação do generoso líquido.
Começou por observar a cor e o aspecto do seleccionado tinto: elevou-o à luz das velas - suficientes para iluminar a cozinha mas não em excesso que lhe interferissem na ambiência certa para a desenvoltura romântica que pretendia -, elevou mais, agitou o balão para forçar a efervescência e mirou-me nessa análise sensorial encantado e convencido que estava do que fazia e convencia no meu escarrapachado espanto face a toda aquela 'pinta' de enólogo.
Vaidoso sorriu-me, ao que lhe respondi com uma espécie de beijo lufado de ar. Que figura devíamos nós estar a fazer!!!!!!
Confirmado o deleite pela minha deixa passou à exploração degustativa do suco levando o balão aos lábios secos e até fechou os olhos aquando do gole fatal, a tomada do corpo do vinho que o paladar se lhe apresentava concerteza doce e frutado.
Que tolos devíamos parecer!
Mais exuberância não podia o mestre inventar que logo que terminou a prova sorvendo a preceito o divino, inalou com profundidade de atleta o aroma até as narinas se lhe dilatarem e o deslumbrarem com um brilho de lágrima magnífico no bordo do balão.
Lévi-Strauss sabia bem o que dizia quando há muito tempo chocou conservadores e puritanos com a analogia profunda entre comer e fazer amor.
Ontem na cozinha apaixonei-me outra vez e tão doida me encontrava que só para não lhe fazer desfeita degustei paciente o manjar dos deuses e esperei até à consumação da carne real e do verdadeiro fluido, aquele homem por inteiro.
Estes dois mundos que só aparentemente interagem numa necessidade frugal (a fome que habita o corpo e este que a sacia e a acalma) tocam-se também num profundo erotismo e partilham assim campos de expressão comuns, os sentimentos.
Por mais mitologia barata que se invente sobre o pretenso poder afrodisíaco de algumas substâncias a haver alguma verdade só pode ser a que da ficção se gera e impulsiona para sentimentos verdadeiros, estes sim, reais e mútuos na segurança e tranquilidade para o desempenho afectivo e sexual de dois parceiros depois de um bom petisco.
Ontem na cozinha esperava-me um puro jantar de enólogo pelas mãos de um samurai especial, mas acima de tudo uma noite encantada servida por um amante estupendo e que não pretendo esquecer.

terça-feira, outubro 26, 2004

EUA, o apêndice do Mundo

A continuidade da espécie humana parece ser só um imperativo dos 'pobres e insignificantes' para a sobrevivência da família na garantia da manutenção da mesma estrutura familiar, que a longevidade da vida enquanto valor e património para o futuro esse já deixa muito a desejar, em particular na cruzada dos senhores deste mundo.
Não me refiro aos recursos naturais mas aos suportes da bio-diversidade e aos instrumentos de cidadania da herança filosófica e espiritual dos vários mundos sociais (cidadão = ser social completo).
Da Austrália à Coreia do Sul foram inquiridos milhares de cidadãos sobre a "importância e o impacto do resultado das próximas eleições americanas".
Os sentimentos foram variados e contraditórios mas não deixam de apontar sempre os EUA como a potência suprema e válida para a grande tarefa da pacificação dos homens entre si e no mundo. Não me surpreendeu. Até o cão bem amestrado dá seu dorso ao dono déspota e injusto quando ameaçado e sujeito à violência caprichosa.
A contradição do amor pelo pai que não revela amor continua a ser uma mistério da vida mas mais perturbante é que ao fim destes milénios todos se continue a esquecer na reflexão dos desígnios da humanidade a voz do mais importante elemento activo. Para que possamos alcançar a justiça e a verdade é preciso ouvir o que é que o Grande Senhor do Mundo diz enquanto espaço real e adverso da nossa vontade ímpia?
Assim e num inquérito impossível de conceber não deixámos porém de imaginar o que nos diria esse Grande Senhor do Universo Galático.
Na eleição do próximo Presidente dos EUA, qual dos candidatos mais lhe agrada?
- Essa pergunta não tem resposta. É a mesma coisa que me perguntar se prefiro um inimigo disfarçado ou se um declarado, mesmo sendo meu flho.
Conheci há muito tempo um homem que adiantou à sociedade importantes teorias filosóficas e humanistas que hoje os estados mais modernos e avançados podiam já contextualizar e verifico que ainda estão longe desse visionismo. Frederico da Prússia defendia que a força de um "Estado não assenta na expansão do seu território mas na riqueza biológica dos seus habitantes e na força humana que a sua multidisciplinariedade constitui. A obra de um verdadeiro estadista consiste em tornar o seu país florescente e não devastá-lo ou destruí-lo".
Enquanto John Kerry é um empresário influente e bem sucedido já George W. Bush tem um passado político que pode avaliar. O que acha dele?
- No meu entender um verdadeiro governante deve ser um guerreiro que depois de conquistar a terra - partindo do princípio que teve razões justas para fazer essa guerra e consequente tomada - deve ser honrar e libertar essa nova-democracia como a que o legitimou nesse acto violento. Deve a seguir conceder-lhe a mesma automonia ao invés de suceder em tirania assentando praça e firmando perversamente estratégias e alianças corruptas e oportunas para não conceder a esse povo o gozo da nova liberdade de que foi pai e empreendedor.
E John Kerry?
- A diferença até ao momento é que George W. Bush já tem um cadastro presidencial - e quero mesmo dizer chamar-lhe negativamente cadastro -, enquanto Kerry não. Os EUA têm menos de 600 anos de existência e as suas fundações não são as mais nobres. Um povo que ainda hoje conquista e coloniza como se tudo tivesse de dominar, como esse tempo não tivesse fim e existisse para isso como propósito em si, é um povo que demora a crescer e só se desenvolve para si próprio, o que resulta necessariamente na sucessão de outros tantos indignos governantes e monstruosas acções.
Então não tem a sociedade americana como o melhor...
- Cá em casa todos são iguais. Talvez fosse pedir demais a um pai...
Até um pai intervém a dado momento na vida de um filho que se mostra pouco ajuizado.
- Um pai intervém mas sabe de antemão que há idades em que o ouvem e outras que lhe dão somente essa ilusão. O que tenho tentado ensinar-lhes é que não há evolução sem paixão. Quando somos moderados impera a felicidade e o consenso entre todos. Mas se os reprimirmos então eles transforma-se em sujeitos de acções nocivas, até para si próprios, por despeito. De todos os sentimentos o amor é o mais forte. É o que gera e o que rouba o sopro da vida. A paixão pelo governo das coisas e dos outros se é sublimada transforma-se numa ambição desregrada e num desejo excessivo de reconhecimento. Dela só pode vir a falsa glória.
Refere-se ao Iraque?
- Iraque, Paquistão, Líbano. Infelizmente já lhe perdi a conta.
As mazelas devem ser muitas que quanto mais velhos somos mais fragilidades coleccionamos. O Senhor tem, se não me engano, 192 filhos mal-afamados que não têm sido muito fáceis.
- É verdade. Tenho muitos filhos mas grande parte deles têem-me dado muitas dores de cabeças e esses 192 andam à bulha desde que nasceram. Os EUA é o mais forte e tem tido uma visibilidade na família de que não me orgulho muito, o que nos leva outra vez à paixão. Se não houvesse mais que o crime o género humano seria destruído. Não há segurança e paz entre os homens sem a virtude do amor desinteressado, mas também não se evolui sem competição.
O que nos leva para o terrorismo, uma das grandes bandeiras americanas...
- É o mesmo que ferimo-nos com a arma que nos foi dada antes tão-só para nos defendermos e aos outros. Quando uma criança cresce separada dos seus irmãos individualiza-se em valores que podem ser contrários aos dos seus irmãos. Mesmo que em crianças não se cruzem, nada impede que venham mais tarde em adultos a confrontarem-se por ideologias diferentes e nem o factor de consaguinidade lhes amansa a ira. É triste ver meus filhos a degladiarem-se uns aos outros mas não é razão para eu ser parcial. Sou tolerante e tenho a esperança de que até os EUA que praticaram o genocídio sangrento e se consolidaram assim como nação cresçam um dia. Os EUA sofrem hoje da parte dos seus irmão árabes da mesma aberração desumana que encetaram no seu passado.
Nunca me hei-de esquecer dessas imagens. Estava em casa em ambos os dias quando vi Hiroshima ser bombardeada e quando todas aquelas pessoas se atiravam desesperadas das janelas das Twin Towers.
Contudo os EUA são respeitados mundialmente.
- Claro que são. Não há meio mais eficaz para conservar o poder e a supremacia estratégico-política senão o de destruir o outro, mesmo que conquistado legitimamente pouco antes. É o truque mais velho do homem para conter a revolta: exercer pressão de forma a instalar o medo.
Por outro lado é o mesmo país que tem assegurado o respeito por alguns dos acórdãos de paz mais importantes...
- Os EUA apesar de tudo vão crescendo e aprendendo que também ficam a ganhar com a concórdia e a autonomia de algumas nações.
O que destingue o mercenário do soldado é o estilo nobre da sua acção. O acto violento e desumano é igual só que o mercenário é um contratado - pago para agir cegamente - e o soldado tem a legitimidade do mando político. O mercenário é abjecto e o soldado corajoso e ilustre porque comandado pelo poder. Os compromissos e as alianças secretas que ainda hoje vingam na comunidade internacional, não permitem aos EUA analisarem as causas pelo seu justo valor: admiram nuns o que condenam noutros.
Até Portugal, um dos meus filhos menos militarizado, foi para o Iraque em cumplicidade com o irmão.
Integrado muna missão de paz e não num acto deguerra. Nada nos garante que amanhã o terrorismo não chegue a terras lusitanas...
- Claro. Esse é o argumento falacioso que se usa para se convencer. Mas ainda lá estão não é? Em vez de irmos embora e permitir àqueles cidadãos oprimidos escolher o seu libertador.
O triunfo sobre o terrorismo seria começar cá por casa e desenvolver nos meus filhos o gosto pela liberdade da escolha política, cultural e religiosa.
Isso sim, reconheço que como pai não tenho conseguido o convencimento à glória verdadeiral, a da liberdade total de uns para os outros como a verdadeira dádiva de um verdadeiro estadista. Não é fácil com tantos filhos...
Mas não é bem a abordagem dos EUA. Primeiro eles vêem salvar-nos e depois...
- Eu só posso tomar o partido das humanidades frágeis e escravizadas, o que me confronta às vezes com alguns dos meus filhos. Costume dizer-lhes que não é menos criminoso chegar, salvar e depois instaurar políticas de domínio só para aproveitarem-se dos despojos - como enfraquecer e cercar o mais fraco para usurpar o seu petrólio. É terrorismo também. Talvez tenha mimado demais alguns deles...
Vejo que não aprova então a política económica dos EUA...
- São políticas perigosas que dissimulam a hegemonia ambiciosa dos seus estadistas. Acha prudente mostrar aos homens como se pode ser faltoso na palavra? Se vendem a boa-fé, o juramento honesto, que garantias há quando se estiver livre? Haverá a mesma fidelidade à autonomia financeira e económica da nova nação. Não será no mínimo suspeito esse libertador?
A primazia do humanismo enquanto valor único perdeu-se para os economistas do mundo que já foram grandes de paixão e são hoje pérfidos por ambição.
Estou sempre a dizer aos meus filhos que a verdadeira felicidade está pouco ligada à fortuna, porque não há dignidade para o homem senão no homem em si mesmo e não é o poder económico mas a sabedoria vivenciada na história do próprio homem que o faz descobrir-se a si como o verdadeiro tesouro.
Parece que vamos dar sempre ao mesmo: democracia, economia, cultura, etc. Uma panóplia de falsos valores...
- É a lógica moderna e funcional: para se dominar politicamente é preciso ter poder económico e para manter este é preciso dinheiro. Como para isso é necessário arranjar bens e para os ter é preciso produzi-los ou (se não se quer) tirá-los a quem já os tenha, então rouba-se e a seguir extermina-se o oponente para gozá-los em segurança, não vá a revolta tomar lugar. Cá em casa já se funciona assim há milénios.
Ainda não falámos da influência.
- Nada é mais sedutor e irresistível que o mau exemplo para os meus filhos ainda homens jovens. Há qualquer coisa de contagioso no poder, é qualquer coisa que se transmite de espírito em espírito, de forma epidémica.
Todas as virtudes levadas ao excesso degeneram em vícios. Agora some-lhe a memória curta e surda tão típica da humanidade e imagine o que dá...
Sabemos o que ela ambiciona e que há poucas virtudes que a façam resistir ao poder ilimitado de satisfazer os seus caprichos e ganhar dominância sobre os outros. É para isso que se vive nos dias de hoje. A influência é o que liga os mundos sociais entre si, seja em parceria, seja em má-fé.
O que é que os EUA têm de bom então?
- Muita coisa também. É uma sociedade avançada e na vanguarda do progresso, mas terá nos próximos séculos sempre a mácula do oportunismo e da corrupção.
Ela própria, a sociedade americana, sabe que os triunfos de uma nação não são feitos com as ideias do seu estadista, mas com as suas acções, essas sim, fazem-nos orgulhosos e mais fortes.
Se hoje tivesse que pôr um filho fora de casa qual escolheria?
- Neste momento os EUA obviamente. O que é faz quando tem uma apendicite?

segunda-feira, outubro 25, 2004

Mulher de 2ª (II)

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Cada um tem o que lhe importa alcançar...

domingo, outubro 24, 2004

Mulher de 2ª (I)

Há homens que desistem do casamento enquanto arquitectura pessoal de afectos por eleição e divorciam-se de sua mulher, parente directo e priviligiado, o ente ideal para a manutenção desse lado da vida, obra única e da responsabilidade de cada um.
Há os que se inscrevem em academias de ginástica de onde só saiem rotos e enganados pela vitalidade que já não têm e que recusam em reconhecer e há os que se inscrevem numa panóplia de novos cursos que vão desde artes "pseudo-mediúnicas" de relaxamento a duvidosos fóruns de "reflexão para uma vida nova" orientados por outros duvidosos representantes de um Alá qualquer que os ajuda no "reencontro do novo 'eu' e 'da luz divina'". Todos filhos de um Deus menor que nunca ninguém viu e dos quais nunca chegamos a entender para que servem nem o que querem que como pupilos iluminados alcançemos.
Um desperdício a meu ver. Tomam-nos tantas horas em lume brando que só no fim é que as contamos e percebemos que pouco mais fica que um jeito aluado e espiritual para estranharmos os outros porque não evidenciamos conhecimentos novos e muito menos pachorra para explicar a utilidade daquilo tudo, que nós próprios não chegámos a descortinar.
Das novas escritas-criativas que não passam do culto ao autor já mais que reconhecido, até à violência perpretada no corpo que chora inútil face à exibição perante jovens atletas e frescos que invadem a marginal de Belém, o que é mais perturbante é o que esses homens deixam de fazer com suas companheiras do que propriamente o fruto indifinido dessas ocupações novas e às vezes abstractas que os levam tanto tempo para longe de casa e dos seus.
Eu, ao contrário de alguns amigos, do mesmo já não me posso queixar.
Filhos, esses não os fiz e os que o meu 'mais-que-tudo' trouxe com ele poucas vezes me acompanham que por mais que me esforçe mãe é mãe e eu - mesmo que me voluntariasse - seria sempre uma mãe de 2ª.
Mãe e mulher de 2ª porque ensombra-me esta cruz da insegurança masculina: se hoje estou com ele foi porque a 1ª, a escolhida "até que a morte os separe", a primeiríssima de todas, "a mãe dos seus filhos", essa falhou e por melhor desempenho que tenha com este homem com quem quero ir longe, mesmo para este, serei sempre a segunda - aquela a seguir à 1ª que ele nunca saberá porque deixou de ser a dele.
Claro que não é só desvantagens: a "outra", a amante, a de 2ª, e tudo o mais com que gostam tanto de nos ferir os ouvidos é sempre a 'ilegítima-apostólica-católica'.
Contudo vale-lhe o estatuto histórico da incondicional, da amiga, da desinteressada e da companheira acima de tudo. A que não tem que se obrigar a nada por sobrevivência ou protocolo familiar a não ser mesmo estimar seu parceiro no tempo e na medida que ambos desejem - e não importa se é a segunda ou a sexta, porque a partir da "mãe dos seus filhos e da nora para os pais" qualquer uma serve porque nunca foi a primeira.
Sem este peso tentacular do matrimónio "sideral" como lhe chama Chico Buarque acabo por beneficiar de uma vida sem esses eixos familiares que me censuram e constrangem as prioridades, sou livre com quem entendo ser o objecto do meu amor.
É vantajosa a opção de não fazer filhos. Temos a total disponibilidade para o que nos aprouver de melhor e mais apetecível para fazer e desfazer com quem queremos.
Cada um tem o que lhe importa alcançar...

sábado, outubro 23, 2004

O Devir do Amor (II)

Poetas do mundo, exército corajoso porque não há como multiplicar e exacerbar o amor do devir - sentimento virtuoso - sem nos despojarmos do que nos prende à mera existencialidade e à vivência lógica, sem suicidarmo-nos do entendimento básico e civilizacional do Homem e nos rebelarmo-nos contra a ilusão da afinidade ao comum. Essa abstração por natureza dúbia que assenta em como cada um toma esse espaço em vez de como cada desses o alcança e o interioriza na sua imortalidade.
Só com violência de talhante é que alcançamos essa transcendência, esse magma vivo e servil da líbido e de Eros, paternidade que consagra a inocência do devir e nos suaviza a rudeza dos instintos primitivos.
Nestes tempos que habito, porque o devir passa incondicionalmente pelo vivir dos outros em nós,
choca-me o imediatismo sensasorial e a economicidade das intenções generosas. Elas menosprezam a obrigação da reciprocidade, enfraquecem a confiança no impulso e cercam a força da revolta ao servil funcionalismo que só os poetas sabem ser o passo para a obra maior: o amor ao próximo, não o da gratidão servida a fria mas o da filialidade que desenvolve a relação profunda entre entes.
Para o poeta não chega acolher a graciosidade luminosa do que o exterioriza e perturba, antes impera que se dispa e chore o corpo e a mutualidade nele atenta que sabe que o amadurece e o faz desenvolto de justiça porque é aí que o tempo envelhece, firma-se no testemunho sábio e não se esgota de memória vivenciada.

Aqui o tempo é córporo e espaço de conciliação com a fragilidade desse 'eu' que lhe sublima os sentidos para a poesia poder brotar de suas mãos.
O poeta é o médium das emoções e reencarna o desassossego do homem infinito e uno a quem o Belo alimenta como Natália Correia tão bem exortava:
“Esfomeados do sonho, comei a poesia!”.

Qual poetiza vinga a doçura do ventre rasgado pela criança se não aquela que cumpre também o sofrimento de dor do próximo?

Tenho na palavra escrita a castidade e a perversão dos sentimentos consumados pelo homem, esse a inspiração e o código para a revelação d
o amor. Tenho agora esse homem comigo, estabilizador de afectos e impulsionador enérgico na fruição microscópica do mundo dos afectos que na literatura se me proporciona em todas as suas verdadeiras dimensões.
Herdeiro de meu templo paterno é mais que benfeitor, é o alimento da vontade do devir, é a razão que amansa a contrariedade - mãe do desasossego - é quem pacifica os outros em mim e me esgota feliz para os mesmos.
Hoje vive em mim e amanhã, num tempo e lugar longínquo, sei poder encontrá-lo na sedução pelo sedutor, no deleite interior pela história cumprida de mais um amor e
no maravilhoso alcançar de outros novos que me procuram para a ternura e a fome desse devir, porque urge estimar para se ter o gosto da virtude e o sabor do desejo.
Une-nos mais que a intimidade, essa foi a casa que construímos. Alimenta-nos a mutualidade e nele encontro a fonte para a espiritualidade na vida, para o amor incondicional que me oferta a plenitude do corpo e ilumina o espaço córporo da poesia nos reencontros com os sentidos.

quinta-feira, outubro 21, 2004

O devir do Amor (I)

Na blogosfera só se verifica a 1ª pessoa do verbo quando o tema aborda frivolidades, paródias ou temáticas específicas. A outra faceta do blogue - um diário vivo e dinâmico - a pós-modernidade rejeitou-a por constrangimento à exposição pública mesmo que em anonimato e tomou o seu lugar a retórica da confissão empírica e pouco erudita que hoje assume pouco mais que exorcismos de uma análise da realidade global e subjectivizada ao gosto do universo particular do blogger que a canaliza.
Já na literatura perpetua-se e prevalece numa estética única de linguagem onírica por excelência e o alfabeto mais genuíno do diálogo emotivo e civilizacional: o homem com o homem; o corpo espiritual do ser revisto no impulso primitivo e na violência do afecto que é inversa à socialização da humanidade.

São conhecidas e justamente elevadas à erudição máxima várias obras conhecidas como "Cartas"; "Poemas" ou "Confidências".

- Pessoa
singularizou-se em heterónimo para Ofélia e nos que mais pôde tão mutantes eram as suas contrariedades:

(...) As cartas de amor, se há amor, / Têm de ser ridículas. / Mas, afinal, só as criaturas que nunca / escreveram cartas de amor é que são ridículas. / Quem me dera no tempo em que escrevia / Sem dar por isso cartas de amor ridículas. / A verdade é que hoje / As minhas memórias / Dessas cartas de amor é que são ridículas (...)


- Natália Correia
orgulha-nos na ovação e homenagem ao amor puro que dói com violência física:

(...) Segura no infinito a carne aberta / Atrai o sangue que corre para a verdade/ Procurando na jóia mais secreta / Do corpo a inicial da eternidade.

(...) Langues e lívidas esfolham-se então nos corpos / estrelas caídas no trono da loucura. / O sangue enrosca-se e faz sair dos poros / Um fumo de almas que mastigam nuvens.(...)

- Mariana Alcoforado
é suspeita de cometer a proeza de transformar a religiosidade freirense na candura do amor apaixonado:

"Estou viva, infiel que sou!, e faço tanto para conservar na minha vida quanto para perdê-la. Ah!, morro de vergonha. Meu desespero estará então só nas minhas palavras? Se te amasse tanto como mil vezes te tenho dito, não teria já morrido há muito tempo?"


- Eugénio de Andrade
assume-se o
“poeta do corpo” e vocaciona a plenitude da vida e dos sentidos para o âmago da sua inquietação:
"As palavras que te envio são interditas. As palavras que te envio são interditas até, meu amor, pelo halo das searas; se alguma regressasse, nem já reconhecia o teu nome nas suas curvas claras. Dói-me esta água, este ar que se respira, dói-me esta solidão de pedra escura, estas mãos nocturnas onde aperto os meus dias quebrados na cintura. E a noite cresce apaixonadamente. Nas suas margens nuas, desoladas, cada homem tem apenas para dar um horizonte de cidades bombardeadas".


- Sophia de Mello Breyner
liberta o amor de enredos circunstanciais e deixa como legado a simplicidade fotográfica do amor na poesia:

(...) Não pelo meu ser que só atravessei / Não pelo rumor que só perdi, / Não pelos incertos actos que vivi, / Mas por tudo de quanto ressoei / E em cujo amor de amor me eternizei.(...)


- Augustina Bessa-Luís
choca na eleição das vozes interiores que exorcisam o amor visceral e anti-normativo, este arma erótica e déspota para o caminho ao sublime sub-humano:

(...) Dá má sorte defendidos / Os homens de bom juízo / Têm nas mãos prodigiosas / Verdes garras dos sentidos. / Não quero cantar amores / Nem falar dos seus motivos (....)


- Lembro-me das palavras, pelo 100º Aniversário dos Descobrimentos Portugueses,
de Pêro Vaz de Caminha, dessas belíssimas crónicas da chegada a Vera Cruz e de pela primeira vez sentir a beleza atroz e o encantamento que nunca conheci em escritos tão antigos e apaixonar-me ainda hoje pelas descrições dos selvagens que com intensa cordialidade os recebiam tão afáveis quanto orgulhosos eram as suas vergonhas que desnudavam:
"A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura, e é-lhes indiferente cobrir ou mostrar suas vergonhas. E procedem nisso com tanta inocência como em mostrar o rosto...
E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha, que ela não tinha, tão graciosa, que as muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhes tais feições, fizeram vergonha por não terem a sua como ela. Nenhum deles era fanado, mas todos assim como nós."
[...]

quarta-feira, outubro 20, 2004

«Já comeu tudo menino?»

Quando a brasileira chama o homem de menino está o caldo entornado. O táxista coça o peito que nem cão que cata pulga e o executivo aprumado ajeita o fato não vá o colarinho saltar-lhe.
A 'beleza' vem do país quentinho e onde do velho ao rapaz-menino ninguém poupa a frescura ao corpo com trajes bem diminutos a qualquer sol e em qualquer lugarzinho.
A 'carioca' está para a 'belezura' bronzeada de Copacabana como o pauliteiro para Miranda do Douro. Ainda não tem fórmula científica mas estes encalorados ganham-nos aos pontos em simpatia e fervor no que toca à verdadeira e expontânea atenção.
Cruzem-se de manhã com a Dinorá e ela voz diz «bom dia, tudo bem com vocês?», sem que toda a sua face sorria calorosa da boca atrevida às orelhas decoradas.
E se for uma 'mulatinha'? Ela não lhe fica atrás que aquele corpo de anca reboliça bamboleia sempre qualquer coisinha.
A portuguesa, essa não tem piada que acorda já mal humorada com a fila para o autocarro e nem sequer tem aquele jeito british que lhe disfarça a azedura, pois não é que ainda mal acabou de nos encarar e já está olhando para outro lado que pressa é sempre o que tem e o que só parece conhecer como o White Rabbit.
Pois é, Não sei se é o calorzinho mas só a 'carioca' e a 'mulatinha' é que transpiram doçura e malandrice e se por acaso alguma delas trata o homem de menino está o caldo entornado. O homem estremece que nem termóstato de frigorífico, abre bem o olho tímido e até se esquece do salário mingando e arranja um sorriso que dá gosto ver.
Não sei o que ele vê na menina mas parece bom de viver. Venham pois 'cariocas' e 'mulatinhas' - gente quente e desinibida - para encantar e mimar o português que ele é cinzentão e infeliz sem saber bem porquê:
"Eu faço samba e amor até mais tarde / E tenho muito mais o que fazer / Escuto a correria da cidade, que alarde / Será que é difícil amanhecer? / Não sei se preguiçoso ou se covarde / Debaixo do meu cobertor de lã / Eu faço samba e amor até mais tarde / E tenho muito sonho de manhã"
Chico Buarque

terça-feira, outubro 19, 2004

40.000 desabafos

Contabilizaram-se 40.000 pessoas, cidadãs deste Portugal de pequeninos, nas assistências aos trabalhos parlamentares em São Bento mais ou menos nestes ultimos 13 meses.
Quantos mais não significariam estas almas atentas e vozes deste povo tão desconsiderado se tivéssemos os verdadeiros instrumentos de participação democrática neste 'emirado de faz-de-conta' de Pedro Santana Lopes?

segunda-feira, outubro 18, 2004

O carteiro


Posted by Hello O carteiro tocou-me à porta, fê-lo com irritante estridência como só me apercebi que faz há 4 anos. Visita-me bem cedinho armado com um timbre de aço que a campainha é velha mas ainda vigorosa e certeira com que me violenta o repouso difícil e o descanso desesperado que combato com as insónias que teimam e julgam-se rainhas.
Hoje veio e acordou-me feroz como nunca o senti, mal adivinhava ele que me escondia do 'Fígaro' alegre pela rua de Amadeu de Souza Cardoso, que me envergonhava por saber que nos tinha visto em alegria e agora mirava do alto alguém triste por abandono e que não conseguia encarar os 'Amantes' de Klimt que se deviam rir de nós, loucos, que tão depressa tanto nos fundíamos a amar como nos apartávamos formais sem que motivo maior que esse amor houvesse para se impôr.
Quando o carteiro me visitou não encontrou o amigo de Pablo Neruda mas a mim consumida pela tristeza e angústia e em carpir palerma e contrariado pois nosso acordo nupcial era amar sem futuro, para não poder chorar o passado porque o presente só tinha o espaço da memória efémera.
Arrastou-me de um combóio vazio que apanhei assim que me deixás-te nestes lençóis já frios e que me levava por um vale muito seco e quente, onde nem meu pai pintado à cabeçeira me alcançava e resgatou-me da viagem que desejava desesperada por não ter fim.
Abri sem vontade os olhos e vi um tecto, uma parede vazia, outra parede vazia encostada a arcas velhas e entediadas e um corredor estreito e melancólico mais vazio ainda onde só me esperava o trinco preto e gasto para tocar e como sempre ninguém aparecer.
Fecho os olhos pretos de perdidos e deixo-me ficar na cama fria do teu sumiço. Quero continuar naquela viagem essa já mais parecida connosco, vibrante, quente e aconchegante.
Insistiu o estranho, resisti saudosa, teimou a campaínha e desisti do quarto, do Fígaro, dos amantes e até de meu pai que gostam de mim mas que como o carteiro não sabem que os ignoro porque só quero voltar a apanhar aquele combóio quente e abandonar-me naquela carruagem porque nunca me escreveram, nunca me trouxeram as novas dos meus velhos para esta solidão de quatro paredes onde só nos sonhos me visitam e me trazem à porta o amor e a palavra.
Escondi-me nos lençóis, abraçei o teu corpo entranhado na almofada e acordei naquela carruagem luminosa só que desta vez viajava comigo o carteiro para me entregar uma carta - a da tua ausência.

domingo, outubro 17, 2004

Há gente mais feliz que eu...

Há gente mais feliz que eu... Não, não é pelo dinheiro que não tenho, pelo borracho d'caraças que vive comigo ou pelo MG que estaciono à porta do casarão de vos deixar de boca descaída.
Não, não é por nada disso, que não sou exactamente um pobretanas, que gosto da velhota que escolhi para minha mulher e o 'chaveco' que tenho no beco lá para a Damaia faz já 16 viajados anos de que me orgulho.
Mas há uma coisa que me deixa doente e danado para burro. Tenho manhãs que chego ao trabalho a mandar tudo à fava, se puxam por mim é claro, e ainda mal começei a jorna lá na Câmara e já tenho um dia de cão à minha frente.
É que há gente concerteza mais feliz que eu pela simples razão de que não vive há 12 anos com uma poia à porta de casa!
Uma digna de escultor e magistral poia! POIA HUMANA, CARAÇAS...!
Considero-me um tipo porreiro e, se for preciso, solidário no que tiver de ser para com aqueles que nada têm e nada podem.
MAS O ESTUPOR DO VADIO TÊM QUE FAZER AS SUAS INVESTIDAS SÓ À MINHA PORTA? E AS DOS OUTROS? MAS AQUELAS ÁRVORES LÁ DO LARGO À FRENTE DO BINGO NÃO O SEDUZEM MAIS PARA ESSAS NECESSIDADES?
Percebem agora porque é que há gente mais feliz que eu...
Imaginem-se sair de casa para trabalhar e mesmo antes de verem o que quer que seja atropelarem uma coisa destas sem que possam desviar-se que a minha entrada foi feita por qualquer pato-bravo, de certeza, que o caixote de lixo nem passa pela porta, quanto mais um salto acrobático de grande mestria.
Eu até desconfio que o gajo deve ter sido um arquitectas qualquer, POIS NÃO É QUE AQUELA INTERVENÇÃO CABE PERFEITAMENTE NAQUELE DESNÍVEL DA LAJE NA MINHA PORTA!
Ou seja, há anos que saio todos os santos dias, às mesma santas horas, para o mesmo santo empregozinho E NÃO É QUE O SACANA DO VADIO CONSEGUE AINDA HOJE ENGANAR-ME COM AQUELA POIA TODA NAQUELE BURAQUINHO!!!!!

sábado, outubro 16, 2004

O templo das virtudes

Meu amigo bloguista telefonou-me todo entusiasta para partilhar a coincidência feliz - no seu entender - de que se sentiu progenitor:
- Já reparaste bem no teu blogue?
- No meu
blogue? Como assim?
- Se desconstruíres o teu blogue achas o mesmo sentido e a mesma ideia. As probabilidades de na (des)construção de uma palavra (frase) inteira gerar o mesmo, sem que lhe ponhas outras mais, são muito remotas sabes?
- O que é que descobristes?
- Repara:
"bocadosdegente.blogspot.com" reúne o mesmo que bocados da gente, percebes? Bocados como fracçã0 de um todo que é a gente só pode dar "bocas" da gente num blogue. Simples não achas?
- Sim senhora, é mesmo simples!
[Deu-se a fatalidade que ando muito a rasar a pieguice...
A insignificância ficional e orfandade de DNA conceptual do bocadosdegente.blogspot.com declarou-se e remeteu-me para um vazio existencial que me desfez qualquer réstea de estima. Afinal quem é este bocadosdegente?
Quando me leio não sou eu é o que os outros dizem de mim e o que os outros dizem de mim não sou eu, esse que nem sequer encontro porque como não o sou não sei o que procurar quando me leio.
Não escrevo o que sou mas o que os outros dizem de mim e afinal quem sou eu? Eu sou o vazio individual e estou algures nesse colectivo dos outros. Não sou gente que chegue para ser alguém mas faço parte da gente que ouço nos outros. Se não sou ninguém e sou para outros resta-me o conforto ambíguo de poder pensar que não existo "eu" mas serei sempre "alguém" no lugar que os outros têm para mim.
Ao contrário do que o meu amigo bloguista diz achar, a mim não me parece simples. Como posso então quebrar aquele feitiço terno e a humildade encantadora das palavras do meu amigo? Não posso claro! Aliás, não devo por razões de generosidade mais que evidentes.
Esta voz sábia e lúcida que nunca me esquece e menospreza é o único porto de abrigo da simplicidade e modéstia para o meu blogue e para mim que o estimo.
Se quisermos - assim mo ensinaram - tudo pode ser simples, até a própria língua apesar de complexa e multiplamente significada não deixa de se apresentar clara e simples se bem usada para o entendimentos dos outros.
Para aquela alma terrena tudo é linear. As pessoas são simples e o que se quer da existencialidade também o é (poucos são os excêntricos e diabólicos).
Como lhe dizer que tudo é simples enquanto a consciência não o desvirginar e que as pessoas são simples porque as vemos de fora e as ignoramos perversas? Talvez possamos viver simplesmente se só nos respirarmos, se só nos materializarmos na nossa frugalidade. Talvez assim não tentemos o pecado ou desejamos a vã glória de mandar.
Se meu benfeitor insistir no virtuosismo e nobreza do Bocadosdegente este começa a parecer uma peregrinação intelectual ao templo das virtudes: simplificar, simplificar, simplificar, simplificar....

sexta-feira, outubro 15, 2004

Amor e uma cabana

"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades..." diz o ditado mas não deixa de ser curioso que a representação desse amor perfeito - a Vontade - seja, mesmo nestes Tempos Modernos e funcionais, sempre ilustrada nessa imagem idílica de uma cabana.
Já repararam nas brochuras das agências de viagens e nos ambientes que elas sugerem para esses momentos tidos como únicos? Constata-se, das Canárias à Ilha de Sumatra, o recurso à encantadora cabana na ilha e lá dentro, bem pequeninos, dois elementos suspeitamente em acções de amor fecundo.
Viver o amor só com uma cabana, mesmo em período de férias, é coisa que já não existe meus amigos!
Para o mortal comum é lirismo inatingível senão mesmo uma aberração para outros que descobriram essa coisa estranha da vivência celibatária do afecto conjugal: Amo-te; Amas-me; ora na Minha casa, ora na Tua.
Como ‘se enrolam’ estes amantes quando apanhados desprevenidos pela gana desesperada da paixão quanto cada um está no seu poleiro? Talvez saiam a correr para o Metro na esperança de ele(a) não ter feito outro programa ou talvez sejam inteligentes e se lembrem de recorrer à potencial tecnologia sonora e visual que os telemóveis de última geração nos oferecem:
- Joana!? Sou eu e preciso de mimos (já em estado semi-nu e direccionando o visor do telemóvel para o corpito).

- Hum!!!! Que saudades Pedro! Aproxima o telemóvel Pedro, aproxima mais, aproxima mais lá para baixo...
Não se choquem com a alusão aproximada à das películas pornográficas mas convenhamos que entre um bom filme erótico e um (tele)encontro personalizado a diferença não é muita...
O que podemos fazer numa cabana tosca de troncos, onde só nos entra frio para as ‘partes’ e apenas nos oferece o (des)conforto daquela palha seca e infecta de parasitas que só dá coçeira?
O que fazemos sem uma televisão, um computador, um telemóvel ou aquecimento central?
Pouco. Parece muito pouco não é?
Manda a tradição que nos amemos simplesmente em solidária mutualidade e dedicada estima.
Mas tem de ser à Robin Crusoé? É preciso comer da mesma panela, fingir que gostamos que nos lavem o rabo ou de dormir apertados e sufocados nos braços um do outro que amanhã não aguentamos o corpo amachucado e ressentido?
Vem isto a propósito do meu homem, esse ‘tipo’ bestial que arranjei, e que como já depreenderam, contenta-se com muito pouco.
Ora, daqui a uma semana esta inspiração entra-me pela porta adentro para um jantar especial - dado que andamos há dois meses a arrastarmo-nos melosos por restaurantes - jantar esse recheado com marisco grelhado e um soberbo champanhe que me custou uma assinatura da TV Cabo. Concebida e posta a mesa defrontei-me com o drama estrutural da 'coisa', o essencial: A CABANA!
Vivo presentemente num ‘espécimen’ de 1854 e imóvel de valor patrimonial reconhecido que goza de parentescos com Eça de Queiróz - ao meu lado vivia a sua famosa e progressista amiga que o terá inspirado para o "Primo Basílio" - e umas aventuras delirantes de rusgas por parte da PIDE que até em fuga os resistentes passaram aqui pela minha cozinha.
Muito interessante e depois? Por mais historial que arranje não tenho como distraí-lo das evidências da velhice decadente e do modernismo que não chegou cá a casa porque a vida não está para isso!
O que é que eu faço com o buraco de 2 metros no tecto do quarto, que já foi sala note-se, herdado na última infiltração e para o qual a minha administração pelintra não tem orçamento para arranjar? E aquelas janelas da sala que cada vez que abro se desfaz logo mais um bocado de parede? E a porta da casa de banho que não fecha tal é a cedência das paredes destes anos todos?
TENHO UMA SEMANA PARA ARRANJAR UMA CABANA, QUE O AMOR ESSE JÁ CÁ MANDA!

quarta-feira, outubro 13, 2004

A cigana

Para apaziguar a fome vale tudo o que estiver ao alcance e nas mãos dos que se entenderem infalíveis. Em questão centra-se um casal ou um presumido “par” igual a muitos outros - que as aparências não fazem matrimónios. Àquele casal vingou a inocência da criança com a ingenuidade crucificada em manobras comerciais, vocacionadas por sua família, concerteza, nessa entidade que sabem miticamente desprovida do mal e exlusiva da graça.
Era negócio à partida garantido, não se tratando, asseguro, de apelo ao miserabilismo ou à violência vivenciada, nem à caridade de urgência duvidosa mas à mera invocação da singela imagem clássica e da pureza de uma criança que nos deixa rendidos porque convencionou-se alma incorrupta, dócil e frágil aos sentidos.
No restaurante já pouco ocupado entrou uma criança de etnia cigana que logo filou o casal para sua presa. Não ia ler-lhes a sorte para cumprimento das suas tradições nem atacá-los de mão arrastada e oca de dignidade que pedia “só uma moedinha”, propunha-se antes a trocar honestamente os sempre úteis pensos-rápidos por algum dinheiro.
Com o discurso bem preparado e cirandar de passos leves ela conquistava até o mais irascível conviva - era loira q.b. para brilhar e encantar mas sem perder os traços finos da criança apesar da pertinência de duas cerejas que pareciam espreitar nos pequenos e lisos peitos escondidos em traje comum vivo de amarelo canário.
Ofereceu dois afectos beijos a cada um deles e de sorriso convencido apelou à dádiva e classe benemérita do jovem casal já absorvido pela formosura planeada para o convencimento da compra dos pensos-rápidos.
Até que ponto não foi este o objecto escolhido para o negócio pelo seu evidente simbolismo, que um penso-rápido é sempre um penso-rápido, a cura imediata à mão de todos sem que de ciência precisem para sararem também rapidamente os seus males.
Directa e com desenvoltura interessante a ciganita parecia saber que o mundo estava a precisar de um grande penso-rápido para tratar suas maleitas e todos os que vivem com elas - desconfiava talvez que éramos nós que fazíamos e desfazíamos o mal no mundo e que, egoístas, por vezes nos esquecíamos de um grande penso-rápido para o sanar outra vez.
Enquanto que à milénios um homem desceu à terra para convencer da fraternidade do amor como salvação do mundo, ali, naquele restaurante, foi no rosto e palavra daquela ciganita que o milagre da redenção chegou para o casal, não na forma de mandamentos religiosos mas na de um fabuloso penso-rápido para manutenção das suas dores.
Abordado o casal, este correspondeu civilizado e aceitou o negócio ofereçendo suas atenções livres do almoço sumido dos pratos e apenas o café para digerir a hora. Consciente da cordial recepção a criança invocou as feridas e explicou metodicamente como o milagre da cura se podia revelar no peso-rápido.
Talvez ela adivinhasse que aquele casal estava a precisar desse penso-rápido e por isso tenham ficado surpreendidos com tal lógica:
- É bom para as feridas. Vocês são marido e mulher? - Espantado mostrou-se o casal como se a sugerida realidade fosse também a verdade profundamente desejada.
Hesitaram em silêncio e sufocaram entre os olhares de um para o outro.
Agradou-lhes a sugestão da ciganita: se não eram marido e mulher talvez isso pudesse uní-los e observaram-se mais maternais que antes.
- Não. Somos apenas amigos - frustrados e constrangidos que pareciam pela explicação descabida que não tinham que dar.
- Então se são amigos precisam mesmo de um penso-rápido. São dois euros para cada um.
- Dois euros? - exclamou o homem em tom de desafio a questionar o inquestionável.
- Sim dois euros para cada um, que não são marido nem mulher! - afirmou inabalável a ciganita.
- Para cada um não. Esses chegam para nós dois - Ao que sorriu a seguir para a mulher como se precisasse de confirmar alguma pretensão.
O rosto da mulher rasgou satisfação tal que desde aí não mais olharam para ninguém, nem o escolhido que o romano Herodes quisera destruir e que hoje entrara naquele restaurante endeusado na criança cigana.

segunda-feira, outubro 11, 2004

“Sem que qualquer desalinho tivesse espaço...”

O homem sacudiu o blaser ‘Docklands’ verde-esteva com orlas douradas, deixando bem à vista o emblema, nota insistente de Helena que achava melhor “andar nu do que mal vestido”. Ajeitou a camisa pelo colarinho fechado e sentou-se na poltrona aveludada que o convidava ao confortável hall do Hotel Ritz. Regulou o automatismo do assento e convencido pegou no ‘Expresso’ para ler - lembrava lençol arejado à janela tão grandes eram as suas páginas -, ajustou desta vez os braços pesados daquelas letras todas enquanto mirava a elegante entrada envidraçada para certificar-se que por entre aquela luxúria vegetal e o exotismo escultórico, a dar para o kitch, não apareceria a mulher à sua procura também.
Helena era gestora de carteiras de títulos e dedicava-se aos off-shores em regime freelance, o que lhe permitia seleccionar os clientes e estabelecer ela própria o modus operandus das corretagens. Ganhou rapidamente visibilidade no meio porque canalizou os negócios para o circuito hoteleiro da capital e inovou com as parcerias estratégicas com os donos dos hotéis onde lhes oferecia comissões sobre as mais-valias das transacções na Bolsa de Valores de Lisboa. Era perfeito, Helena assegurava a privacidade no ambiente ideal ao investimento e ainda o acesso para gozo pessoal de todos os luxos que as cadeias lhe proporcionavam.
Começou a levar Pedro consigo para esses meetings na garantia de afastar suspeitas prosmícuas e mais comuns aos negócios liderados pelas mulheres.
Helena tardava e já Pedro coçava por mais que uma vez a irritação que o colarinho alinhado lhe causava no pescoço - tecido brilhante de linho italiano e cersido por fora o que lhe esculpia um pescoço perfeito e o arranhava ferozmente.
Fez sinal ao mâitre da recepção e solicitou um aperitivo fresco acompanhado por ostras do mar marinadas em lima e gengibre. Olhou para o relógio, que o tempo parecia-lhe arrastar-se como não era costume.
- Pedro! O que é que aconteceu?
Distraído que estava a saborear as ostras quase saltou de susto da poltrona que fez um gemido metálico quando se viu livre do seu peso.
- Pedro! Estás louco?
- O que é que achas? - prontificando-se logo a levantar e rodopiar-se que nem modelo em passarelle.
- Rapaste o cabelo todo, mesmo todo. A que propósito?
- Que exagero Lena. Até acho que me favorece -
mostrando sinais de ofensa.
- Pedro, convidei-te para um almoço de negócios demasiado importante para armares maluqueiras.
- Quem vai fazer o negócio és tu, não eu -
já aborrecido com o drama.
[És só tu e sempre tu que eles reparam nestes almoços estúpidos em que eu sirvo de mero gigôlo para te insinuares poderosa a esses gajos. Eu detesto isto tudo]
- Pareces uma criança a dar a volta à conversa. Infantil...
[Sempre me pareceste infantil e foi esse menino grande que me atraíu. Ainda me lembro do dia em que entrei no Ritz com a malta da Bolsa e dei logo por ti. Mal entrei vi um menino de quase dois metros de altura a gozar um sorriso diferente que ainda hoje me enlouquece de ternura]
- Que drama Lena...
[Não és tu que ouço dentro desse tailleur de corte perfeito e cor perfeita. Não podes ser tu. Conheço-te livre e aventureira. Levavas-me sem avisar a tomar um chá a Cascais ao fim da tarde, e depois convencias-me a refrescar os pés no mar para a seguir poderes enrolar-te na areia comigo, bem agarradinha, com a desculpa de que tinhas os pés gelados]
- É melhor ires-te embora Pedro.
[Continuas o louco que me desafia. Apetece-me mandar o cliente à fava e subirmos para um dos quartos e fazermos sexo na varanda que dá para o parque iluminado - que brilha menos que essa careca sublime de toque sedoso que tu arranjaste, como de resto todo o teu corpo de que tenho tantas saudades. Da tua pele lisa de criança, aquela que de manhã me abraçava e depois me arrastava para um banho frio e forçado só para me agarrar a ti, friorenta que sou, e deixar esfregares-me até arder porque sabias que isso me excitava tanto que quando dávamos por nós tínhamos faltado ao emprego e depois só queríamos que continuasse e seguíamos para uma sessão da meia-noite e depois corríamos a fazer amor em casa. És louco]
- Desculpa lá, mas já estou farto desta merda, que não és minha patroa!
[Não és não. Pensas que sim, mas não és. Lá porque te faço os fretes todos como se teu súbdito fosse, tudo porque queres mais uma casa, mais um carro e nós ficámos presos a estes negócios que nos fazem ricos e empobreçam-nos também as almas. A mim chegava-me o que tínhamos nos Anjos que quando ficavas a fazer turnos na Bolsa eu ia-te buscar derreada a esconjurares “esses fatos da treta” que te obrigavam a usar e que dizias que te “travavam a felicidade como se faz às saias”.
Ou quando saía do ateliêr com a cabeça estoirada com o negócio que não ia para a frente nem para trás e ia-te buscar de carro para mesmo antes
de chegarmos a casa tu já estares despida e quase nua, só com aquela camisa comprida e coçada dos Porfírios, que o que querias era correres descalça para a cozinha e abrir um bom vinho para bebermos enquanto os teus olhos se iluminavam por “te contar tudo o que eu fiz hoje, que estavas enjoada daqueles palermas todos que não sabem o que é estar na praia às 2:00h da madrugada com uma cerveja geladinha e ainda desconfiavas que deviam estar agora em casa a olhar estúpidos para a televisão porque até já se esqueceram da paixão, de viver sequer, palermas que só sabem ter orgasmos com euros”]
- Não achas que apareço contigo assim, pois não?
[Contigo. Comigo. Como antes e não como fazemos agora que não sou eu quando estou contigo mas uma qualquer. Não gostas mas preciso que me acompanhes que és o que me prende à vida, que me defende destes gajos todos que odeio a falarem-me para o decote, a subirem com olhares salivosos as minhas pernas acima e eu a perceber sem poder mandá-los para onde tu sabes e poder ir ter contigo para me leres páginas soltas de um livro, para ouvir o livro das tuas palavras, eu que já não quero outra casa, outro carro, mas sei que tu queres e por isso faço esta treta, eu que te amo mais que tudo isso junto e que não quero que te falte nada, a ti que me basta para viver, a ti que só preciso de amar]
- Não te preocupes que ninguém vai reparar em mim que esses tipos só têm olhos para ti, nessa classe e esse olhar que sempre tivéste e que deixa qualquer um abananado…
[Fico doido! Fico doido! Não percebes? Rapei o cabelo todo, todinho, que até amanhã tenho medo de olhar para o espelho para fazer a barba. Fi-lo por ti Lena. Mascarei-me, que me sinto um parvo, para que tu reparasses em mim - o teu homem - e não só nesses tipos. O único gajo que te conhece e admira, como se faz a um bom livro ou a um bom filme. Eu que antes te acenava com um bilhete de cinema e tu saltavas-me em cima de tal maneira que quase caíamos na rua sem que nos apercebêssemos dos outros a ver, porque não importava, porque tu não vias nada senão eu e eu senão a ti.
Tu que quero que voltes a contemplar-me na cama enquanto durmo - que eu fingia sem perceberes - porque eras toda ternura enfiada na camisola velha dos Porfírios, sentada naquela cadeira dura a observar-me a dormir e a sorrir com o cigarro na boca que detesto e até te esquecias aceso e me acordavas – pensavas tu claro – me acordavas a dizer “bolas que me queimei”. Eras apanhada encantada e desviavas logo a cara quando te levantavas usando as desculpas das “asneiras que não gostas de dizer”. Conheço-te bem a fragilidade e por isso compreendia que o horror da Bolsa te desse ganas para sem vergonha vires a correr em direcção ao carro como se uma adolescente fosses e a pedires-me: “Leva-me daqui meu amor. Leva-me para longe deste mundo frio que está a dar cabo de mim”.
Pedias-me a mim que rapei o cabelo porque o que queria era rapar estes últimos anos do teu sucesso que te levaram de mim e te trouxeram para esta casa de dez assoalhas que não me diz nada e onde perdemos
as carícias e as provocações que andavam sempre junto a nós e que aqui não se ouvem e não se sentem nos sofás de pele que até elas têm medo deles meu amor.
Têm pavor daquela varanda imensa do tamanho do mar que têm á frente, esse que demorávamos 45 sôfregos minutos para ver e agora temo-lo a viver connosco e nem damos por ele, nem pela cerveja gelada e os teus pés frios.
Não percebes que o que eu queria era rapar-te a ti, a super-mulher, que não dá por mim e recuperar a tonta que aparecia toda contente porque me tinha comprado um bloco novo]
- Já chega Pedro, está tudo a olhar para nós. Sejamos práticos e crescidinhos: espera-me no bar que eu vou despachá-los e depois vamos para casa. Espera-me no bar por favor.
[Tonto. Como foste capaz de uma coisa destas? Não de estragar-me o negócio que eu até te agradeço que já não posso mais, mas de rapar esse cabelo lindo dessa cara perfeita, a minha segunda que exibia lá para a Bolsa – em cima de umas jeans coçadas e uma t-shirt qualquer – tu a acenar-me alegre na rua e eu dizia para os meus colegas que “eras o meu homem, que por hoje já chegava que estava entregue aquele senhor lá em baixo, aquele borracho que vocês vêem” e piscava-lhes orgulhosa um dos olhos, que eles ficavam estúpidos de tal criançice e depois corria os degraus abaixo e atirava-me a ti com um beijo estupendo, daqueles que só se viam no cinema e nos paralizavam.
Não voltes a cortar o teu cabelo meu amor que acabou tudo. Amanhã passo a minha carteira ao António, vendemos aquele monstro em Cascais e voltamos para os Anjos – ou para onde quiseres – passamos o dia a forrar o tecto velho e podre com papel vegetal do teu ateliêr e depois pegamos em nós e vamos ao cinema fazer 20 sessões seguidas. Prometes-me?
Damos à Cáritas os meus fatos todos – que sempre odiei - e levas-me aos Porfírios para experimentar camisolas novas, os dois no vestidor. Podemos?]

- Está bem. Espero-te no bar Lena. Até já…
[É hoje merda! Acabou-se! Hoje ponho as cartas na mesa. Peço-te em casamento Lena e vamos jantar com a minha mãe para comemorarmos esta nossa pequena revolução que não imaginas as saudades que ela tem tuas e dos teus cochichares seguidos de gargalhadas que me deixavam parvo e danado logo a seguir porque desaparecias com ela para a rua e voltavam horas depois tal como tinham saído, sem compras nem nada, que eu até hoje não percebo o que é que faziam mas tenho inveja do que era.
Acabou. Se não casares comigo Lena rapo tudo. Corto tudo o que não me servir para nada sem ti, que se não te tenho de volta mais vale rapar mesmo tudo que és tu que eu quero que me mostre o dia a nascer e a noite a chegar. Acabo tudo hoje mesmo Lena!]
Pedro coçou o pescoço, desabotoou o colarinho duro e só levou o jornal consigo quando seguia na direcção ao bar.

Helena mirou-o calma e sacudiu o cabelo, ajeitou o tailler, respirou fundo e com descrição avançou direita e elegante sobre os saltos altos, sem que o peso da sua pasta lhe desconcertasse a passada para o elevador onde duas grandes portas a devoraram e engoliram com o fato, a expressão e a figura elegante sem que qualquer desalinho tivesse espaço. Desapareceu simplesmente perfeita.

domingo, outubro 10, 2004

Agora e sempre, até que...

Será? Não pode ser. (Talvez...)
São 4:30h da manhã e não acredito que sejas tu dentro do táxi que ouço parar à minha porta, afinal isto não são horas para isso, aliás, não são horas para nada senão repousar o meu corpo cansado de ti mas confesso de exasperado por mais.
Não. Não acredito que sejas tu a surpreender-me dessa maneira cruel porque sabes que todas as noites espero por ti, sem que os ossos que me furam e a vista que me falha para os livros que adiei o dia todo - todo o santo dia que só tu e eu via e lia em qualquer sinal, sinalinho, letra e letrinha - não, não me levanto para ir ao varandim e ver que és tu e chorar um sorriso envergonhado porque ainda há poucas horas te ouvi e te vi, tu que nunca me bastas e me deixas sempre rogando por mais, e mais.
Agora que resisto com as poucas forças que me restam ouço vozes na rua. Ouvi um táxi parar à minha porta, faziam já 4:30h da manhã, segui as vozes e constatei feliz que eram de quem se despede e não de quem se apeia à boleia combinada.
É alguém a chegar. Soa-me a masculino (mas não deves ser tu, isso não), é homem concerteza que a porta fechou-se do jeito sólido como só os homens fazem, como só tu fazes quando te despedes dos nosso táxis e fechas-lhes as portas e vens cá para casa.
Vou ver quem é, claro que vou. Vou espreitar no varandim discreto, tão pequeno ele é, vou olhar lá para baixo e ver-te sair sair daquele táxi olhando para cima a procurar-me algures, porque sabes que estou sempre à tua espera, todas as noites no meu varandim minúsculo.
Vou olhar lá para fora ver se és tu nos carros, carrinhas e carroças, em todo o lado que alcançe dali, que só te vejo a ti a surpreenderes-me e a aparecer a qualquer momento a procurar-me lá debaixo, olhando para todos os lados cá em cim à minha procura, só a mim e não outros.
O Chopin que já me anestesia diz-me que és tu em romântica chegada de mala na mão com as camisas e a máquina de barbear a apertarem o teu portátil e a alcançares-me feliz na noite parda que só eu conheçço intimamente porque é minha companheira, amiga sem inveja que só com ela partilho esta insanidade de esperar só por ti e nunca pelo sono que ela me oferece - todas as noites que não durmo porque não quero esquecer-te nos sonhos, esses que não comando e que tenho medo de neles te esquecer, de não te encontrar como na minha rua, ao meu varandim, a procurares-me só a mim - que até tenho medo de dormir e depois de acordar sem te sentir no meu corpo e lembrar-me que passou mais 1 dia e mais 1 noite sem ti comigo e na noite.
Às 4:30h da manhã no táxi que ouço chegar a mim, nesta noite pródiga para o romance perfeito que anseio não sei desde que madrugada, imaginei-te à minha procura na minha rua e alcançando a minha estrela onde te aguardo há muitas noites, que reconheço mais nada nem outros esperar - que tu sabes que não espero por mais ninguém a não seres tu, agora e sempre, até que...

sábado, outubro 09, 2004

Até segunda

Acordei bem cedo com as camisas e os lençóis a berrar doidos com a carga de água que lhes caía em cima, dei banho aos cães, entreguei os miúdos aos jogos de matemática que eles adoram e fui-me para a cozinha preparar uma massada de marisco que o meu marido tanto gosta e eu detesto - não porque me saiba mal mas porque dá um trabalhão dos diabos. Almoço pronto a comer. Fui pôr os cães lá fora e levantá-lo da cama no que me indicou precisar de ajuda puxando-me para o meio dos lençóis com uma erecção de palmo e meio e muito saudoso.
Suspirei. Envolveu-me pela cintura e voltei a suspirar. Teimoso, contornou-me por trás - como ele sabe que gosto - e sem que tenha dado por isso encontráva-mo-nos cara a cara, só que a minha expressando grande tédio.
- Estás parva!
Olhei sem lhe dizer nada confirmando o aborrecimento.
- Sinto-me velha...
- Por amor de deus, tens 34...
- Exactamente. Tenho 34 mas fazes amor comigo como se tivesse 58...
Olhou para mim, para o tecto, para a cama e outra vez para mim para se levantar muito ágil e desaparecer no corredor. Fiquei por ali a olhar o nada e enjoada com o cheiro a marisco que perfumava a cozinha, atravessava o corredor e entrava pelo quarto.
O meu marido apareceu-me à porta, nuinho da silva e disse-me sem cerimónias:
- Vou com os miúdos para fora e só voltamos na segunda-feira. Tens o fim-de-semana todo para ti.
- Mas...
- Deixo-te mais a velha, diverte-te! - e beijou-me terno e despachado.
Ouvi os miúdos gritarem excitados e pouco a seguir a porta da rua bater e deixar-me para trás num silêncio deprimente. Só me apeteceu dizer-lhe o que ele me disse a mim:
- Estás parvo? Só voltas na segunda-feira e deixas-me com os cães, que eu é que quis para ter mais trabalho, e sem o teu portátil “para fazer batota ao abandono” e entregue só a mim mesma, aqui a contar as minhas 58 primaveras que não tenho mais a velha que não consegue passar uma tarde sem te ver, quanto mais um fim-de-semana. Estás parvo?

sexta-feira, outubro 08, 2004

Fernando Pessoa

O desgosto de não encontrar nada, encontro comigo a pouco e pouco.
Não achei razão nem lógica senão a um cepticismo que nem sequer busca uma lógica para se defender.
E, curar-me disto não pensei - porque me havia eu de curar disso? E o que era ser são? Que certeza tinha eu que esse estado de alma deve pertencer à doênça? Quem nos afirma, a ser doença, que a doença não era mais desejável ou mais lógica ou mais (...) do que a saúde?
A ser a saúde preferível, porque era eu doente se não por naturalmente o ser, e se naturalmente o era, porque ir contra a Natureza que para algum fim - se fim ela tem - me quereria ela decerto doente?

quinta-feira, outubro 07, 2004

Homenagem Bocadosdegente (II)

"Há alguns anos atrás, a entrevista televisiva não era agressiva, havia uma tradição de ser UM ESPAÇO DE CONVERSA..."
"A entrevista exige MATURIDADE NA RELAÇÃO COM O OUTRO, na compreensão das reacções, dos limites..."
"... EU NÃO POSSO ENTREVISTAR UM ESCRITOR CUJOS LIVROS NUNCA LI! Não posso! Eu tenho de saber o máximo sobre aquela pessoa, não para mostar o que sei, mas para conseguir 'puxar' o máximo possível."
"Se tivesse começado a fazer televisão aos 20 anos, ainda numa fase de crescimento, isso teria interferido na minha vida, na minha maneira de ser, DE ME VER E DE ME COLOCAR EM RELAÇÃO AO MUNDO. O facto de ter começado a aprender na televisão já aos 45 anos permitiu que não perdesse a noção de que isto não é estrelato."
"Não estamos ali a melhorar, a criar uma obra literária, a transformar ou a alterar o que a pessoa disse. Temos de conseguir dar o essencial, DAR O RETRATO DA PESSOA E TEMOS UMA INTERVENÇÃO QUE É UM ENRIQUECIMENTO."

Entrevista de Ana Sousa Dias à "JJ" - Grande Prémio Gazeta 2004

quarta-feira, outubro 06, 2004

Homenagem Bocadosdegente (I)

“Quando voltei a casa tinha parado de chover, a Lena fazia a mala no quarto
- O que se passa Lena?
- Não fales comigo peço-te o favor de não falares comigo
(...)
eu como um condenado à forca à espera que a campaínha tocasse e não tocou, as vozes da Clarisse e do Rui me gritassem da rua e não gritaram, houvesse passos nas escadas e não houve, o táxi precipitou a acelerar para o Tejo confundido com os prédios da Ajuda, a Lena regressou do guarda-fatos a segurar com o queixo uma pilha de camisolas e blusas, o guarda-fatos vazio, os cabides vazios a baloiçarem no varão, eu daqui a nada infelicíssimo, sozinho de mãos nos bolsos no andar vazio, a ter de lavar a loiça, arrumar os talheres, aspirar a alcatifa, limpar o pó das prateleiras, levar a roupa no cesto para a lavandaria, e a casa em lugar de aumentar permanecia do tamanho que tinha só que sem guaches nem jarras e mais feia ainda, um andar de homem solteiro a cheirar a homem solteiro
(leite azedo, cigarro frio, recheio de almofada)
enquanto as casas das mulheres solteiras cheiram a sabonete e a afamília, não tem a ver com os móveis, os bibelots, o dinheiro, tem a ver com o modo como se habita a tristeza, um homem finado é só um homem finado, uma mulher finada a gente nunca sabe quanto vai sentar-se e conversar connosco, a Lena ergueu o queixo, separou as mãos, as camisolas e as blusas espalharam-se na cama num derrame de açorda e não me deu a impressão de serem os exageros habituais, roupa com que me envergonhasse de a acompanhar se por acaso fôssemos jantar fora ou ao cinema. Encontrei uma ou duas coisas jeitosas mais uma ou duas coisas que à primeira vista reconhecia a julgar
- São novas
e depois me lembrei da Lena ter andado uma semana inteira com elas... "


"O Esplendor de Portugal" - António Lobo Antunes
Um dos meus escritores mais amados que recebeu o Prémio Jerusalém da Feira do Livro de Israel

terça-feira, outubro 05, 2004

Siza Vieira e um americano que já morreu

A Sociedade Moderna deu-nos a Tecnologia que nos permitiu construir um universo estético completamente novo. Todo o testemunho cultural, enquanto objecto desfrutável, passou à indiferenciação de classes, sujeito à crítica livre e legitimado por si só enquanto produto criado e portador da mensagem de alguém para alguém, ou até mesmo para si próprio.
Os valores estéticos revolucionaram-se e o homem passa a ser o objecto perfeito e aglutinador da criatividade e do registo vivo da sua própria transformação.
Já na Sociedade Contemporânea verificam-se "degenerações" no circuito artístico que ameaçam o essencial da evolução da arte que passou a ser o valor humano por excelência.
Não se questiona a vanguarda actual das várias filosofias estéticas. Desde instalações arquitectónicas às novas artes performativas sui generis é acente que os valores e as referências já não têm a mesma origem, quanto mais a mesma função. Informais, explodem a todo o momento inovadores conceitos, dialécticas, pressupostos estécticos, valores formais, etc .
Até o "artista-tipo" retrata-se diferente no adolescente que publica livros ou no auto-didacta que recicla plástico e recria no imediato uma nova arte interventiva.

O que chegava até nós numa imagem clássica e institucionalmente aceite (normalmente o artista era possuidor de alguma formação académica, bolsista, apadrinhado por outros maiores ou no mínimo talhava-se a custo no terreno para conquistar o reconhecimento da sociedade intelectual e artística) deixa de ter lógica e regras. Vale o que traduz alguma consistência e profundidade estética mesmo que por definição já não se saiba, inclusivé, o que isso significa.
Só milagrosamente é que o que se revela, expõe ou partilha não é inequivocamente fragilizado, adulterado, copiado, mal entendido, simplificado, etc.

Actualmente nota-se alguma prosmicuidade e leviandade do meio e a uma escala que faz pensar, dado Portugal ser tão pequeno. Falo do fenómeno da massificação, mercantilismo e vulgarização das expressões artísticas como de resto se verificou em todas as área produtivas e actuantes da sociedade.
Discorro, entediosamente talvez, para contextualizar a minha estranheza numa exposição da Fundação de Serralves - sem a presunção de especialidade, porém, não desvalorizo a pouca formação artística pessoal e o constante interesse e procura desse universo que tomo como essencial para a evolução e maturação do indivíduo social e sensível que me pretendo.
Em Serralves descobri cantos e recantos de deslumbre aos meus olhos já ensinados a receber a arquitectura e o espaço que a engloba com deleite e que não abonaram nada a mostra presente dado terem ultrapassado humildemente o trabalho que o Centro se propunha a evidenciar com a equivalente qualidade, imagino.
Uma exposição/instalação em jeitos de retrospectiva dado a obra do autor (um americano dos anos 60/70) correr quase toda a sua existência e uma mostra de conteúdos em óbvio manifesto silencioso à sociedade de consumo e com o apelo à arte pelo valor da susceptibilidade estética per si que ela só não mostra porque não é retratável ou configurável.
Podia-se ver uma sequência de 10 fotos aparentemente iguais e que mostravam a tentativa frustrada de em lances seguidos t
entar criar uma recta imaginária no ar com pequenas bolas de vermelhas. Vi uma cabana feita de tronquitos e forrada por batatas para a homenagem póstuma às origens do homem em respeitosa simbiose com a natureza, etc, etc.
Mais tarde, já em contemplação e no fruir daquela massa verde muito agradável dos Jardins de Serralves, fui assaltada pela pena do óbvio:
pena de não ter vivido aqueles anos na América conservadora e que não continha a fúria de uma geração pronta a inverter os valores e cujas armas eram as acções frequentes de manifestos estéticos e artísticos para questionar tudo e todos freneticamente; pena por ter conhecido tão tardiamente Serralves (afinal não é todos os dias que se vai até ao porto) e aqueles deliciosos e pacatos planos brancos de betão que Siza Vieira deixa talvez como o património mais valioso daquela Instituição; pena que Serralves não se tenha lembrado do "boom" cultural português nas mãos de Julião Sarmento, por exemplo, para retratar uma época e testemunhar a imprescendível participação dos artistas na sociedade civil e política para a construção e o avanço dessa mesmo no sentido de um mundo melhor e mais belo, porque empenhado na força motriz por excelência do género humano.

segunda-feira, outubro 04, 2004

Gentes de outrora, gentes de hoje na Guarda


Posted by Hello

Guarda, cidade chã...


Posted by Hello

O beijo no museu

Um beijo no museu suscita a infâmia, sacrilégio e comoção imprópria ao espaço imaculado daqueles outros que por extraordinários a nós, escolhemos preservar e privilegiar às vistas do deleite.
O museu da Guarda, construção granítica e austera do séc. XVII, tem a paternidade de D. Nuno de Noronha na contra reforma e é de interiores despojados que perturbam com a sua simplicidade espacial e ostentam modéstia de ornamentos para vaidade do visitante.
É arquitectura sóbria que convida os mais estetas a fruir a serenidade e envolver com ternura rostos e gestos de gente embelezada por mãos mágicas que outrora entenderam por bem seduzir e expropriar essa vivencialidade anónima, representante inquestionável da republicanização daquelas paredes cinzentas e frias e originalmente avessas à democratização dos sentidos e à humanização do amor pelo amor filial e não coroado ou real.
Se no antigamente foi casa de bispo e templo da Nossa Senhora da Anunciação (maravilhosa figura feminina em pedra policromática de traços primitivos e máxima expressão maternal no menino que segura a seus braços) hoje protege o espírito visionário dos padroeiros culturais daquela cidade que puderam ali confiar o deslumbramento eterno dedicado ao comum mortal e vingar a prova da beleza onírica nas obras pintadas e esculpidas dos guardenses. Povo que ainda faz juz genuíno e comprovável dos lugares simples e escondidos das serras portuguesas.
Fomos ao museu procurar a vida iluminada e os olhares orgulhosos retratados por Columbano - esses que também conheciam Inês Fernandes, judia e filha de ferreiro, a donzela humilde que arrebatou o coração de D. João I, nosso Mestre de Aviz, e o conquistou por amores tão sólidos quanto o bronze onde ele se impõe.
Como as duas crianças suspeitas da conspiração para a futura Casa de Bragança e geradas pela união destes amantes, também nós demos vida à reciprocidade forjada no leito e à aliança exclusiva da verdade que respiramos e nos destingue de cada um.
Guarda, formosa para quem sabe e quer deixar seduzir-se, é terra altiva nas serras e berço encantado de amores reais para todo o sempre.
Nessa cidade mais alta de Portugal, Olimpo para o comum mortal que quer elevar-se aos sentimentos dos deuses, Luís Vaz de Camões imortaliza estas almas românticas e outras como nós, estranhos que fomos, revisitando aquele alpendre insolarado de António Carneiro.
Entregámo-nos à evasão da pérfida cosmopolita e partilhámos a mais pura intimidade da razão que impera por libertadora e suplica destinos outros porque urge sonhar.
Protegidos pelos vales férteis do Dão e pela força das serranias da cidade acolhedora, deste-me um beijo no museu.
Enlaçaste-me provocador aos rostos desses quase vivos, eles os legítimos antepassados da cordialidade e frenesim que anima a sobranceria da aura poderosa de D. Sancho I, prostrado que está na digna praça apalaçada nobremente e que é a prova de obra feita para a protecção lusitana das invasões francesas e outras investidas fronteiriças.
Com a benção do “busto contemplativo” de Manuel Alves recebeste-me nesses braços fortes de Alexandrino Magnum e beijaste-me com a mesma delicadeza que suscitava a criança que lia um livro e o mesmo semblante da jovem nua que se banhava no rio.
Na Guarda - púlpito atento da serra sagrada pela consagração marital de D. Dinis e D. Isabel de Aragão - entre os nº 9 e 13 onde estes amores se consolidaram, também nós encontrámos o amor real, o mesmo que abraçou D. João I, o nobre, e Inês, a Judia.
"Como muito me tarda /
/o meu amor nessa Guarda”