domingo, outubro 24, 2004

Mulher de 2ª (I)

Há homens que desistem do casamento enquanto arquitectura pessoal de afectos por eleição e divorciam-se de sua mulher, parente directo e priviligiado, o ente ideal para a manutenção desse lado da vida, obra única e da responsabilidade de cada um.
Há os que se inscrevem em academias de ginástica de onde só saiem rotos e enganados pela vitalidade que já não têm e que recusam em reconhecer e há os que se inscrevem numa panóplia de novos cursos que vão desde artes "pseudo-mediúnicas" de relaxamento a duvidosos fóruns de "reflexão para uma vida nova" orientados por outros duvidosos representantes de um Alá qualquer que os ajuda no "reencontro do novo 'eu' e 'da luz divina'". Todos filhos de um Deus menor que nunca ninguém viu e dos quais nunca chegamos a entender para que servem nem o que querem que como pupilos iluminados alcançemos.
Um desperdício a meu ver. Tomam-nos tantas horas em lume brando que só no fim é que as contamos e percebemos que pouco mais fica que um jeito aluado e espiritual para estranharmos os outros porque não evidenciamos conhecimentos novos e muito menos pachorra para explicar a utilidade daquilo tudo, que nós próprios não chegámos a descortinar.
Das novas escritas-criativas que não passam do culto ao autor já mais que reconhecido, até à violência perpretada no corpo que chora inútil face à exibição perante jovens atletas e frescos que invadem a marginal de Belém, o que é mais perturbante é o que esses homens deixam de fazer com suas companheiras do que propriamente o fruto indifinido dessas ocupações novas e às vezes abstractas que os levam tanto tempo para longe de casa e dos seus.
Eu, ao contrário de alguns amigos, do mesmo já não me posso queixar.
Filhos, esses não os fiz e os que o meu 'mais-que-tudo' trouxe com ele poucas vezes me acompanham que por mais que me esforçe mãe é mãe e eu - mesmo que me voluntariasse - seria sempre uma mãe de 2ª.
Mãe e mulher de 2ª porque ensombra-me esta cruz da insegurança masculina: se hoje estou com ele foi porque a 1ª, a escolhida "até que a morte os separe", a primeiríssima de todas, "a mãe dos seus filhos", essa falhou e por melhor desempenho que tenha com este homem com quem quero ir longe, mesmo para este, serei sempre a segunda - aquela a seguir à 1ª que ele nunca saberá porque deixou de ser a dele.
Claro que não é só desvantagens: a "outra", a amante, a de 2ª, e tudo o mais com que gostam tanto de nos ferir os ouvidos é sempre a 'ilegítima-apostólica-católica'.
Contudo vale-lhe o estatuto histórico da incondicional, da amiga, da desinteressada e da companheira acima de tudo. A que não tem que se obrigar a nada por sobrevivência ou protocolo familiar a não ser mesmo estimar seu parceiro no tempo e na medida que ambos desejem - e não importa se é a segunda ou a sexta, porque a partir da "mãe dos seus filhos e da nora para os pais" qualquer uma serve porque nunca foi a primeira.
Sem este peso tentacular do matrimónio "sideral" como lhe chama Chico Buarque acabo por beneficiar de uma vida sem esses eixos familiares que me censuram e constrangem as prioridades, sou livre com quem entendo ser o objecto do meu amor.
É vantajosa a opção de não fazer filhos. Temos a total disponibilidade para o que nos aprouver de melhor e mais apetecível para fazer e desfazer com quem queremos.
Cada um tem o que lhe importa alcançar...