segunda-feira, outubro 18, 2004

O carteiro


Posted by Hello O carteiro tocou-me à porta, fê-lo com irritante estridência como só me apercebi que faz há 4 anos. Visita-me bem cedinho armado com um timbre de aço que a campainha é velha mas ainda vigorosa e certeira com que me violenta o repouso difícil e o descanso desesperado que combato com as insónias que teimam e julgam-se rainhas.
Hoje veio e acordou-me feroz como nunca o senti, mal adivinhava ele que me escondia do 'Fígaro' alegre pela rua de Amadeu de Souza Cardoso, que me envergonhava por saber que nos tinha visto em alegria e agora mirava do alto alguém triste por abandono e que não conseguia encarar os 'Amantes' de Klimt que se deviam rir de nós, loucos, que tão depressa tanto nos fundíamos a amar como nos apartávamos formais sem que motivo maior que esse amor houvesse para se impôr.
Quando o carteiro me visitou não encontrou o amigo de Pablo Neruda mas a mim consumida pela tristeza e angústia e em carpir palerma e contrariado pois nosso acordo nupcial era amar sem futuro, para não poder chorar o passado porque o presente só tinha o espaço da memória efémera.
Arrastou-me de um combóio vazio que apanhei assim que me deixás-te nestes lençóis já frios e que me levava por um vale muito seco e quente, onde nem meu pai pintado à cabeçeira me alcançava e resgatou-me da viagem que desejava desesperada por não ter fim.
Abri sem vontade os olhos e vi um tecto, uma parede vazia, outra parede vazia encostada a arcas velhas e entediadas e um corredor estreito e melancólico mais vazio ainda onde só me esperava o trinco preto e gasto para tocar e como sempre ninguém aparecer.
Fecho os olhos pretos de perdidos e deixo-me ficar na cama fria do teu sumiço. Quero continuar naquela viagem essa já mais parecida connosco, vibrante, quente e aconchegante.
Insistiu o estranho, resisti saudosa, teimou a campaínha e desisti do quarto, do Fígaro, dos amantes e até de meu pai que gostam de mim mas que como o carteiro não sabem que os ignoro porque só quero voltar a apanhar aquele combóio quente e abandonar-me naquela carruagem porque nunca me escreveram, nunca me trouxeram as novas dos meus velhos para esta solidão de quatro paredes onde só nos sonhos me visitam e me trazem à porta o amor e a palavra.
Escondi-me nos lençóis, abraçei o teu corpo entranhado na almofada e acordei naquela carruagem luminosa só que desta vez viajava comigo o carteiro para me entregar uma carta - a da tua ausência.