A cigana
Para apaziguar a fome vale tudo o que estiver ao alcance e nas mãos dos que se entenderem infalíveis. Em questão centra-se um casal ou um presumido “par” igual a muitos outros - que as aparências não fazem matrimónios. Àquele casal vingou a inocência da criança com a ingenuidade crucificada em manobras comerciais, vocacionadas por sua família, concerteza, nessa entidade que sabem miticamente desprovida do mal e exlusiva da graça.
Era negócio à partida garantido, não se tratando, asseguro, de apelo ao miserabilismo ou à violência vivenciada, nem à caridade de urgência duvidosa mas à mera invocação da singela imagem clássica e da pureza de uma criança que nos deixa rendidos porque convencionou-se alma incorrupta, dócil e frágil aos sentidos.
No restaurante já pouco ocupado entrou uma criança de etnia cigana que logo filou o casal para sua presa. Não ia ler-lhes a sorte para cumprimento das suas tradições nem atacá-los de mão arrastada e oca de dignidade que pedia “só uma moedinha”, propunha-se antes a trocar honestamente os sempre úteis pensos-rápidos por algum dinheiro.
Com o discurso bem preparado e cirandar de passos leves ela conquistava até o mais irascível conviva - era loira q.b. para brilhar e encantar mas sem perder os traços finos da criança apesar da pertinência de duas cerejas que pareciam espreitar nos pequenos e lisos peitos escondidos em traje comum vivo de amarelo canário.
Ofereceu dois afectos beijos a cada um deles e de sorriso convencido apelou à dádiva e classe benemérita do jovem casal já absorvido pela formosura planeada para o convencimento da compra dos pensos-rápidos.
Até que ponto não foi este o objecto escolhido para o negócio pelo seu evidente simbolismo, que um penso-rápido é sempre um penso-rápido, a cura imediata à mão de todos sem que de ciência precisem para sararem também rapidamente os seus males.
Directa e com desenvoltura interessante a ciganita parecia saber que o mundo estava a precisar de um grande penso-rápido para tratar suas maleitas e todos os que vivem com elas - desconfiava talvez que éramos nós que fazíamos e desfazíamos o mal no mundo e que, egoístas, por vezes nos esquecíamos de um grande penso-rápido para o sanar outra vez.
Enquanto que à milénios um homem desceu à terra para convencer da fraternidade do amor como salvação do mundo, ali, naquele restaurante, foi no rosto e palavra daquela ciganita que o milagre da redenção chegou para o casal, não na forma de mandamentos religiosos mas na de um fabuloso penso-rápido para manutenção das suas dores.
Abordado o casal, este correspondeu civilizado e aceitou o negócio ofereçendo suas atenções livres do almoço sumido dos pratos e apenas o café para digerir a hora. Consciente da cordial recepção a criança invocou as feridas e explicou metodicamente como o milagre da cura se podia revelar no peso-rápido.
Talvez ela adivinhasse que aquele casal estava a precisar desse penso-rápido e por isso tenham ficado surpreendidos com tal lógica:
- É bom para as feridas. Vocês são marido e mulher? - Espantado mostrou-se o casal como se a sugerida realidade fosse também a verdade profundamente desejada.
Hesitaram em silêncio e sufocaram entre os olhares de um para o outro.
Agradou-lhes a sugestão da ciganita: se não eram marido e mulher talvez isso pudesse uní-los e observaram-se mais maternais que antes.
- Não. Somos apenas amigos - frustrados e constrangidos que pareciam pela explicação descabida que não tinham que dar.
- Então se são amigos precisam mesmo de um penso-rápido. São dois euros para cada um.
- Dois euros? - exclamou o homem em tom de desafio a questionar o inquestionável.
- Sim dois euros para cada um, que não são marido nem mulher! - afirmou inabalável a ciganita.
- Para cada um não. Esses chegam para nós dois - Ao que sorriu a seguir para a mulher como se precisasse de confirmar alguma pretensão.
O rosto da mulher rasgou satisfação tal que desde aí não mais olharam para ninguém, nem o escolhido que o romano Herodes quisera destruir e que hoje entrara naquele restaurante endeusado na criança cigana.
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