segunda-feira, outubro 04, 2004

O beijo no museu

Um beijo no museu suscita a infâmia, sacrilégio e comoção imprópria ao espaço imaculado daqueles outros que por extraordinários a nós, escolhemos preservar e privilegiar às vistas do deleite.
O museu da Guarda, construção granítica e austera do séc. XVII, tem a paternidade de D. Nuno de Noronha na contra reforma e é de interiores despojados que perturbam com a sua simplicidade espacial e ostentam modéstia de ornamentos para vaidade do visitante.
É arquitectura sóbria que convida os mais estetas a fruir a serenidade e envolver com ternura rostos e gestos de gente embelezada por mãos mágicas que outrora entenderam por bem seduzir e expropriar essa vivencialidade anónima, representante inquestionável da republicanização daquelas paredes cinzentas e frias e originalmente avessas à democratização dos sentidos e à humanização do amor pelo amor filial e não coroado ou real.
Se no antigamente foi casa de bispo e templo da Nossa Senhora da Anunciação (maravilhosa figura feminina em pedra policromática de traços primitivos e máxima expressão maternal no menino que segura a seus braços) hoje protege o espírito visionário dos padroeiros culturais daquela cidade que puderam ali confiar o deslumbramento eterno dedicado ao comum mortal e vingar a prova da beleza onírica nas obras pintadas e esculpidas dos guardenses. Povo que ainda faz juz genuíno e comprovável dos lugares simples e escondidos das serras portuguesas.
Fomos ao museu procurar a vida iluminada e os olhares orgulhosos retratados por Columbano - esses que também conheciam Inês Fernandes, judia e filha de ferreiro, a donzela humilde que arrebatou o coração de D. João I, nosso Mestre de Aviz, e o conquistou por amores tão sólidos quanto o bronze onde ele se impõe.
Como as duas crianças suspeitas da conspiração para a futura Casa de Bragança e geradas pela união destes amantes, também nós demos vida à reciprocidade forjada no leito e à aliança exclusiva da verdade que respiramos e nos destingue de cada um.
Guarda, formosa para quem sabe e quer deixar seduzir-se, é terra altiva nas serras e berço encantado de amores reais para todo o sempre.
Nessa cidade mais alta de Portugal, Olimpo para o comum mortal que quer elevar-se aos sentimentos dos deuses, Luís Vaz de Camões imortaliza estas almas românticas e outras como nós, estranhos que fomos, revisitando aquele alpendre insolarado de António Carneiro.
Entregámo-nos à evasão da pérfida cosmopolita e partilhámos a mais pura intimidade da razão que impera por libertadora e suplica destinos outros porque urge sonhar.
Protegidos pelos vales férteis do Dão e pela força das serranias da cidade acolhedora, deste-me um beijo no museu.
Enlaçaste-me provocador aos rostos desses quase vivos, eles os legítimos antepassados da cordialidade e frenesim que anima a sobranceria da aura poderosa de D. Sancho I, prostrado que está na digna praça apalaçada nobremente e que é a prova de obra feita para a protecção lusitana das invasões francesas e outras investidas fronteiriças.
Com a benção do “busto contemplativo” de Manuel Alves recebeste-me nesses braços fortes de Alexandrino Magnum e beijaste-me com a mesma delicadeza que suscitava a criança que lia um livro e o mesmo semblante da jovem nua que se banhava no rio.
Na Guarda - púlpito atento da serra sagrada pela consagração marital de D. Dinis e D. Isabel de Aragão - entre os nº 9 e 13 onde estes amores se consolidaram, também nós encontrámos o amor real, o mesmo que abraçou D. João I, o nobre, e Inês, a Judia.
"Como muito me tarda /
/o meu amor nessa Guarda”