domingo, setembro 26, 2004

Parar o tempo que não temos...

Acordei. Acordei na mesma cama do dia anterior, nos mesmos lençóis tristes com a mesma almofada inócua debaixo da cabeça e a outra, tão inócua quanto a do lado, longe do corpo e do ventre simbólico que tantas vezes me incomodou, vezes suficientes para me apetecer rasgá-lo porque era oco e seco como os carvalhos velhos que só dão sombra e lenha.
Foi nesse ventre de repente despido que acordei a desejar que o meu tempo parasse, se suspendesse naquela luz parda que tanto nos iluminava como se esquecia de mim e tu ao meu lado.
Agora percebo porque é no ventre e não noutro canto do corpo que nascemos. Geramos física e espiritualmente o indivíduo consumado que não fomos e nascemos para cumprir e dar alma ao tempo que ocupamos ao jantar contigo ao meu lado, na rua de que me proteges, nas dobras do corpo e nos intervalos da consciência córpora de mim e de ti.
Parava aquele tempo e agarrava-o entre os braços e com a boca como me fizeste instantes antes e deixava-me ir, leve e ingénua, abandonando os meus espaços brancos, os que Augustina me mostrou, bem para o centro do meu sopro que o coração não comandava mas tu, nesse olhar distante e imenso, nessa dança surda que não nos destingue nos corpos, tão suave eras tu e eu e nós.
Suspendia aquele momento em que mais parecias corpo entregue a pietá de algodão branco imaculado e protectora deste amor inesperado.
Calava o canto das rolas do vizinho, o desassossego dos cães que à porta nos pressentiam a liberdade, as gentes na rua que te arrancavam para a tua hora, a tua casa, essa que nunca será a nossa.
Parava tudo e não deixava que te levassem para junto dos teus que não conheço, não deixava que no banho desinfectasses o meu corpo no teu, que abrisses aquela porta ao fundo e me deixasses outra vez no tempo anterior.
Nesse tempo onde não tinha os teus óculos na cabeçeira, o teu casaco na minha cadeira ao lado do nosso jornal, ao lado da tua mala onde espreitavam atrevidos aqueles livros que gostava de ter junto aos meus, que gostava que dissessem que eram nossos.
Se pudesse, nessa manhã, quando acordei na mesma cama do dia anterior contigo ajeizado em mim e ao lado dos meus livros, tinha parado o tempo que não é nosso.