quarta-feira, setembro 29, 2004

A Morte na livraria

Todos os finais do mês, mal o ordenado cai na conta, tenho o ritual de entrar em livrarias próximas para conhecer as novidades nos escaparates. Hoje conheci o novo livro de Sepúlveda, indignei-me com o desonesto oportunismo comercial de um tal “Código de Davinci, descodificado” e ainda achei duas pechinchas que há muito namorava. Saía orgulhosa com as minhas aquisições senão quando, em descontraído jeito de pescoço para decidir onde tomar o café, tenho novamente a montra na mira e onde sobressai um pequeno livrito de capa clássica acartonada com poesia de Eugénio de Andrade. Olhei à volta, adiei o café e voltei para inquirir o preço do dito "cujo".
Quando me dirijo ao jovem vendedor sobre o preço do grande poeta sou rispidamente ignorada pelo mesmo para em tom paternal advertir a sua colega de que não devia ir fumar. Reparei que a sua colega tinha idade para ser sua mãe e quando o jovem volta a dar-me a cara estou em expressão de surpresa pelo tom sobranceiro com que o ouvira (registo que sou fumadora) mas devo ter feito uma expressão tão estranha (imagino que usei aquela grande ruga que tenho na testa) que olhou para mim, continuava eu a olhar para ele e sem perceber o que queria e esboçou-me um sorriso tímido dizendo com ar muito grave:
- Digo isto à minha colega porque ela é doente - fez um esgar de sobrancelha misterioso.
- Como? - estava eu em expectativa.
O jovem sorriu agora com coragem e muito sarcástico disse-me:
- Eu hoje não posso telefonar à minha mãe, sabe?
- Como? - continuava eu ainda à espera do não sei o quê que ele esperava ouvir para não falar do Eugénio de Andrade que por esta hora já tinha ido à vida - A sua mãe? Não percebo?
- O tabaco matou a minha mãe há dois anos, logo se hoje quisesse telefonar-lhe não podia. Não acha? - olhou-me à espera de resposta.
Olhei algum tempo, pedi-lhe as desculpas que não devia e disse-lhe que estava com pressa. Saí com a perplexidade daquilo tudo.

Contudo, já à porta, achei que se Eugénio ali estivesse ficava triste pela frivolidade com que reagi àquele desabafo enternecedor e voltei atrás para oferecer-lhe o meu contacto:
- Tem aqui o meu telemóvel. Se quiser um dia falar com alguém...
O jovem não respondeu e apenas agradeceu com o mesmo sorriso tímido de antes.
Nunca tal me tinha acontecido: ir à livraria comprar vida e encontrar a morte.