“Sem que qualquer desalinho tivesse espaço...”
O homem sacudiu o blaser ‘Docklands’ verde-esteva com orlas douradas, deixando bem à vista o emblema, nota insistente de Helena que achava melhor “andar nu do que mal vestido”. Ajeitou a camisa pelo colarinho fechado e sentou-se na poltrona aveludada que o convidava ao confortável hall do Hotel Ritz. Regulou o automatismo do assento e convencido pegou no ‘Expresso’ para ler - lembrava lençol arejado à janela tão grandes eram as suas páginas -, ajustou desta vez os braços pesados daquelas letras todas enquanto mirava a elegante entrada envidraçada para certificar-se que por entre aquela luxúria vegetal e o exotismo escultórico, a dar para o kitch, não apareceria a mulher à sua procura também.
Helena era gestora de carteiras de títulos e dedicava-se aos off-shores em regime freelance, o que lhe permitia seleccionar os clientes e estabelecer ela própria o modus operandus das corretagens. Ganhou rapidamente visibilidade no meio porque canalizou os negócios para o circuito hoteleiro da capital e inovou com as parcerias estratégicas com os donos dos hotéis onde lhes oferecia comissões sobre as mais-valias das transacções na Bolsa de Valores de Lisboa. Era perfeito, Helena assegurava a privacidade no ambiente ideal ao investimento e ainda o acesso para gozo pessoal de todos os luxos que as cadeias lhe proporcionavam.
Começou a levar Pedro consigo para esses meetings na garantia de afastar suspeitas prosmícuas e mais comuns aos negócios liderados pelas mulheres.
Helena tardava e já Pedro coçava por mais que uma vez a irritação que o colarinho alinhado lhe causava no pescoço - tecido brilhante de linho italiano e cersido por fora o que lhe esculpia um pescoço perfeito e o arranhava ferozmente.
Fez sinal ao mâitre da recepção e solicitou um aperitivo fresco acompanhado por ostras do mar marinadas em lima e gengibre. Olhou para o relógio, que o tempo parecia-lhe arrastar-se como não era costume.
- Pedro! O que é que aconteceu?
Distraído que estava a saborear as ostras quase saltou de susto da poltrona que fez um gemido metálico quando se viu livre do seu peso.
- Pedro! Estás louco?
- O que é que achas? - prontificando-se logo a levantar e rodopiar-se que nem modelo em passarelle.
- Rapaste o cabelo todo, mesmo todo. A que propósito?
- Que exagero Lena. Até acho que me favorece - mostrando sinais de ofensa.
- Pedro, convidei-te para um almoço de negócios demasiado importante para armares maluqueiras.
- Quem vai fazer o negócio és tu, não eu - já aborrecido com o drama.
[És só tu e sempre tu que eles reparam nestes almoços estúpidos em que eu sirvo de mero gigôlo para te insinuares poderosa a esses gajos. Eu detesto isto tudo]
- Pareces uma criança a dar a volta à conversa. Infantil...
[Sempre me pareceste infantil e foi esse menino grande que me atraíu. Ainda me lembro do dia em que entrei no Ritz com a malta da Bolsa e dei logo por ti. Mal entrei vi um menino de quase dois metros de altura a gozar um sorriso diferente que ainda hoje me enlouquece de ternura]
- Que drama Lena...
[Não és tu que ouço dentro desse tailleur de corte perfeito e cor perfeita. Não podes ser tu. Conheço-te livre e aventureira. Levavas-me sem avisar a tomar um chá a Cascais ao fim da tarde, e depois convencias-me a refrescar os pés no mar para a seguir poderes enrolar-te na areia comigo, bem agarradinha, com a desculpa de que tinhas os pés gelados]
- É melhor ires-te embora Pedro.
[Continuas o louco que me desafia. Apetece-me mandar o cliente à fava e subirmos para um dos quartos e fazermos sexo na varanda que dá para o parque iluminado - que brilha menos que essa careca sublime de toque sedoso que tu arranjaste, como de resto todo o teu corpo de que tenho tantas saudades. Da tua pele lisa de criança, aquela que de manhã me abraçava e depois me arrastava para um banho frio e forçado só para me agarrar a ti, friorenta que sou, e deixar esfregares-me até arder porque sabias que isso me excitava tanto que quando dávamos por nós tínhamos faltado ao emprego e depois só queríamos que continuasse e seguíamos para uma sessão da meia-noite e depois corríamos a fazer amor em casa. És louco]
- Desculpa lá, mas já estou farto desta merda, que não és minha patroa!
[Não és não. Pensas que sim, mas não és. Lá porque te faço os fretes todos como se teu súbdito fosse, tudo porque queres mais uma casa, mais um carro e nós ficámos presos a estes negócios que nos fazem ricos e empobreçam-nos também as almas. A mim chegava-me o que tínhamos nos Anjos que quando ficavas a fazer turnos na Bolsa eu ia-te buscar derreada a esconjurares “esses fatos da treta” que te obrigavam a usar e que dizias que te “travavam a felicidade como se faz às saias”.
Ou quando saía do ateliêr com a cabeça estoirada com o negócio que não ia para a frente nem para trás e ia-te buscar de carro para mesmo antes de chegarmos a casa tu já estares despida e quase nua, só com aquela camisa comprida e coçada dos Porfírios, que o que querias era correres descalça para a cozinha e abrir um bom vinho para bebermos enquanto os teus olhos se iluminavam por “te contar tudo o que eu fiz hoje, que estavas enjoada daqueles palermas todos que não sabem o que é estar na praia às 2:00h da madrugada com uma cerveja geladinha e ainda desconfiavas que deviam estar agora em casa a olhar estúpidos para a televisão porque até já se esqueceram da paixão, de viver sequer, palermas que só sabem ter orgasmos com euros”]
- Não achas que apareço contigo assim, pois não?
[Contigo. Comigo. Como antes e não como fazemos agora que não sou eu quando estou contigo mas uma qualquer. Não gostas mas preciso que me acompanhes que és o que me prende à vida, que me defende destes gajos todos que odeio a falarem-me para o decote, a subirem com olhares salivosos as minhas pernas acima e eu a perceber sem poder mandá-los para onde tu sabes e poder ir ter contigo para me leres páginas soltas de um livro, para ouvir o livro das tuas palavras, eu que já não quero outra casa, outro carro, mas sei que tu queres e por isso faço esta treta, eu que te amo mais que tudo isso junto e que não quero que te falte nada, a ti que me basta para viver, a ti que só preciso de amar]
- Não te preocupes que ninguém vai reparar em mim que esses tipos só têm olhos para ti, nessa classe e esse olhar que sempre tivéste e que deixa qualquer um abananado…
[Fico doido! Fico doido! Não percebes? Rapei o cabelo todo, todinho, que até amanhã tenho medo de olhar para o espelho para fazer a barba. Fi-lo por ti Lena. Mascarei-me, que me sinto um parvo, para que tu reparasses em mim - o teu homem - e não só nesses tipos. O único gajo que te conhece e admira, como se faz a um bom livro ou a um bom filme. Eu que antes te acenava com um bilhete de cinema e tu saltavas-me em cima de tal maneira que quase caíamos na rua sem que nos apercebêssemos dos outros a ver, porque não importava, porque tu não vias nada senão eu e eu senão a ti.
Tu que quero que voltes a contemplar-me na cama enquanto durmo - que eu fingia sem perceberes - porque eras toda ternura enfiada na camisola velha dos Porfírios, sentada naquela cadeira dura a observar-me a dormir e a sorrir com o cigarro na boca que detesto e até te esquecias aceso e me acordavas – pensavas tu claro – me acordavas a dizer “bolas que me queimei”. Eras apanhada encantada e desviavas logo a cara quando te levantavas usando as desculpas das “asneiras que não gostas de dizer”. Conheço-te bem a fragilidade e por isso compreendia que o horror da Bolsa te desse ganas para sem vergonha vires a correr em direcção ao carro como se uma adolescente fosses e a pedires-me: “Leva-me daqui meu amor. Leva-me para longe deste mundo frio que está a dar cabo de mim”.
Pedias-me a mim que rapei o cabelo porque o que queria era rapar estes últimos anos do teu sucesso que te levaram de mim e te trouxeram para esta casa de dez assoalhas que não me diz nada e onde perdemos as carícias e as provocações que andavam sempre junto a nós e que aqui não se ouvem e não se sentem nos sofás de pele que até elas têm medo deles meu amor.
Têm pavor daquela varanda imensa do tamanho do mar que têm á frente, esse que demorávamos 45 sôfregos minutos para ver e agora temo-lo a viver connosco e nem damos por ele, nem pela cerveja gelada e os teus pés frios.
Não percebes que o que eu queria era rapar-te a ti, a super-mulher, que não dá por mim e recuperar a tonta que aparecia toda contente porque me tinha comprado um bloco novo]
- Já chega Pedro, está tudo a olhar para nós. Sejamos práticos e crescidinhos: espera-me no bar que eu vou despachá-los e depois vamos para casa. Espera-me no bar por favor.
[Tonto. Como foste capaz de uma coisa destas? Não de estragar-me o negócio que eu até te agradeço que já não posso mais, mas de rapar esse cabelo lindo dessa cara perfeita, a minha segunda que exibia lá para a Bolsa – em cima de umas jeans coçadas e uma t-shirt qualquer – tu a acenar-me alegre na rua e eu dizia para os meus colegas que “eras o meu homem, que por hoje já chegava que estava entregue aquele senhor lá em baixo, aquele borracho que vocês vêem” e piscava-lhes orgulhosa um dos olhos, que eles ficavam estúpidos de tal criançice e depois corria os degraus abaixo e atirava-me a ti com um beijo estupendo, daqueles que só se viam no cinema e nos paralizavam.
Não voltes a cortar o teu cabelo meu amor que acabou tudo. Amanhã passo a minha carteira ao António, vendemos aquele monstro em Cascais e voltamos para os Anjos – ou para onde quiseres – passamos o dia a forrar o tecto velho e podre com papel vegetal do teu ateliêr e depois pegamos em nós e vamos ao cinema fazer 20 sessões seguidas. Prometes-me?
Damos à Cáritas os meus fatos todos – que sempre odiei - e levas-me aos Porfírios para experimentar camisolas novas, os dois no vestidor. Podemos?]
- Está bem. Espero-te no bar Lena. Até já…
[É hoje merda! Acabou-se! Hoje ponho as cartas na mesa. Peço-te em casamento Lena e vamos jantar com a minha mãe para comemorarmos esta nossa pequena revolução que não imaginas as saudades que ela tem tuas e dos teus cochichares seguidos de gargalhadas que me deixavam parvo e danado logo a seguir porque desaparecias com ela para a rua e voltavam horas depois tal como tinham saído, sem compras nem nada, que eu até hoje não percebo o que é que faziam mas tenho inveja do que era.
Acabou. Se não casares comigo Lena rapo tudo. Corto tudo o que não me servir para nada sem ti, que se não te tenho de volta mais vale rapar mesmo tudo que és tu que eu quero que me mostre o dia a nascer e a noite a chegar. Acabo tudo hoje mesmo Lena!]
Pedro coçou o pescoço, desabotoou o colarinho duro e só levou o jornal consigo quando seguia na direcção ao bar.
Helena mirou-o calma e sacudiu o cabelo, ajeitou o tailler, respirou fundo e com descrição avançou direita e elegante sobre os saltos altos, sem que o peso da sua pasta lhe desconcertasse a passada para o elevador onde duas grandes portas a devoraram e engoliram com o fato, a expressão e a figura elegante sem que qualquer desalinho tivesse espaço. Desapareceu simplesmente perfeita.
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