quarta-feira, outubro 06, 2004

Homenagem Bocadosdegente (I)

“Quando voltei a casa tinha parado de chover, a Lena fazia a mala no quarto
- O que se passa Lena?
- Não fales comigo peço-te o favor de não falares comigo
(...)
eu como um condenado à forca à espera que a campaínha tocasse e não tocou, as vozes da Clarisse e do Rui me gritassem da rua e não gritaram, houvesse passos nas escadas e não houve, o táxi precipitou a acelerar para o Tejo confundido com os prédios da Ajuda, a Lena regressou do guarda-fatos a segurar com o queixo uma pilha de camisolas e blusas, o guarda-fatos vazio, os cabides vazios a baloiçarem no varão, eu daqui a nada infelicíssimo, sozinho de mãos nos bolsos no andar vazio, a ter de lavar a loiça, arrumar os talheres, aspirar a alcatifa, limpar o pó das prateleiras, levar a roupa no cesto para a lavandaria, e a casa em lugar de aumentar permanecia do tamanho que tinha só que sem guaches nem jarras e mais feia ainda, um andar de homem solteiro a cheirar a homem solteiro
(leite azedo, cigarro frio, recheio de almofada)
enquanto as casas das mulheres solteiras cheiram a sabonete e a afamília, não tem a ver com os móveis, os bibelots, o dinheiro, tem a ver com o modo como se habita a tristeza, um homem finado é só um homem finado, uma mulher finada a gente nunca sabe quanto vai sentar-se e conversar connosco, a Lena ergueu o queixo, separou as mãos, as camisolas e as blusas espalharam-se na cama num derrame de açorda e não me deu a impressão de serem os exageros habituais, roupa com que me envergonhasse de a acompanhar se por acaso fôssemos jantar fora ou ao cinema. Encontrei uma ou duas coisas jeitosas mais uma ou duas coisas que à primeira vista reconhecia a julgar
- São novas
e depois me lembrei da Lena ter andado uma semana inteira com elas... "


"O Esplendor de Portugal" - António Lobo Antunes
Um dos meus escritores mais amados que recebeu o Prémio Jerusalém da Feira do Livro de Israel