terça-feira, outubro 05, 2004

Siza Vieira e um americano que já morreu

A Sociedade Moderna deu-nos a Tecnologia que nos permitiu construir um universo estético completamente novo. Todo o testemunho cultural, enquanto objecto desfrutável, passou à indiferenciação de classes, sujeito à crítica livre e legitimado por si só enquanto produto criado e portador da mensagem de alguém para alguém, ou até mesmo para si próprio.
Os valores estéticos revolucionaram-se e o homem passa a ser o objecto perfeito e aglutinador da criatividade e do registo vivo da sua própria transformação.
Já na Sociedade Contemporânea verificam-se "degenerações" no circuito artístico que ameaçam o essencial da evolução da arte que passou a ser o valor humano por excelência.
Não se questiona a vanguarda actual das várias filosofias estéticas. Desde instalações arquitectónicas às novas artes performativas sui generis é acente que os valores e as referências já não têm a mesma origem, quanto mais a mesma função. Informais, explodem a todo o momento inovadores conceitos, dialécticas, pressupostos estécticos, valores formais, etc .
Até o "artista-tipo" retrata-se diferente no adolescente que publica livros ou no auto-didacta que recicla plástico e recria no imediato uma nova arte interventiva.

O que chegava até nós numa imagem clássica e institucionalmente aceite (normalmente o artista era possuidor de alguma formação académica, bolsista, apadrinhado por outros maiores ou no mínimo talhava-se a custo no terreno para conquistar o reconhecimento da sociedade intelectual e artística) deixa de ter lógica e regras. Vale o que traduz alguma consistência e profundidade estética mesmo que por definição já não se saiba, inclusivé, o que isso significa.
Só milagrosamente é que o que se revela, expõe ou partilha não é inequivocamente fragilizado, adulterado, copiado, mal entendido, simplificado, etc.

Actualmente nota-se alguma prosmicuidade e leviandade do meio e a uma escala que faz pensar, dado Portugal ser tão pequeno. Falo do fenómeno da massificação, mercantilismo e vulgarização das expressões artísticas como de resto se verificou em todas as área produtivas e actuantes da sociedade.
Discorro, entediosamente talvez, para contextualizar a minha estranheza numa exposição da Fundação de Serralves - sem a presunção de especialidade, porém, não desvalorizo a pouca formação artística pessoal e o constante interesse e procura desse universo que tomo como essencial para a evolução e maturação do indivíduo social e sensível que me pretendo.
Em Serralves descobri cantos e recantos de deslumbre aos meus olhos já ensinados a receber a arquitectura e o espaço que a engloba com deleite e que não abonaram nada a mostra presente dado terem ultrapassado humildemente o trabalho que o Centro se propunha a evidenciar com a equivalente qualidade, imagino.
Uma exposição/instalação em jeitos de retrospectiva dado a obra do autor (um americano dos anos 60/70) correr quase toda a sua existência e uma mostra de conteúdos em óbvio manifesto silencioso à sociedade de consumo e com o apelo à arte pelo valor da susceptibilidade estética per si que ela só não mostra porque não é retratável ou configurável.
Podia-se ver uma sequência de 10 fotos aparentemente iguais e que mostravam a tentativa frustrada de em lances seguidos t
entar criar uma recta imaginária no ar com pequenas bolas de vermelhas. Vi uma cabana feita de tronquitos e forrada por batatas para a homenagem póstuma às origens do homem em respeitosa simbiose com a natureza, etc, etc.
Mais tarde, já em contemplação e no fruir daquela massa verde muito agradável dos Jardins de Serralves, fui assaltada pela pena do óbvio:
pena de não ter vivido aqueles anos na América conservadora e que não continha a fúria de uma geração pronta a inverter os valores e cujas armas eram as acções frequentes de manifestos estéticos e artísticos para questionar tudo e todos freneticamente; pena por ter conhecido tão tardiamente Serralves (afinal não é todos os dias que se vai até ao porto) e aqueles deliciosos e pacatos planos brancos de betão que Siza Vieira deixa talvez como o património mais valioso daquela Instituição; pena que Serralves não se tenha lembrado do "boom" cultural português nas mãos de Julião Sarmento, por exemplo, para retratar uma época e testemunhar a imprescendível participação dos artistas na sociedade civil e política para a construção e o avanço dessa mesmo no sentido de um mundo melhor e mais belo, porque empenhado na força motriz por excelência do género humano.