sexta-feira, outubro 15, 2004

Amor e uma cabana

"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades..." diz o ditado mas não deixa de ser curioso que a representação desse amor perfeito - a Vontade - seja, mesmo nestes Tempos Modernos e funcionais, sempre ilustrada nessa imagem idílica de uma cabana.
Já repararam nas brochuras das agências de viagens e nos ambientes que elas sugerem para esses momentos tidos como únicos? Constata-se, das Canárias à Ilha de Sumatra, o recurso à encantadora cabana na ilha e lá dentro, bem pequeninos, dois elementos suspeitamente em acções de amor fecundo.
Viver o amor só com uma cabana, mesmo em período de férias, é coisa que já não existe meus amigos!
Para o mortal comum é lirismo inatingível senão mesmo uma aberração para outros que descobriram essa coisa estranha da vivência celibatária do afecto conjugal: Amo-te; Amas-me; ora na Minha casa, ora na Tua.
Como ‘se enrolam’ estes amantes quando apanhados desprevenidos pela gana desesperada da paixão quanto cada um está no seu poleiro? Talvez saiam a correr para o Metro na esperança de ele(a) não ter feito outro programa ou talvez sejam inteligentes e se lembrem de recorrer à potencial tecnologia sonora e visual que os telemóveis de última geração nos oferecem:
- Joana!? Sou eu e preciso de mimos (já em estado semi-nu e direccionando o visor do telemóvel para o corpito).

- Hum!!!! Que saudades Pedro! Aproxima o telemóvel Pedro, aproxima mais, aproxima mais lá para baixo...
Não se choquem com a alusão aproximada à das películas pornográficas mas convenhamos que entre um bom filme erótico e um (tele)encontro personalizado a diferença não é muita...
O que podemos fazer numa cabana tosca de troncos, onde só nos entra frio para as ‘partes’ e apenas nos oferece o (des)conforto daquela palha seca e infecta de parasitas que só dá coçeira?
O que fazemos sem uma televisão, um computador, um telemóvel ou aquecimento central?
Pouco. Parece muito pouco não é?
Manda a tradição que nos amemos simplesmente em solidária mutualidade e dedicada estima.
Mas tem de ser à Robin Crusoé? É preciso comer da mesma panela, fingir que gostamos que nos lavem o rabo ou de dormir apertados e sufocados nos braços um do outro que amanhã não aguentamos o corpo amachucado e ressentido?
Vem isto a propósito do meu homem, esse ‘tipo’ bestial que arranjei, e que como já depreenderam, contenta-se com muito pouco.
Ora, daqui a uma semana esta inspiração entra-me pela porta adentro para um jantar especial - dado que andamos há dois meses a arrastarmo-nos melosos por restaurantes - jantar esse recheado com marisco grelhado e um soberbo champanhe que me custou uma assinatura da TV Cabo. Concebida e posta a mesa defrontei-me com o drama estrutural da 'coisa', o essencial: A CABANA!
Vivo presentemente num ‘espécimen’ de 1854 e imóvel de valor patrimonial reconhecido que goza de parentescos com Eça de Queiróz - ao meu lado vivia a sua famosa e progressista amiga que o terá inspirado para o "Primo Basílio" - e umas aventuras delirantes de rusgas por parte da PIDE que até em fuga os resistentes passaram aqui pela minha cozinha.
Muito interessante e depois? Por mais historial que arranje não tenho como distraí-lo das evidências da velhice decadente e do modernismo que não chegou cá a casa porque a vida não está para isso!
O que é que eu faço com o buraco de 2 metros no tecto do quarto, que já foi sala note-se, herdado na última infiltração e para o qual a minha administração pelintra não tem orçamento para arranjar? E aquelas janelas da sala que cada vez que abro se desfaz logo mais um bocado de parede? E a porta da casa de banho que não fecha tal é a cedência das paredes destes anos todos?
TENHO UMA SEMANA PARA ARRANJAR UMA CABANA, QUE O AMOR ESSE JÁ CÁ MANDA!