quinta-feira, outubro 21, 2004

O devir do Amor (I)

Na blogosfera só se verifica a 1ª pessoa do verbo quando o tema aborda frivolidades, paródias ou temáticas específicas. A outra faceta do blogue - um diário vivo e dinâmico - a pós-modernidade rejeitou-a por constrangimento à exposição pública mesmo que em anonimato e tomou o seu lugar a retórica da confissão empírica e pouco erudita que hoje assume pouco mais que exorcismos de uma análise da realidade global e subjectivizada ao gosto do universo particular do blogger que a canaliza.
Já na literatura perpetua-se e prevalece numa estética única de linguagem onírica por excelência e o alfabeto mais genuíno do diálogo emotivo e civilizacional: o homem com o homem; o corpo espiritual do ser revisto no impulso primitivo e na violência do afecto que é inversa à socialização da humanidade.

São conhecidas e justamente elevadas à erudição máxima várias obras conhecidas como "Cartas"; "Poemas" ou "Confidências".

- Pessoa
singularizou-se em heterónimo para Ofélia e nos que mais pôde tão mutantes eram as suas contrariedades:

(...) As cartas de amor, se há amor, / Têm de ser ridículas. / Mas, afinal, só as criaturas que nunca / escreveram cartas de amor é que são ridículas. / Quem me dera no tempo em que escrevia / Sem dar por isso cartas de amor ridículas. / A verdade é que hoje / As minhas memórias / Dessas cartas de amor é que são ridículas (...)


- Natália Correia
orgulha-nos na ovação e homenagem ao amor puro que dói com violência física:

(...) Segura no infinito a carne aberta / Atrai o sangue que corre para a verdade/ Procurando na jóia mais secreta / Do corpo a inicial da eternidade.

(...) Langues e lívidas esfolham-se então nos corpos / estrelas caídas no trono da loucura. / O sangue enrosca-se e faz sair dos poros / Um fumo de almas que mastigam nuvens.(...)

- Mariana Alcoforado
é suspeita de cometer a proeza de transformar a religiosidade freirense na candura do amor apaixonado:

"Estou viva, infiel que sou!, e faço tanto para conservar na minha vida quanto para perdê-la. Ah!, morro de vergonha. Meu desespero estará então só nas minhas palavras? Se te amasse tanto como mil vezes te tenho dito, não teria já morrido há muito tempo?"


- Eugénio de Andrade
assume-se o
“poeta do corpo” e vocaciona a plenitude da vida e dos sentidos para o âmago da sua inquietação:
"As palavras que te envio são interditas. As palavras que te envio são interditas até, meu amor, pelo halo das searas; se alguma regressasse, nem já reconhecia o teu nome nas suas curvas claras. Dói-me esta água, este ar que se respira, dói-me esta solidão de pedra escura, estas mãos nocturnas onde aperto os meus dias quebrados na cintura. E a noite cresce apaixonadamente. Nas suas margens nuas, desoladas, cada homem tem apenas para dar um horizonte de cidades bombardeadas".


- Sophia de Mello Breyner
liberta o amor de enredos circunstanciais e deixa como legado a simplicidade fotográfica do amor na poesia:

(...) Não pelo meu ser que só atravessei / Não pelo rumor que só perdi, / Não pelos incertos actos que vivi, / Mas por tudo de quanto ressoei / E em cujo amor de amor me eternizei.(...)


- Augustina Bessa-Luís
choca na eleição das vozes interiores que exorcisam o amor visceral e anti-normativo, este arma erótica e déspota para o caminho ao sublime sub-humano:

(...) Dá má sorte defendidos / Os homens de bom juízo / Têm nas mãos prodigiosas / Verdes garras dos sentidos. / Não quero cantar amores / Nem falar dos seus motivos (....)


- Lembro-me das palavras, pelo 100º Aniversário dos Descobrimentos Portugueses,
de Pêro Vaz de Caminha, dessas belíssimas crónicas da chegada a Vera Cruz e de pela primeira vez sentir a beleza atroz e o encantamento que nunca conheci em escritos tão antigos e apaixonar-me ainda hoje pelas descrições dos selvagens que com intensa cordialidade os recebiam tão afáveis quanto orgulhosos eram as suas vergonhas que desnudavam:
"A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura, e é-lhes indiferente cobrir ou mostrar suas vergonhas. E procedem nisso com tanta inocência como em mostrar o rosto...
E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha, que ela não tinha, tão graciosa, que as muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhes tais feições, fizeram vergonha por não terem a sua como ela. Nenhum deles era fanado, mas todos assim como nós."
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