sábado, outubro 23, 2004

O Devir do Amor (II)

Poetas do mundo, exército corajoso porque não há como multiplicar e exacerbar o amor do devir - sentimento virtuoso - sem nos despojarmos do que nos prende à mera existencialidade e à vivência lógica, sem suicidarmo-nos do entendimento básico e civilizacional do Homem e nos rebelarmo-nos contra a ilusão da afinidade ao comum. Essa abstração por natureza dúbia que assenta em como cada um toma esse espaço em vez de como cada desses o alcança e o interioriza na sua imortalidade.
Só com violência de talhante é que alcançamos essa transcendência, esse magma vivo e servil da líbido e de Eros, paternidade que consagra a inocência do devir e nos suaviza a rudeza dos instintos primitivos.
Nestes tempos que habito, porque o devir passa incondicionalmente pelo vivir dos outros em nós,
choca-me o imediatismo sensasorial e a economicidade das intenções generosas. Elas menosprezam a obrigação da reciprocidade, enfraquecem a confiança no impulso e cercam a força da revolta ao servil funcionalismo que só os poetas sabem ser o passo para a obra maior: o amor ao próximo, não o da gratidão servida a fria mas o da filialidade que desenvolve a relação profunda entre entes.
Para o poeta não chega acolher a graciosidade luminosa do que o exterioriza e perturba, antes impera que se dispa e chore o corpo e a mutualidade nele atenta que sabe que o amadurece e o faz desenvolto de justiça porque é aí que o tempo envelhece, firma-se no testemunho sábio e não se esgota de memória vivenciada.

Aqui o tempo é córporo e espaço de conciliação com a fragilidade desse 'eu' que lhe sublima os sentidos para a poesia poder brotar de suas mãos.
O poeta é o médium das emoções e reencarna o desassossego do homem infinito e uno a quem o Belo alimenta como Natália Correia tão bem exortava:
“Esfomeados do sonho, comei a poesia!”.

Qual poetiza vinga a doçura do ventre rasgado pela criança se não aquela que cumpre também o sofrimento de dor do próximo?

Tenho na palavra escrita a castidade e a perversão dos sentimentos consumados pelo homem, esse a inspiração e o código para a revelação d
o amor. Tenho agora esse homem comigo, estabilizador de afectos e impulsionador enérgico na fruição microscópica do mundo dos afectos que na literatura se me proporciona em todas as suas verdadeiras dimensões.
Herdeiro de meu templo paterno é mais que benfeitor, é o alimento da vontade do devir, é a razão que amansa a contrariedade - mãe do desasossego - é quem pacifica os outros em mim e me esgota feliz para os mesmos.
Hoje vive em mim e amanhã, num tempo e lugar longínquo, sei poder encontrá-lo na sedução pelo sedutor, no deleite interior pela história cumprida de mais um amor e
no maravilhoso alcançar de outros novos que me procuram para a ternura e a fome desse devir, porque urge estimar para se ter o gosto da virtude e o sabor do desejo.
Une-nos mais que a intimidade, essa foi a casa que construímos. Alimenta-nos a mutualidade e nele encontro a fonte para a espiritualidade na vida, para o amor incondicional que me oferta a plenitude do corpo e ilumina o espaço córporo da poesia nos reencontros com os sentidos.