domingo, outubro 23, 2005

«Ler é para as pessoas que têm muito tempo e nada que fazer»

- É o que eu digo. Como as mulheres. Quem tem de trabalhar não tem tempo para histórias. Na vida é preciso mourejar. Não acha?
- É uma opinião. Procurava alguma coisa em especial?
- Não é uma opinião, é um facto. É o que se passa neste país, que as pessoas não querem trabalhar. Muito vadio é o que há, não acha?
- Não sei, cavalheiro. Talvez. Aqui, como vê, só vendemos livros.

-
O indivíduo aproximou-se do balcão, com o olhar sempre a revolutear pela loja e poisando ocasionalmente no meu. O seu aspecto e a sua postura eram-me vagamente familiares, embora não soubesse dizer de onde. Havia qualquer coisa nele que me fazia pensar numa daquelas figuras que aparecem em cartas de antiquário ou adivinho, uma personagem fugida das gravuras de um incunábulo. Tinha a presença fúnebre e incandescente, como uma maldição com o traje domingueiro.
-
- Se me disser em que posso servi-lo...
- Quem lhe vinha prestar um serviço a si era eu. O senhor é o proprietário deste estabelecimento?
- Não, o proprietário é o meu pai.
- E o seu nome é?
- O meu ou o do meu pai?

-
O indivíduo endereçou-me um sorriso zombeteiro. Uma cara de páscoa, pensei.
-
- Depreendo então que a tabuleta de Sempere & filhos se refere a ambos.
- É muito perspicaz. Posso perguntar-lhe qual é o motivo da sua visita, se está interessado num livro?
- O motivo da minha visita, que é de cortesia, é avisá-lo de que chegou à minha atenção que os senhores têm relações com gente de má vida, em particular invertidos e meliantes.

-
Observei-o atónito.
-
- Perdão?
-

O indivíduo cravou o olhar em mim.
-
- Falo de paneleiros e ladrões. Não me diga que não sabe do que falo.
- Lamento dizer que não tenho a mais remota ideia, nem qualquer interesse em continuar a ouvi-lo.


O indivíduo assentiu, adoptando uma atitude hostil e irada.
-
- Pois vai ter de gramar. Suponho que está ao corrente das actividades do cidadão Federico Flaviá.
- Dom Federico é o relojoeiro do bairro, uma excelente pessoa, e duvido muito que seja um meliante.
- Eu falava de paneleiros. Consta-me que essa bichona frequenta o vosso estabelecimento, suponho que para vos comprar romancecos românticos e pornografia.
- E posso perguntar-lhe o que o senhor tem com isso?

-
Por única resposta extraíu a sua carteira e estendeu-a aberta sobre o balcão. Reconheci um cartão de identificação policial emporcalhado com o semblante do indivíduo, um tanto mais novo. Li até onde dizia «Inspector-chefe Francisco Javier Fumero Almuñiz».

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&
Excerto de A Sombra do vento, de Carlos Ruiz Zafón (Dom Quixote)

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

http://www.eurofound.eu.int/areas/worklifebalance/eswt.htm

18:47  

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