terça-feira, outubro 18, 2005

O êxodo outoniço das autárquicas


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Todos os sufrágios são diferentes, exceptuando quem faz a razão da sua existência e que são os quase 1300 eleitores daquela secção de voto - neste caso a n.º 6 da Freguesia de São Jorge de Arroios, abancada no ultrapassado e desconfortável Pavilhão de Física do Liceu Camões.
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São diferentes os ideários políticos...
[Em campanha, todos em uníssono exortam o cidadão como o verdadeiro instrumento para completar e legitimar o que cada partido entende da democracia ao serviço do povo:
- «Um voto, uma mudança»
- «Um voto, a diferença»
- «Um voto, um valor».
Repentinamente no quotidiano viciado, todas as classes em comunhão e brio nacional, sem que seja certo para os deste lado que entre cada cruz de voto na urna e cada cruz que oficializa o cargo, esse propagado sentimento da cultura de serviço permaneça sem mácula]
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...Como os candidatos.
[Os slogans mudam em cartazes tendencialmente mais pobres em fisionomia e estética. Mas se tudo anda tão mais pobre...
São caras novas de passe digitalizado na pelintrice caseira ou caras caquécticas do que a Reforma ou o Desemprego de longa duração deixa ainda disponível para aparentar de eficiência e de dinamismo.
Os candidatos mais jovens alternam entre o doutoramento arrastado pela falta de perspectivas e a sindicância breve do ginásio no Verão.
Os candidatos em banho-maria etário - quão feios que somos, senhores!!!!! - há-os indiscutivelmente sedentários na política e os sedentarizados numa dimensão cívica agora ultrapassada pela nossa Era tecnológica]
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É diferente o ano, como é diferente o número oficial do sufrágio.
[Até a fita-cola - caramba (!!!) - cada vez mais rasca.
As esferográficas de agora, não se percebe, não sabem imitar as verdadeiras e de produção nacional: as excelentes BIC.
Caramba, a mim falhavam nome sim, nome não, como imagino que fosse também a sequência de defraudados eleitores.
Os objectos simbólicos que imortalizavam naquele momento quem participava nestas assembleias (ainda a República dava tesão aos populares), não foram excepção, como a vela do carro desenrascada pelo Presidente para lacrar os documentos oficiais.
Talvez porque a democracia portuguesa já tenha derrubado uma ditadura e extirpado uma guerra colonial, não sei. O cunho personalizado do gesto que antigamente produzia espantosos sinetes já pouco importa na prática banal de legislativas, de autárquicas e, agora tanto na moda, dos referendos!]
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São diferentes os delegados partidários.
[Salvo excepções, são normalmente de vida mais que sufragada e arrastam pelas quase 14 horas que lá estão, a mesma sonolência da urna preta quando abre a boca no fim e não dá novidades.
Um tão velho quanto a fama do seu partido e - provavelmente - ali pelas mesmas razões que o do ano passado. Ficou viúvo há pouco tempo e os seus dias pouco ou nada calóricos tornam-se insuportáveis quando não há jogatanas de copas no Jardim Constantino ou jantares de associados nos Bombeiros da freguesia.
O outro, mais velho ainda, o seu pai participou na II Guerra e ainda se lembra (lembrar-se-á mesmo?) de assistir à inauguração do primeiro monocarril em Lisboa que conseguiu patinar até Alcântara, apesar da débil parelha cavalar que o puxava.]
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É diferente quem preside e o coadjuva a orientar todo o grupo de carolas organizado pela CNE.
[Um dia, noutras eleições, um escrutinador fizera a curiosa analogia: «Não estamos nós num exercício simbólico de governação? Reparem, temos o Presidente, o seu Vice e nós: os tarefeiros da modorra democrática».
Tudo, para ele, um retrato rigoroso do modus faciendi dos governantes deste país, ou seja, uns Acima e uns Abaixo.
Os Acima assinam, credenciam e legitimam o exercício dividindo a sua atenção entre fair-divers ao telemóvel e a tecnologia do Forno Philips que juram «ser mais inteligente que os próprios».
Os Abaixo são quem sobeja e suam gélidos só na desconfiança de terem trocado a dezena do n.º de eleitor.
Sabem que vai significar um milhar recontado uma, duas e três vezes, até que os Acima se fartem e, para que as percentagens pareçam razoáveis à CNE, sacam logo uma engenharia contabilística que permita a todos ainda jantar acompanhados ou ver o Herman pornográfico da TV.
Se bem me recordo, só quando Guterres e Sócrates se enganaram no PIB ou no Défice é que não fez mal. Um erro humano inofensivo porque sem efeito para a acta - a da governação.
Não importa. Nunca importa se é coisa séria, porque as contas deles não precisam de bater com as nossas contas. Esses estão Acima e nós Abaixo, logo os números são outros.]
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São diferentes os boletins de voto, os documentos afins e até as regras do jogo.
[Há quatro anos os boletins (cuidadosamente dobrados em quatro, não vá o papel grosso e de toque desagradável ainda transparecer o vaticínio em causa) só podiam ser manejados à boca da urna pelo Presidente.
Este ano, a CNE entendeu por bem sublimar o ritual do voto e passar o direito depositário ao próprio eleitor.
Novos, velhos, sabidos, amadores, todos chegavam para requisitar a sua propriedade e o ónus da participação cidadã. A seguir recolhiam-se para o auto de fé e, à boca da urna, exerciam calmos a condenação ou a salvação das almas em questão.
Este ano, com a nova liturgia de escrutínio, quedavam-se que nem tontos face ao Presidente que sorria e anuía com a cabeça.
Eles sorriam gratos e o Presidente envergando os papéis aflitos anuía novamente. Os escrutinadores miravam insistentes para o eleitor e, na maioria das vezes, antes da mesa explicar em jeito condescendente o que se (não)passava, o cônjugue ou o acompanhante do eleitor gritava lá de fora:
- Mete na caixa. Vá, mete na caixa preta!]
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Todos as eleições são diferentes, excepto eu que não mudo de barraca - neste caso a n.º 6 de São Jorge de Arroios, abancada na reduzida e incaracterística sala de aulas, supostamente um laboratório de ciências para os alunos do afamado liceu.
Este ano o meu Presidente não era um Bombeiro grande e não teve que levar pelo ar um marido retrógrada que queria votar por ele e pela mulher.
Este ano o meu colega escrutinador não era a Ana, mas o seu marido que insistia na estupefacção de eu conseguia ler Carlos Ruiz Zafón entre a comunidade chinesa que não proferia sequer um monossílabo camoniano mas - ainda assim - votava, e nós deste lado de cá. Em concreto o Presidente e a secretária que se devem ter pequeno e almoçado a si próprios, tão juvenis eram as inocências tácteis entre si.
No entanto, para lá das contas baterem todas certas, para lá dos candidatos que venceram serem invariavelmente os mesmos (e nunca o meu!!!!) e continuar a ser um grande frete esta ’coisa’ cívica, este ano o vice era um autêntico output de fresca e sedutora presença entre os velhos e os usados.
Ao contrário do que seria de esperar, o representante do Bloco de Esquerda (um informático seguro dos seus quarentas) não tinha pilosidades capilares quase até aos ombros, não usava têxteis revivalistas dos anos 60, não discursava o marxismo indeciso do Louçã e nem se propunha um remédio milagroso à custa da Esquerda dé javu e da Direita "já lá vou".
Todos as eleições são diferentes...

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Continua esta espantosa sensibilidade que não deixa de me cativar!
Extraordinário texto!

23:05  

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