sexta-feira, outubro 14, 2005

Coincidências: realidades que “coincidiram” umas para as outras e que ganham um novo significado


-
«Quando tomamos consciência da nossa tarefa, mesmo a mais apagada, somente então seremos felizes. É então que podemos viver em paz e morrer em paz, porque aquilo que dá um sentido à vida, dá um sentido à morte»
(Saint-Exupery)


Conheço um tipo que descobriu a sua última paixoneta quando o asfalto da Lapa engoliu um autocarro com ele lá dentro e este viu-se obrigado a abraçar uma jovem aterrada até a polícia os libertar estoicamente pela janelinha do condutor, a única que se abria por fora.
Neste momento o casalinho vive uma paixão atribulada e o consenso conjugal está suspenso pelos fios subjectivos da “coincidência” da Lapa.
Não há quem os convença que a maioria de nós é uma insignificância nesta embrulhada da civilização e que as aventuras proféticas não são para qualquer um dos quase 10 milhões de portugueses.
Mesmo quando elas acontecem, poucos poderão gabar-se de elas terem sido verdadeiramente determinantes no seu percurso pessoal.
O casalinho já não existe como tal, mas não ata nem desata, preso que está na sua romântica e dramática primeira apresentação que não querem «desperdiçar, porque não pode ser só uma coincidência».
Quando estamos perante determinados acontecimentos que não têm qualquer relação entre si, mas por razões ilógicas entendemos forjar-lhe uma, chamamo-lhe "coincidências" - realidades que “coincidiram” umas para as outras e que ganham um novo significado.
Mas só são “coincidências” a partir do momento em que revelamos essa realidade a alguém. Como se tivéssemos de justificar racionalmente alguma coisa a esse outro. Como se mais nada pudesse ser válido sem cientificidade e, nesse pudor racional, seja motivo de vergonha dar importância às regras aleatórias do “caos”.
Chegamos mesmo, na presença de alguém mais antagónico aos "acasos", quase sempre a optar pela negação e dizemos qualquer coisa como «não há coincidências na vida, meu amigo», sem conseguir esclarecer o que quer que seja.
Portanto - para não sentir o embaraço - tratam-se de “coincidências” se duvidamos de nós próprios e, se duvidarem de nós, tratam-se de “não coincidências”.
De qualquer das maneiras, impera o princípio de que nada é casual e tudo tem uma razão de ser. Não sabemos bem o que é que significa, mas SIGNIFICA e temos de categorizar qualquer coisa para justificar o DESEJO ou o PRAZER que nos faz invocá-las.
Talvez por limitação intelectual, simplicidade de género ou inteligência rudimentar (deixo isto à vossa consideração), cá em casa, só há um modo cognitivo. Qualquer conteúdo (informação) válido tem de passar pelo mesmo crivo básico de conhecimento: primeiro o destrinçar da realidade em moldes racionais e comprovados, e depois a formulação verificável dessa mesma realidade.
Se tal não for passível desta fórmula considero estar perante factores e variáveis indecifráveis ao pensamento comum.
Assim, quando me acontecem coisas que não tenho como classificar e guardar transparentemente, nessas alturas vale-me sempre a ambivalência desse mundo imenso que é a Estética (que vai do belo ao grotesco) e onde podemos “enfiar“ quase tudo do que somos. Incluindo a espiritualidade e o misticismo que não tenho, mas que alguns amigos insistem que abrace serenamente nos dias de melancolia desesperante.

O Homem vive num tríptico ético lixado e que consiste em encontrar o entendimento viável entre a sua razão, a sua emoção e a acção enquanto indivíduo que preconiza com os demais.
Quando o imprevisto da “coincidência” tropeça em nós, das duas uma, ou o encaramos como pertença do caos organizado da vida que não interpretamos por limitação ou desejo, ou entregamo-nos à sua evidência ainda que misteriosa.
Os anos de 2004 e 2005 têm sido particularmente “particulares” cá em casa, onde habito simples, solitária e doentiamente noctívaga.
Quase posso afirmar que têm sido meses de descobertas tão dolorosas quanto maravilhosas.
Por exemplo, tenho dois amigos novos e o casal que constituem como que me reposicionaram afectivamente em relação ao mundo humano. Puseram-me, inclusive, a questionar-me a mim própria como “entidade” geradora e não mera “individualidade” sedimentada.
Hoje, pergunto a mim mesma se a fertilidade do desejo ou a dor da sua ausência são sentidos de acordo com a intensidade com que os observamos nos outros ou de acordo com a medida em que os temos cá dentro...
Se é consoante a nossa realidade ou a que nos extravasa...
Nos dias de hoje questiono-me como nunca o fiz e bem posso agradecê-lo a Alex e Tim, pois experimento o seu amor poético que inspira em mim e no Bocadosdegente um alterego fundamental para o meu crescimento individual e protege-me de alguma insanidade romântica.
Quando criei este blog, entusiasmada por homens das letras, permiti ao mundo estranho que me conhecesse “diferente” e, para minha surpresa, fiz dos hábitos velhos da leitura e da escrita que me acompanham desde muito nova, alavancas para deliciosas “coincidências”.
Se tenho vivido várias “coincidências” felizes, bem posso agradecê-lo ao casalinho do Carmo e à sua beleza que não quero «desperdiçar, porque não pode ser só uma coincidência», tão gratificante e completa que ela é.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

http://www.quackwatch.org/04ConsumerEducation/coincidence.html

19:07  

Enviar um comentário

<< Home