segunda-feira, setembro 26, 2005

Meu querido J.C.

Quando o tempo passa sorumbático, como neste fim de Verão de dias indecisos de calor ou frio, tudo me parece tão irrisório como especial em simultâneo, independentemente do meu estado de alma.
Graças à temperatura, à luminosidade peculiar desta época e ao efeito que ambas produzem em mim (a hipersensibilidade), chego ao fim das horas úteis convencida de que masoquistamente me dispersei do essencial por ficar pela leitura e interpretação quase esotérica (que não é nada, no fim de contas) do fluir do tempo e sem fazer programa algum - que costuma nestas alturas ser um imperativo.
Depois de 1 hora a tentar deixar a cama pelo silêncio sedutor próprio de um quarto interior, demoro mais 3 a tomar o pequeno-almoço. Como se a fruta descascada e o leite quente possuissem sabores novos e a meia-luz entre a janela baixa e eu própria (também baixinha) tivesse o efeito de íman na palhinha italiana que elegi para despertar o palato e o corpo (mania: duche rápido, frio e corpo seco ao ar, faça chuva ou faça sol).
Hoje, a excepção aconteceu. Telefona-me o J.C. para me dizer que como a mulher e filhos eram vegetarianos e o seu irmão A.C. adorava motos, estava naquele preciso momento sem companhia e doido para comer uma tosta de presunto-pata negra na feira medieval de Óbidos. É que sem companhia nestes dias tímidos, a solo não era capaz de manjar algum, mesmo a tal tosta.
Só que a surpresa de J.C. não era apenas de vocalimos gulosos. Assim que anui ao convite, apercebi-me que já estava lá em baixo e à minha porta "montado" naquela moto nada-discreta e acenando vigorosamente para a minha janela!
Em meia-hora tive que finalizar a higiene e vestir-me à cautela, desconfiando à partida que um pret-á-porter descuidado ainda me viria a sair caro. A probabilidade de uma determinada coisa acontecer está algures entre o número de momentos favoráveis para que isso ocorra e o número total de ocorrências reais.
Por exemplo, para eu ficar presa na rua sem conseguir entrar em casa, à partida só pode acontecer na companhia do J.C.
Ficar sem a agenda particular que substitui a minha memória rasca (onde tenho todos os contactos necessários, incluindo o meu próprio telemóvel), os cães presos do lado de lá da porta e sem nenhuma janela aberta por causa do fresco, num fim-de-semana em que todos os vizinhos se piraram para fora e com o tempo que passa sorumbático... SÓ COM O J.C.!
O J.C. encarrega-se de todos os «momentos favoráveis para que ocorra» e sempre que aparece promete!
Curiosamente, estes últimos dias de Verão que me afectam estupidamente o estado de espírito, junto costumam trazer "montado" na moto e para a minha porta, acenando vigorosamente, o J.C. com programas bestiais.
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A probabilidade de J.C. sofrer da mesma psicose qualitativa dos ciclos solares e sazonais que eu, está algures entre a razão numérica dos momentos favoráveis para que isso ocorra (as estações do ano em que a mulher e os filhos vão comer ao restaurante e o seu irmão sai para testar as motos) e as vezes todas que por causa dele fiquei "pendurada "na rua!
Ou então a teoria é outra, não a DA PROBABILIDADE, MAS A DO CAOS!
Ao contrário do que se pensa, contextos simples (como um pequeno-almoço em Óbidos) nem sempre produzem acções igualmente simples. Por detrás da aparente desordem (como ficar presa na rua e sem soluções à vista) há uma ordem escondida, e não é CLIMÁTICA!
Se procurar bem no aparente acaso, talvez encontre um conjunto de determinados factores e outros processos aparentemente casuais, como por exemplo o J.C. ter decidido há muito tempo que eu é que lhe aturo as loucuras dos 59 anos.

Meu querido J.C.