quinta-feira, setembro 22, 2005

Aqui, com Ondjaki

Os dias de assim só partilham com os comuns as 24 horas, essas em que estendemos o tédio morno e sem causas como lençóis para corar nas soleiras (não fôssemos filhos da ambiguidade do existencialismo e talvez fossemos mais felizes).
Ou os 1 440 minutos que sequenciam todo e qualquer gesto em consciência em vez de incorporá-lo num automatismo drogado.
Ou os 86 400 segundos impotentes ao seu destino de virem a nós tão simplesmente como o sol se põe no entardecer ou se levanta na aurora.
Porque o real-pessoal é aquilo que decidimos que pode 'ser real' da mediação entre o interior o exterior dos nossos limites, nos dias de assim a verborreia da vida só é interior e espiritualmente surrealista.
Se assim não for, domina a resignação (um sentimento que tanto aproxima como nos afasta do discernimento) e que permitimos que respire e pulse na urbe linfática para mera coabitação e entendimento com os outros.
Nos dias de assim, sou assim como nada(!!!) e assim como tudo(!!!) o que me aparenta alguma razão (mesmo que só a sua), como Ondjaki!

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«Comé Josefo, o mô manbo?»
(...) Sem explicar, nunca, o porquê desse terror. Nas suas palavras simples, no seu tom morto de falar, ajudado e provocado mesmo pela quase total ausência de gestos, descreveu aos primos o Virgílio, de tez amarelada escura, com cabelos ruivos e encaracolados.
Conseguiu descrever e explicar o ar de velho daquele miúdo que, não ultrapassando os catorze, já tinha de certeza mais de trinta e cinco anos. Descreveu ainda o seu lento passo de lúmpen, o seu olhar controlado e calmo, os seus músculos escondidos na falsa magreza daquele corpo e as suas vestes incrivelmente semelhantes à dos cubanos que têm pouca roupa. Descreveu até o tom castanho dessa roupa que tingia não só todo o corpo do Virgílio, como a sua maneira de ser, de olhar, de estar, de roubar, de persuadir, de intimidar e até de dizer calma e fantasmagoricamente: «
Comé Josefo, o mô manbo?» (...)
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Padre Inácio, o Mata Anjos
(...) O que faria ele ao padre sem a arma? Uma valente carga de porrada.
No seu sorriso verde, enfeitado pelo musgo que aquela hora da tarde já tinha crescido muito, lá estava o padre Inácio na sua pequena horta, apanhando tomates verdes e alfaces tristes. Quando viu o Sr. Tuarles, e quando viu igualmente que ele não vinha em missão de paz, nem tão pouco numa outra missão qualquer que não fosse especificamente a de guerra, engoliu então o seu sorriso bolorento. Analisou rapidamente as suas hipóteses de fuga e tentou ainda correr. Foi a sua barriga que o traiu. Foram os seus tornozelos gordos e pouco flexíveis que, com a intencional ajuda da barriga, o fizeram cair.
(...) O facto de ter passado meia hora a esbofeteá-lo, e de o ter trazido para a rua, eram meros artifícios a que recorria para não ser mais violento. Era a maneira que tinha arranjado, inconscientemente, de não matar o padre à porrada.
(...)
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Kuíto (Três faces)
(...) Mas que eram as mortes naqueles primeiros dias? Que era chorar ou ter fome? Dentro de toda aquela confusão interior, alguém mais sabia onde acabava uma sensação e começava um sentimento? E quando chorava, esse alguém podia dizer com certeza por que chorava?
(...) os próprios cães tinham o sistema nervoso central afectado pelo barulho da guerra e já não mijavam como antigamente. É verdade. Faziam-no à noitinha, cheios de medo, como se cometessem um crime. Quem os visse nessas alturas descobria nos seus olhos um medo inexplicável. Aliás os cães deixaram de mijar levantando uma perna, pois chegavam a cair. Quando mijavam, não sei porquê, tremia-lhes o corpo todo e eram então assaltados por aquele medo da guerra. Foi assim que os cães no Kuíto, começaram a mijar com as quatro patas bem fixas no chão.
(...)
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Infinitamente nua
(...) - Para onde vai o amigo?
- Vou para mais longe.
- Mais longe onde é?
- É onde se pode ainda olhar mas já se está longe do sofrimento.
- Mas o amigo alimenta algumas esperanças? - perguntou o anfitrião, receoso.
- Não... não alimento esperanças mas não posso abafar o amor. E a nudez, essa guerreira, mata-me o coração a cada momento que me visita. Ela sabe onde me atingir...
- E o amigo... como é que se vai curar desse mal? Quer dizer: ela é uma mulher...o amigo, um micróbio...!
- Pois é, mais sorte teve o sapo...
(...)
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Na cómoda (da) velhice
(...) Quem passa de comboio quase não pode ver a cadeira antiga e enraizada pois que o velho repousa sobre ela todo o seu mistério de ali estar sentado, de ter contratado setenta e duas máquinas de lavar para lhe fazerem companhia na velhice - que foi precoce! - de ter condenado à tristeza máxima sem lágrimas correspondentes um belo cachimbo de marinheiro oferecido por um comandante madeirense, de ter inclusivamente contratado uma inteira e paralela linha férrea e um comboio de mil e muitas viagens com setenta e nove mil passageiros por ano para passar ali muitas e muitas vezes, observando-o, sustentando-lhe o vício de estar sentado(...)
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§
Onjaki: "Momentos de aqui" (Editora Caminho)

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

jhgjhgjhgjhgjhvjvjgkjfyfytdiputa

14:03  

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