terça-feira, novembro 30, 2004

As madrugadas

Posted by Hello
Chove torrencialmente, chovem ruas esvaziadas de gente pela hora tardia a que a noite obriga. A cidade encharcada está fria até para os moribundos e noctívagos que nunca lhe resistem na madrugada perene e libertadora.
São corações apartados do afecto caseiro que não os espera, estes que na noite tomam as ruas como suas porque se sentem livres e nem hoje temem afogar-se nela, indefesa e abalada que está pela enxurrada.
Desfigurada pela água que mais parece jorrar das suas entranhas do que vinda do céu e engoli-la em torrente, a cidade seduz e convida a tacteá-la nas calçadas luzidias por demasiado
lavadas e pelo alcatrão de tonalidades férreas serpenteantes que agora a veste.
Não sei se por defeito ou feitio, sempre acolhi a melancolia citadina onde a solidão se revela feliz e acompanhada pelas luzes vivaças dos candeeiros e se faz amorosa com silvos surdos aos que a invadem na generosidade do refúgio desinteressado que oferece quando abandonada pelos que a martirizam de dia porque a esburacam e a esventram para dela se apoderarem.
Faço as ruas, cúmplice com a quietude, solitária como ela e que alguém esqueceu, gozo-a fugindo divertida das poças que se atravessam e evito desconfiada os pingos grossos da água acumulada nos varandins, nas varandas, nas janelas e até nas portas, todos bebidos por uma humidade fétida que escorre o desperdício da violência diurna
para as ruas e para cima de todos que a exploram limpa e fértil por descoberta no dilúvio.
São 6:ooh da manhã, chove a potes e a cidade está atascada em água, mas nem isso me rouba a madrugada e os seus rios vivos que ferozmente abarca e recolhe tudo e todos numa epopeia oceanática que reclama uma atlântida dos sentidos.
Por mais que a inveja seca nos espreite nas janelas cerradas e nos fite quente e animosa às portas que a defendem, protege-nos sempre a 'mãe-madruga' e às nossas almas dispersas que ganham corpo quando iluminadas pelos candeeiros 'celestes'.
Fustigada pela água que já me gela os ossos, sigo para casa e abandono o que ficou lá fora e que em mim luta contra a indiferença de uma cama que alberga o corpo orfão.

Provocam-me os lençóis a espreitar a madrugada lá fora e assegurar que não se esquece e me aguarda sempre que quiser e a solidão aprover.

Se eu pergunto ao mundo, o mundo há-de me enganar.
Se eu pergunto ao mundo, o mundo há-de me enganar.
Cada qual acredita que não muda e que só mudam os demais.
E passo as madrugadas buscando raios de de luz.
Porque a noite é tão larga? Guitarra diz-mo tu
.

Se é crua a mentira do que foi a terna verdade.
Se é crua a mentira do que foi a terna verdade.
E até a terra fecunda se incomoda a dar-me e a dar-me.
E passo as madrugadas buscando raios de de luz.
Porque a noite é tão larga? Guitarra diz-mo tu.


Os homens são deuses mortos de um templo já derrubado.
Os homens são deuses mortos de um templo já derrubado.
Mas os sonhos já se salvaram que são uma sombra de paz.
E passo as madrugadas buscando raios de de luz.
Porque a noite é tão larga? Guitarra diz-mo tu.

Mercedes Sosa



segunda-feira, novembro 29, 2004

Um vão de escada de um exíguo r/c é o cabaré dos meus vícios

Talvez pela velhice aparentada a minha tabacaria preferida é a do sr. Manel, homem simples que fez do vão de escada de um exíguo r/c na José Falcão o cabaré dos meus vícios.
Mesmo ao pé, do outro lado da Almirante Reis, é-me oferecido um quiosque de interior a cheirar a carvalhos nobres e onde se respira um élan distinto e insólito com o que lhe vive à porta e bem defronte à grande porta envidraçada e trabalhada em ferro forjado da conhecida Portugália.
Tem no charme um ‘quê’ de ex-libris que só lhe dura o dia porque chegada a noite, entre 'pielas' e ‘piélados’, o quiosque e a cervejaria inteira perdem mérito e elegância.
Nesse, que até me está mais à mão por deste lado da Avenida, já só me espera parca revisteira feminista e alguns bons charutos que a minha bolsa não alcança.
Enquanto o sr. Manel, atrás daquele balcão rústico e castiço - projectado por si e não por uma notoriedade qualquer – ele já me oferece os jornais e o tabaco com mãos que o acaso me apresentou e que me fascinam porque contam folhas e mais folhas, parecendo conhecê-las humilde e sem presunção.
No da cervejaria quem me atende é uma senhora de cabelo armado de potalco em cima de uns bons 60 anos e com ares de alinhante da corte de Luís IV. Atira-me como que envergonhada os pacotinhos inofensivos de mortalhas - bem entalados entre os dedos marginalizadores e anéis de pedras obscenas - e o tabaco sufocado pelos grossos açaimes de ouro.
As mãos dela têm uma rugosidade demasiado lisa e lavada para mexerem e afagarem jornais todos os dias, enquanto nas do sr. Manel brilham unhas de tez escurecida aos nossos olhos viciados no offset, e que, como ele, nunca conheceram leituras empedradas em escritos preciosos.
Danam-me todas as regras de boa educação aprendidas sempre que por lá passo.
Saio rápida e discretamente no último segundo tolerante antes do segundo último de irrazoabilidade e desatino.
A ‘marquesa’ deixa-me pairando pelos revisteiros uns valentes 15 minutos para me demover da intenção compradora e quando se conforma à minha presença persistente pergunta-me sombranceira de óculos na ponta de nariz:
- O que deseja a menina?
Fico danada e saio contrariada antes de lhe dizer o que quer que seja. Contrariada pelo pedantismo barroco e emproado da ‘marquesa’ e pelo parco orçamento que não me deixa dar-lhe uma lição.
Retiro-me sempre a jurar que mal caia o ‘carcanhol’ no fim do mês vou lá.
Chego e entro logo a matar com a retórica cívica da liberdade individual da ‘forma’ e ‘objecto’ do vício que cada um tem por direito (ou o que me ocorrer melhor) e a seguir dou-lhe o golpe fatal, pedindo-lhe como quem não quer a coisa que me junte às mortalhinhas e tabaco de enrolar o “Le Monde”, “O El Pais”, a “Wallpaper” e, porque não, umas modestas cigarrilhas espanholas que sempre são mais em conta.
Não tenho como explicar sentir-me mais atraída pela manga de flanela coçada que afaga o “Público” borrado em vez da manicure ostensiva que calculo assente muito bem numa “Vogue”, “Elle” ou “Cosmopolitan”.
Se calhar tenho que comprar a “Marie-Claire” com um saco e guarda-chuva a condizer com a “La Maison” e assim ficar nas boas-graças da ‘miss’ para a seguir poder solicitar uma ou duas “Gorilas”, que até nas pastilhas ela me marginaliza.
Não gosto, não tenho o hábito só que por vezes preciso apimentar o hálito fumado e vejo-me obrigada, dado não ter escova de dentes à mão, vejo-me forçada a comprar uma pastilha que parece nunca lá haver (a não ser no sr. Manel e de todas as formas e feitios) e a senhora até me esguelha expressão absurda pela existência de tal coisa pequenina que não sabe o que é nem nunca ouviu falar.
Tretas!Tudo tretas!
Se lhe pedisse porventura umas “Ice Creams” ou “Flips” ela sorria afável e até num registo familiar.
Tretas! Tudo tretas!
“No problem my friends” o sr. Manel nunca fecha ou ousa frustrar quaisquer demandas, que aquele balcão minúsculo esconde tesouros para qualquer um ambicionar sem pretensões de classe.
Um dos quais – senão o mais especial e magnífico – o próprio SR. MANEL. Almoça, ouve rádio, repousa e volta a jantar se for preciso porque algum cliente distraído se resolveu tardar.
Serve os caprichos todos e se a memória de algum gaveto lhe falhar também não tem por melhor “que se vier amanhã menina, não se preocupe que logo se há-de arranjar”.
Abençoados sejam os simples e afiançados dos vãos de escada, de sapateiros a jornaleiros, de relojoeiros a alfarrabistas, todos os que se escondem orgulhosos nos quiosques entaipados pela modernidade incolor e nos vãos da humanidade urbana que nos resta do tempo litúrgico em que esses eram ‘senhores’, eram os salva-vidas dos pecados sem hora nem demora e redentores dos ócios e manias.
Vivam os srs. manéis que ainda resistem à frivolidade consumista e se espalham dignos nas profundezas velhas da memória da cidade!!!!

sexta-feira, novembro 26, 2004

O género feminino

Acordei com grande relutância, vesti-me à toa e fui ao único café aberto na rua. Passei para lá das enormes vidraças e segui a escuridão num chão granítico e demasiado polido para as botas ensonados e de atacadores desapertados ao pendurão pelo pescoço, que bem queriam agarrar-se à ganga, zonzos que estavam, e se sentiam da brusquidão calçada, mas até as calças contrariadas e doridas pelo brilho dos mosaicos se esquivavam deles.
Éramos mais dos que eu esperava ali encontrar fechando os olhos violentados pela luz artificial e que bem há pouco tinham deixado a escuridão sonhada e o leito solto da noite.
Muitos e demais ali no café, naquela manhã tão radiosa quanto violenta aos sentidos adormecidos.
Um velho lê o jornal entre lamelas de comprimidos e um papo-seco menos convidativo que a torrada assada e um sumo de laranja efervescente do outro e último homem ao lado e prostrado num tampo novo por desinfectado.
Esse menos velho procurava nos óculos o equilíbrio entre o infortúnio e o azar da vida, os números mágicos do totoloto que por certo o levariam daquela rua cinzenta e triste que só lhe permitia adivinhar o sol entre uma marquise descascada e uma chaminé quase desfeita e o encaminharia à felicidade entalada entre dois ponteiros velhos, os que perfaziam a hora exacta das 11:27, a hora para o milagre fervorosamente desejado que trepava e se fazia ao céu como Ícaro um dia.
Dois homens cinzentos e sem asas para alcançar o paraíso e eu mais cinzenta ainda naquele subterrâneo de piso nobre à procura de não sei o quê que aquela noite falsa do café roubava ao dia perfeito fora dele.
Hesito a sentar-me, hesito a manter-me de pé, suspendo-me curiosa com os homens e mais quatro mulheres que comigo descubro absorvidas e escondidas na sala e mais inertes que as sombras que ali se emparedavam.
Sem jornal, comprimidos ou pequeno-almoço, nada tinham consigo e por si, só despidas de intenções e penduradas na luz ténue da aurora que sobrevivia na tumba e nelas - como em mim à procura de não sei bem o quê.
Enquanto neles o rosto lhes denunciava objecto e aventura, já nelas desfalecia a esperança acordada e a vitalidade maquilhada da sexo que o domingo lhes propunha a gozar.
Dois homens de vida expressa na presença e cinco mulheres que bastávamos para uma, todas iguais e perdidas nas horas apalaçadas do café que se impunham à humildade decadente e soturna das solteiras matutinas que nos fazíamos.
Naquele domingo o género feminino pareceu-me unido e igualitário de forma vaga pelo eco do corpo enxovalhado pela sonolência e também suspeito, não lhe conhecesse já as solicitudes precárias e pouco sociais no anonimato artificial para lá das vidraças.
No único café aberto da rua, dois homens velavam a existência conciliada e as mulheres deambulava letárgicas nos vãos do granito e nas sombras subterrâneas da sua existência inócua.

quinta-feira, novembro 25, 2004

O baptismo de Comédia

Caodagua[1].jpg
Cheguei a casa ‘à rasca’ com as 14:00h seguidas sem sequer ir à rua ‘morfar’ qualquer coisa pela hora de almoço. Dói-me o estômago obrigado este que foi todo o dia a trabalhar só com nicotina e ainda tenho uma bruta de uma enxaqueca a chatar-me a 'moleirinha'. Bolas!!!!
A seguradora acumula cada vez mais trabalho e proporcionalmente menos funcionários o que resulta na proporção directa do aumento de turnos para o pessoal e um suspeito e epidémico surto de baixas temporárias. Do que é que estão à espera, que o pessoal dê conta de tudo menos da saúde? Bolas!!!!!

(…)

- Comédia? – só a minha ‘fofa’ para me aliviar com aquelas lambidelas quentes que tanto gosta nos meus pés…
- Vejo que já chegaste…
- E vês muito bem. Queres ir já à rua ou posso sentar-me um bocado? Estou estoirado…
- Um bocado não Linfócittos, senta-te todo. Com cabeça, tronco e membros, Linfócittos.

- Uhhhhh……. Estás de 'trombas'?
- Se queres mesmo saber não estou de 'trombas', estou de 'focinho' que é o que tenho. Estou há 6:00h de 'focinho' e aflita para ir para a rua, sabes?
- Uffffff….. Estou estoirado e tu ainda gozas comigo Comédia? Está bem, deixa-me em paz cão! –
com a enxaqueca esqueci-me da única coisa que não posso chamar a Comédia, que é CÃO. Esqueci-me ‘fofa’, foi sem querer…
- Cão? – sentou-se e olhou para cima com o que acho que é um canino de fora Cão de estimação, cão de caça, cão de casa, cão-guia…
- Siiiiiiiiimmmmm Comédia!
- Cão de guarda, cão de fila, cão-polícia, mas fundamentalmente doméstico, o que vigia a casa e te faz companhia!!!!!!!
- Desculpa Comédia, é que estou cansado…..
- Não desculpo senhor Linfócittos que ainda falta o cão-comédia
disse arrogante e elevando a voz.
- Cão-comédia?
- Não me chega ser cão-aculturado, domesticado, socializado e amestrado, como ainda achaste por bem (achaste, nota bem, que a minha opinião não ma pediste), achaste por bem fazer pouco de mim e fazer-me cão-comédia: um cão com graça e comediante.
- Comédia!!!! Estás agora a ser injusta!
- Deixa-me, larga-me, livra-me e ‘achentra-te’ como tu tanto gostas de dizer. Não sou cómica e muito menos tenho jeito para comediante! Ouvis-te????
- Cccooooooommmééédddiiiaaaa? –
está chateada mas que se 'dane' , logo dou-lhe um osso e fazemos as pazes.

(…)

Comédia é como as mulheres: dá-se-lhes um mimo e dizemos-lhes que são o nosso ‘mais-que-tudo’, que há dias que são ‘lixados’ e não nos lembra sequer que elas não têm a culpa: Bidu, bidu…. Não é ‘fofa’? – e ‘pimba' caiem-nos logo no papo.
Claro que com a senhora Comédia não foi tão rápido e até exigiu dotes de retórica que eu nunca pensei que tivesse. Levei dois dias a convencê-la que tinha sido um nome escolhido com muito cuidado e com base de sustentação forte.
Era bestial porque associava sempre a algo ou alguém de espírito crítico – omiti o seu jeito leve e de 'graçola' -, com a particularidade de evidenciar também um conhecimento profundo das circunstâncias sociais, ideológicas e culturais do tema em questão, o que lhe dava um estatuto priviligiado (até lhe lembrei que o amigo dela - o Aristóteles - é muito afamado pelo estudo da comédia e da tragédia).
Andou um dia a matutar no assunto e veio ter depois comigo dizendo-me que me escusava de armar ‘aos cucos’ porque comédia também é o teatro de humor jocoso e a sátira sarcástica, aliás tudo o que se associa ao ‘gozo’ e à palermice, tudo o que as pessoas tem por cómico e tonteria tolerada.
Tive que começar tudo de novo e esforçar-me um pouco mais para encontrar o argumento indestrutível, o inabalável que a comovesse.
Isto tudo para que a minha ‘fofa’ me desse ‘troco’ outra vez, porque vocês não imaginam o que é viver com Comédia mal humorada, é pior que uma mulher zangada.
Comédia vinga-se com as armas que tem: mata-me de susto cada vez que me aparece por trás a ladrar com todas as notas que arranja, que da última vez até parti uma jarra da minha mãe que quando souber corta-me a mesada.

Rói-me os chinelos alegando que está com falta de cálcio nos dentes, para não falar das 'mijinhas' em tudo quanto é rodapé e perna de cadeira porque no seu entender vai poucas vezes à rua.
O pior foi quando cheguei à Seguradora e numa reunião importantíssima com um potencial cliente eu ‘saco’ todo 'pintarolas' e inchado do memorandum que me levou uma noite a redigir em duplicado para o cliente e digo-lhe:
- Como o Sr. pode verificar a minha companhia assegura-lhe a cobertura de todos os danos em qualquer parte da Comunidade Europeia, danos pessoais e materiais evidentemente. Além disso acrescentámos uma cláusula nova que permite abranger os danos tradicionalmente não cobertos pela nossa concorrência.
Se ler a página 66 vai…. – o meu cliente já estava no ‘papo’ e entretanto começara a folhear o calhamaço à procura da dita 66 – isso mesmo aí…. – olhou mais perto e olhou para mim.
- O Sr. está na página 66? – perguntei claro!
O homem levanta-se e pergunta-me que raio de «danos não tradicionalmente cobertos pela concorrência» é que a minha Companhia pensa entender deverem serem cobertos:
- Está a gozar comigo, homem?
Fiquei todo baralhado e disse-lhe:
- Como? Se o Sr. vir a página 66… – o homem passa-me o calhamaço com a dita aberta e quando eu vou ver o que lá está engasguei-me e comecei a baralhar a papelada toda, aflito que estava.
Estava indeciso, não sabia se havia de meter uma ‘peta’ para aguentá-lo e passá-lo a uma colega, se me havia de rir à ‘fartazana’ com a prenda que Comédia tinha entendido dar-me como forma de protesto.
É que eu até acho que sou um tipo porreiro e difícil de zangar. Têm que me ‘chagar’ muito a ‘carola’ para me fazerem perder o ‘tino’.
Ao contrário do que Comédia pretendia, aquela poiazinha perfeitinha e clara, como todas as que faz (Comédia defende que o verdadeiro carácter de um cão conhece-se pelas fezes, que ela fala assim, não pelas poias mas pelas fezes que deixa no passeio), aquela coisinha limpinha, ali escarrapachada no «artigo nº 64, 4ª cláusula e 7º item» que confirmava «a cobertura total e reposição inteira do valor em causa», não me ‘lixou’ - que por acaso estávamos no Carnaval - mas deu-me um ‘gozão’ do caraças logo pelas 10:00h naquela casa de gente ‘enfiada’ e sem ‘tesão’ algum.
Ri como uma doido, pus o cliente a rir como outro, convencido que estava da partida carnavalesca, e fechámos o contrato onde eu ainda consegui ‘sacar’ uma comissão do 'caraças' para as minhas mini-férias que se aproximavam.
Pumba! Dois coelhos numa cajadada só!


(...)

Cheguei a casa e sério disse-lhe que estava muito enganada a meu respeito:
- Se a senhora pensa que lhe vou mudar o nome por um capricho intelectual seu, está muito enganada!
Nesta casa quem escolhe os nomes é quem trabalha e a senhora que eu saiba não faz nada senão pregar-me partidas todos os santos dias! Isso é que era bom saiba que…. – lembrei-me do «artigo nº 64, 4ª cláusula e 7º item» que confirmava «a cobertura total e reposição inteira da poia em causa» e da cara do cliente a olhar para ele e desatei às gargalhas caindo no chão e rebolando-me com Comédia agarrada a mim – a senho… AHAHAHAHAH fique sab…. AHAHAAHAHAH, desculpa Comédia mas só tu para me fazeres feliz ‘fofa’….AHAHAH
Rebolámos ternurentos os dois e rimos até nos doerem as entranhas.
Dois coelhos numa cajadada só: Comédia percebeu que só podia ser Comédia e eu safei-me da boa, que se Aristóteles não a convenceu eu não sei o que mais podia ‘desencantar’ para a convencer.

quarta-feira, novembro 24, 2004

Os rostos "dos romances que não te pertencem" somos todos nós!

Orgulha-me saber que te engrandece mais um prémio, português e megalítico de outra grande humanidade que foi Namora, médico de todos os que precisaram, fosse de palavras ou da mão milagrosa que sutura a melancolia e a ferida.
Os teus livros têm-me proporcionado dos momentos mais ternurentos em toda a minha literatura, essa com pouca idade e atiçada - quando ‘bem tenrinha’ - por meus pais nesse mundo de letras fartas que numa simples folha de papel agarram e concentram outros tantos, mundos voláteis e pequenos e, no entanto, mais belos que o nosso, que chega a ser injusto quando esquece a generosidade pela vigência das necessidades evolucionistas e produtivas da civilizacão.

Se bem me lembro, a última vez que estivemos juntos foi no "Esplendor de Portugal", obra primeira e antiga da que te glorificaram agora em prémio.
Não precisas de mo lembrar outra vez António. Tu achas que a obra de um romancista só ganha corpo e legitima a memória vivificada quando se aproxima do fim, porque só assim - suada e combatida com corpo no corpo - ela pode reflectir genuína a espessura humana e a sua fragilidade.
Claro, se entendermos que tu és tão comum como os comuns mortais. E se não te considerarmos assim? E se te tivermos como um 'são demoníaco' porque te capacitaste a sobrevoar as entranhas escôndidas da espiritualidade sem que nelas te imiscuas, mesmo sendo tu tão comum aos anseios e desejos dos verdadeiros comuns?
Continuo a achar que o que o autor alcança ou perde não segue uma linha recta e ascendente - afinal sempre terá que "vir cá abaixo" para regozijo da sua inquietação - portanto, não tem que ser lido também com esse movimento crescente.
Daí que ande a ler-te mais antigo e novato em vez do que hoje te aprimorou e quase sublimou como romântico e genial trovador das gentes sólidas.
Não disseste que achavas o último romance de Garcia Marquez francamente mau? Pois é, aqui tens. Porque haveria eu de te ler também dessa maneira? Quem te diz que não tens obra maior nos teus primeiros escritos, ao invés só nos últimos?
Também nós, leitores inquietos e ingénuos, precisamos como tu de ter a esperança no sítio (in)certo para te fruirmos e nos esgotarmos na tua (in)felicidade.
Também nós somos subterrâneos e nem sempre encontramos no teu testemunho aquela palavra certa ou o significado derrador para nos confortarmos das coisas do mundo.
Como cada um é como cada um, imagino que enquantos uns riam de Carlos e Lena na Ajuda patética, eu ame aquela tristeza e cinzentude que os engole e que me lembram as Ajudas de Lisboa senão a mim também.
Dou-te os parabéns por continuares a ser tido e achado nos que enaltecem em escrita os rostos das gentes e seus sentimentos às vezes letais às suas vidas, emoções essas que tu sossegas e paternalmente nos desculpas (como tu compreendes a inocência falsa porque perversos somos quando ambicionamos outros...).
Quantos não morrerão mudos porque não têm essa clareza, essa tua magia que na escrita se evidencia e ganha corpo para exorcitar nossas almas atrofiadas e perdidas, que não há como banir para não nos envergonhar?
Também a passagem do tempo me apoquenta, mas ao contrário de ti, não por achar que me resta pouco para o que ainda não concretizei, mas por ter a certeza de que na velhice quero uma memória surda e hipócrita das coisas dos homens.
O mundo é demasiado feio para as minhas expectativas e desejo apenas que passe por mim rápido e ausente nas suas (des)evoluídas conquistas do tempo e da minha memória para que amanhã não tenha que chorar o milagre que não há como não haver ou ter sido, ou a obra que nos traíu desumana e cruel.
Sei que todos temos um papel na desenvoltura desse universo cósmico que erigiste e tão bem recheias, o que não temos é a inteligência afectiva para dar-lhe continuidade dentro de cada um de nós.
És a longura romântica e o busílis do meu desassossego e angústia, eu que faço parte dos humildes que precisam de ser iluminados para que se sintam dignos como operários e nobres na sujidade e sapiência da sua passagem breve e inócua por cá.
Somos os que esgrimimos a tua "vaidade e inveja" para que o sangue nos pulse nas veias, dilate em vida e te possamos oferecer esse caos humano de que te inspiras e onde nos fazes ricos afinal de tudo.
Meu avô, camponês iletrado mas sábio porque entregue à paixão pelo mundo, diria com certeza que és o pastor da serra inóspida e perigosa que o recolhe à sua consciência, ao conforto do 'bem simples' e do sentimento profícuo mesmo que marginal e autista para os senhores da verdade e da moral.
Precisamos ver-nos outra vez. Talvez agora possa agarrar no teu último romance, agora que "cá debaixo" e com outros preciso de te rever outra vez para me encontrar novamente.
Como sabes, a vida tem poucas glórias e nos últimos dias tenho tido a casa perdida e abandonada porque ousei conquistas que só agora reconheço não estar à altura delas.
Sei que se te ler posso recuperar a serenidade e sentir a paz como elas são verdadeiramente intensas e belas: no sonho comandado pelo impulso do desejo, no sonho acordado.
Aqui são perfeitas e alcançáveis porque os teus romances mesmo duros dão-lhe corpo e a razão justa dos sentimentos.
Mesmo a justiça sem lógica e inconsequente, porque expressão do amor absoluto e instintivo: em "sangue, olhar e gesto".
Preciso de ti neste momento porque é como tu dizes e muito bem: "um amigo é aquele que não necessitamos para falar. Há uma partilha, até de silêncios".
Quando "Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo" chegou aos escaparates não hesitei - e aqui me confesso, estava num frio e impessoal hipermercado - e agarrei logo num exemplar, sem que não o afagasse primeiro para certificar-me ainda virgem, não fosse alguém antes lhe ter pegado e levado algumas palavras consigo.
Comprei-o e logo em casa o folheei, mesmo sabendo-o reservado para mais tarde, que outros autores entretanto me ocupavam.
Contigo é assim, abro ao acaso um livro e salta de lá o amor viúvo nunca mais esquecido, ou então, reconheço espelhada a fúria cega por intolerância do dia anterior ou a loucura desbragada de um abraço solto que deixei numa rua qualquer.
Não quero sugerir com arrogância que sejas o meu redentor, configures na escrita o oráculo certo de cada incoerência ou aberração minha e que exorcitas fatalmente nos escritos.
Não, claro que não. Não és o "divino", nem nós sujeitos tristes e perdidos de desgraça que precisemos do código da tua loucura sã para de tontos perigosos passarmos a excênctricos inofensivos.
Não, as aberrações e os demónios que temos continuarão a sê-los e a deambular pela vida mesmo depois de te lermos. Talvez mais ricos por revelados, não?
O estranho que te lê e se confessa continuará estranho para os outros, porque o teu mundo é o teu e não o nosso, que não é fácil de entender e explicar porque assombrado, mais estranho e absurdo que o teu que nos abre uma porta amiga.
Como podes dizer que às vezes te soa tão estranho o que escreves como a nós, esses sim, que assistimos na tempera final e consumada, sem essa mestria e força de pulso 'sonar' que te move aos instintos mais bárbaros e egoístas.
Penso que o afirmas como defesa e talvez tentativa de não te sentires superior aos "cá debaixo", os ilógicos e de costas viradas para o amor fraternal.
Não precisas, nem queremos que reinventes a tua fragilidade porque assim o mundo não tem salvação, sem românticos como tu ainda seria plano...
Precisamos todos dessa oratória infame e inflamada que tens já que a indiferença nem sequer nos leva ao confessionário.
Precisamos que apontes todos os 'judas' que puderes porque só assim podemos contar com alguma dignidade na morte, porque tu - que até nisso és brilhante, tu que não tens medo de morrer mas pavor que a mão te falhe - com essa capacidade de arrancar do sorriso anónimo a pequenina história de amor ou a paternidade infecunda, não queremos que te atrofies ou absolvas para o quedar do sopro.
Não queiras que tu e outros como tu sejam modestos e humildes porque assim quem nos resta para contraiar e denunciar as falsas virtudes?
Orgulha-te dessas histórias de amor que coleccionas até hoje para nós, que fora do teu papel não têm como ganhar vida, essa o teatro escrito para alguém levar vivo à cena.
Nós que nos queres primitivos em vida para que o centro do mundo sejas tu com essa mão maravilhosa que endeusa as nossas imperfeições e no-las despes para mostrá-las com ternura, as virtudes remendadas de falsa vida por gente viva, mesmo de falsitudes.
Os rostos "dos romances que não te pertencem" somos todos nós, e nós amamos-te por isso.

terça-feira, novembro 23, 2004

A precariedade do que nos é íntimo

Posted by Hello
Não sei se convosco acontece o mesmo que a mim, ou melhor, cá por casa, esta que se fez ermida para os indecisos ou enredados por aventura saída gorada.
Não é a primeira vez, nem a segunda, como não foram um nem dois os que se recolheram ao silêncio tépido e cativo pelo conforto vazio e quase religioso que aqui ancorou para sempre.

De todos os convivas que se suspenderam neste modesto abrigo fica sempre o mesmo objecto íntimo para a posteridade afectiva e lembrança.
Distintos no estatuto e missiva que os trouxe cá e mesmo particulares no vivenciar confinado destas paredes, revelam, no entanto, a mesma intimidade frágil e com aparente pudor ao que lhes lembra o azar remendado.
Chegam suspensos do que deixaram e não voltam a ter, ficam de igual forma pela impessoalidade do provisório que os abriga e vão embora ainda mais suspensos pelo hiato, 'espaço em branco' e intervalo na vida que foi generoso mas precário porque suspenso de arquitecturas para a vida.
Um filho do imprevisto, do não contemplado e desejado profundamente, um contratempo remediado pela casa que os afagou dócil no leito e nem assim lhes vale recordar porque fruto da intimidade temporal.
Não se esqueçem de nada e só porventura do que lhes era mais seu, mais íntimo e absolutamente intransmissível - que anda sempre com eles e às vezes até se multiplica e desdobra como as circunstâncias da vida.
É a primeira coisa que garantimos que não nos falte como 'o pão para a boca' e talvez porque mete precisamente a boca - a boca do som, o som que é nosso e nós que saímos pela boca - é o mais íntimo que podemos ter.
Das duas, uma: ou estou ingenuamente a rejeitar prova maior de amizade ou então a intimidade é um universo precário e susceptível de se marginalizar pelo capricho, como a memória do infortúnio remendado.
Afinal, de todos os que viveram nesta casa - se há alguma coisa mais pessoal do que isto então não sei -, todos deixaram por lá a Escova de Dentes e só não sei se é prova maior de intimidade para comigo se prova absoluta de que a pessoalidade com os outros é um bem frágil e devoluto, se lhe der para aí...

segunda-feira, novembro 22, 2004

"Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo"

«O que eu queria explicar-te e que é tão simples, é que acho que gosto de ti, devo gostar de ti mas o meu gostar de ti afastou-se tanto que não sei, devo gostar de ti mas não me importo que fiques sozinha, não me preocupo contigo conforme não me preocupo comigo (...)»
António Lobo Antunes
Prémio Literário Fernando Namora de 2004

domingo, novembro 21, 2004

Os filhos que não alcanço no elevador para minha mãe

Posted by Hello

Nos meus afectos, e asseguro-vos que são fortes e bem estimados, neles os filhos não existem, ou pelo menos não se afiguram como tradicionalmente são.
Não me ocupam espaço, nem ganham forma nas minhas expectativas, que eu bem os procuro e esforço-me mas não os encontro.
Tentei, ai isso é que tentei! Mesmo assim não os acho...
Um dia, num elevador exíguo e perversamente espelhado, descia eu com minha mãe, descíamos as duas em conversa bem lá do alto dos andares que nunca me pareceram tão altos como naquele dia - ou pelo menos nunca os tinha subido ou descido assim.
Sem razão à vista perguntou-me se não pensava em filhos.
- Filhos? - repeti-a em eco sem ainda sentir-lhe o conteúdo - filhos como mãe?
- Filhos. Acho que gostava de te ver com um. Talvez me desses um neto…
- Um neto mãe? Que tal arranjar um pai primeiro? - perguntei-lhe malandra.
- Não falo de um pai, mas claro que precisas de um homem. Apetecia-me um neto, um filho teu sabes?
Tínhamos partido do 6º andar e chegávamos ao 3º na segunda tentativa materna ao
convencimento:
- Penso muitas vezes que te fazia bem para cresceres como mulher…
- Oh mãe! Achas-me assim tão imatura?
- Não filha, até te acho uma miúda muito interessante. Por isso mesmo. Tu revelas no teu ‘ser’ afectivo um jeito maternal e uma sensibilidade que parece por vezes inapropriada para quem não é ‘mãe’ e não conhece o mundo generoso que lhe é de expressão única. Não sei, penso muitas vezes o quão importante isso não seria para a fragilidade e emotividade que tu sempre revelaste.

- Mãe…….
Pouco faltou para que o rés-do-chão não lhe bloqueasse a terceira tentativa ao argumento e tese e eu pudesse abrir logo a porta do elevador e deixá-la lá dentro mais a sua persuação espelhada e gorada e me lançasse ligeira à rua que se reflectia mais ampla e livre - lá fora não insistiria e esqueceria as investidas mátrias na falta de privacidade do exterior agora ocupado
por outras filhas e mães que se lhe impunham distantes entre si.
Por razões que agora não são importantes, uma vez chamei por esse filho mas nem o amor de mãe mo conseguiu arranjar.

Desencantar essa criança que não lhe concedo para regalar e apaziguar o seu coração generoso, que bem me esforço mas não o encontro (procuro e não o vejo à beira do meu corpo, dentro dele...).
Vejo crianças, isso sim, até as vejo nos meus sonhos ou fantasias – chamem-lhe o que vocês quiserem - mas elas não são diferentes de mim nem de ninguém.
São gente mais pequena e estranhamente perfeita.
Perfeitas porque simples, e toscas também, como tudo o que brota novo no segundo imediato ao segundo anterior quando não eram ainda nada.
Perfeitas porque são como são, sem precisarem de ser o que quer que seja, e por serem irredutíveis no que se propõem naquele segundo exacto, são toscas porque puras e perfeitas, porque livres do juízo consideratório a ser qualquer coisa.
Eu sei, isto não são crianças, talvez só imaginários sentimentais e simbólicos do valor hipotético dessa criança em mim.

Talvez por isso elas me visitem como gente igual aos outros e a mim, só que mais pequenas e perfeitas, porque não as deixo crescer e ser gente.
Porque a perfeição não fala nem ouve - que o que dizem não se resume a nada senão ao espelho do que sempre existiu e que parece que já fomos.
Como somos sofisticados e evoluídos, nós nem nos lembramos do que é 'ser' meramente pela força do 'ser' , no vivificar, particularmente no que toca ao sentimento, que não se consegue configurá-lo sem pretender a construção de qualquer coisa - como só até hoje a criança inocente consegue - ser afecto e alimentar o 'ser' sentimento por si.
Talvez por isso sendo mais pequenas e toscas, não sejam diferentes nem imperfeitas porque afinal não lhes falta nada.
São mulheres e homens pequeninos e embora sejam a cara de outros, não agem nem reagem como esses iguais a si, maiores e sofisticados, não se medem sequer pelas suas acções, pois não reside nelas o que são ou o que fazem delas.
'Ser' por 'ser', exclusivo ao sentimento e afecto com generosidade é demasiado básico e inconcretizável para os que não são crianças, ou direi demasiado perigoso e frágil?
Não passa pela cabeça de ninguém estabelecer os afectos como moeda de troca primordial para ‘ser’ qualquer
coisa para alguém.
Não tem forma, peso e medida. É só o que se propõe por si e é irredutível: é a relação com o sentimento pelo sentimento do ‘ser’.
DELÍRIOS!!!!
"Diz-me o que fazes e dir-te-ei quem és!"
O padeiro senão fizer pão não é padeiro, o empresário se não gerar capital não é empresário, e até um pai se não levar os filhos à escola não parece um pai.
Como explicar isto à minha mãe?
As crianças, essas serão sempre filhas de alguém, mas sobretudo crianças: ainda nada a não ser o sentimento vivo para o sentimento dos que as fizeram.
Não poderemos ser nós também assim nos intervalos da gente grande que tenhamos?
Ser por nós pelo sentimento dos outros?
Porque mesmo que façam pão, gerem capital ou levem outros à escola poderão também ser às vezes crianças e ainda filhos de alguém - duplamente reunirem em si o sentimento pelo devir!
Esta perfeição em ''ser só o que somos para os outros em sentimento, não porque nos fizémos desta ou daquela maneira, mas porque evidenciamos o 'ser' como somos, fomos e pretendemos ser em sentimento.
Como explicar isto à minha mãe?
Para mim um filho não sabe aos filhos dos outros que quando os vejo juntos não me parecem as crianças dos meus sonhos, parecem-me 5 ou 10 dos mesmos e para os mesmos - talvez porque não os conheço.
No fundo e bem no fundo dos meus afectos não é um filho que me sublima os sentimentos e os afectos pelos outros e por mim própria, mesmo sendo ele produto d’O sentimento maior entre gente grande.
Procuro sempre e gosto de sentir o sentimento pelo sentimento nos grandes e não já crianças. Isso procuro e anseio a todo o momento com todos os que fazem parte de mim e do meu universo de afectos.
Minha mãe acha que talvez precise de amar.
- Amar mesmo aquele amor sabes filha? Amar, assim como tu não sabes, um homem para desejar filhos… Acordar sem esse homem ao lado e sentirmo-nos morrer e aí sim, nesse momento, nesse dia que nasce para sufocar até fazer um filho. Percebes, filha?
Percebem vocês? Sabem vocês?

Eu não sei, que nunca acordei assim com um ao meu lado a sentir um filho que ainda não fiz com esse homem que me vai deixar a morrer pela vida.
- Nesse dia tomas o verdadeiro peso do amor e por isso da vida, filha. Porque tu és nele e ele em ti... É isso o amor, filha...
Fazes-te nele e nele te esgotas como sopro de vida. Só nos esgotamos assim quando os filhos nascem, nos arrebentam as entranha e cegam o ódio aos nossos homens.
Pois é, deve ser assim o tal amor.

Esse homem chega e é o primeiro dia da nossa vida e assim nos traz um filho que não se pode fazer sem se amar assim, isto se esse homem for o que ela diz e o filho como pretende que seja.
Imagino que as mães também sirvam para nos lembrar os filhos que não alcançamos no elevador e os homens por quem ainda não sufocámos até fazê-los.


sábado, novembro 20, 2004

... Mente insana

Casos há onde a sinalética identificativa e exterior do indivíduo não passa pelo acessório que se põe e dispõe consoante o desejo caprichoso nem pela marca distintiva de um qualquer cromossoma natural.
Pode ingenuamente resultar da simples intervenção menos delicada que não é da nossa própria vontade mas foi vítima da de outrém – comummente um impulso amoroso e descontrolado. Cúmplice ou não do sentimento que se perpetrou, as consequências são inevitáveis e o resultado fica a vista:

- não nos conseguirmos sentar ou levantar sem queixume pelo rabiosque assado do fio dental que se usou para seduzir o companheiro e que como não é feito de um bom algodão mas de um polyester ‘rasca’ nos fez uma alergia aflitiva ao dito cujo;
- aparecermos no emprego no outro dia de manhã com o rosto e pescoço coçado e corado de vinhateiro de taberna porque a preguiça não o deixou fazer a barba e andou surfando pelo nosso rosto toda a santa noite e ainda nos ofertou umas borbulhas jeitosas e pouco discretas;
- o andar trôpego e pouco elegante graças à unha encravada porque insistimos em acompanhar as tendências da moda calçadeira, mesmo sabendo que os 1,53m não se dão em cima de um escadote e nem por isso deixamos de torturar os nossos pobres dedinhos em cima daquelas andas para ganharmos uma altivez de 'pés de barro' numa noite especial com ‘saltos espaciais’;
- e porque não a moléstia ao corpo com a dentada, o apertão ou o simples ‘chupão’ que demora mais tempo a passar que uma ressaca e que chama a atenção até dos mais distraídos. Minto. Atenção é simpatia, suscita, isso sim, e de forma epidémica, uma curiosidade malandra e às vezes obscena na imaginação dos outros.

Não sou adepta da violência - nem a mais comezinha e ternurenta que às vezes nos engana - e até acho que quem inventou que "quanto mais os homens batem nas mulheres, mais elas gostam" deve ter sido um tipo qualquer na eminência da impotência ‘matrimonial-ó-sexual’ que para disfarçar o ego viril resolveu dispersar a malta: eles para não ser vexado pela (in)consumação na mulher e elas para não ser acusado de inconsumível como afinal não são só as mulheres.
No meu entender os homens são diferentes no trato e manuseamento do corpo.

Para as mulheres esse é naturalmente um testemunho do amor. É tão-só o objecto amoroso onde compreendem que se vinguem também nele alguns caprichos e delírios carnais próprios à sexualidade humana mas inconsequentes no que toca à sua fragilidade.
Aceitam maternalmente que às vezes a paixão louca e desbragada as deixe marcadas desse desejo que não resiste a apertá-las forte contra o seu corpo masculino.
Olham-se e muito antes de começarem a sentir o bafo quente e arfável da consumação já ambos os corpos estremecem e como que choram pela satisfação do ‘entrusamento’.
Ansiosos alcançam-se sem medir as forças e a energia que ali se gera naquele primitivismo corporal. Tacteiam-se por fora e por dentro - cheirando-se e roçando-se como os animais - e quando os odores se misturam os amantes entram em transe e consomem-se livres mesmo se gestos mais severos dominarem.
Expressões essas que são quase sempre masculinas.
Ali chocam-se massas volúmicas movidas por forças maiores e encontram-se histéricas e torcidas, em planos curvos e enviusados. São membros que se intersectam em ângulos sem haver como e que chegam a fazer inveja aos teoremas geométricos mais perfeitos.
São sólidos disformes numa moleza rítmica, ora descompassada ora compassada, dos membros inferiores aos membros superiores, dos pendulares aos recolhidos e côncavos, tudo e todos se esgotam e fundem num único corpo.
Quando o afecto é forte e a saudade assaz, a fragilidade feminina é esquecida e o macho viril toma-a confiante e conquista-a mesmo se tímida, porque sabe-a devota.
A mulher distinguiu-se na história dos afectos como o sujeito perfeito para a entrega plena e incondicional ao sacrifício amoroso.
Não há como negá-lo. No campo ou na cidade e em qualquer tempo da história enquanto o homem ganha dominância pela força já a mulher conquista-a pela inteligência e a razão justa dos afectos.
Talvez por isso, ao contrário do homem, a mulher tenha 'telhados de vidro' no que toca à desenvoltura sexual e activismo amoroso. O seu corpo feminino ganha tonalidades e contornos que desabrocham orgulhosos e não se poupam emotivos para o exterior.
Os antigos já diziam: "Maminha crescida, maminha mexida".

(…)

[1.º Dia]
Minha mãe chamou-me a atenção para uma ligeira tumefacção ‘vermelhusca’ e de desenho elipsado no pescoço…
- Não tinha reparado mãe…
[2.º Dia]
Minha mãe chamou-me a atenção para outra ligeira tumefacção ‘vermelhusca’ e de desenho elipsado desta vez do outro lado do pescoço…
- Que esquisito mãe…
[9.º Dia]
Minha mãe perguntou-me se andava a dormir bem, é que tinha uma estranha e ‘acastanhada’ dentição marcada no pescoço…
- Não tinha reparado mãe…
[15.º Dia]
Minha mãe perguntou-me se estava tudo bem comigo, é que tinha uma estranha e ‘acastanhada’ dentição marcada desta vez do outro lado do pescoço…
- Que esquisito mãe…

Depois de 9 meses acamados num ventre de braços líquidos e ternura oceanática, nascemos feitos num corpo mole e desconjuntado que é testado que nem bife a levar um entalão.
O que antes nos resguardava dócil e perene, de repente enjoa-se e resolve cuspir-nos, agoniado que já está do nosso pequeno corpo entalado na garganta.
Vomitam violentas a massa frágil que somos para um mundo também violento e de ar insaboroso que nos arde nas goelas que só querem gritar o quão tiranas são as mães que se acham proprietárias vitalícias da nossa fragilidade.
Até morrermos somos sempre parte do corpo delas, não é?


sexta-feira, novembro 19, 2004

Corpo Santo…

É frequente surpreendermo-nos quando circulamos pela rua com ‘estranhezas’ se não ‘entranhezas córporas’, se mo permitem dizer assim. Cruzamo-nos com figuras bizarras que desconfiamos serem mais andróides pelo metal que carregam do que humanóides que não lhes alcançamos muita carne à mostra.
Basta chegarmos ao Chiado para encontrarmos em tertúlia "cacofónica" espécimen’s cobertos de tatuagens e piercings em número suficiente que ganham aos pontos o ferroso e esverdeado Fernando Pessoa.
Alguns em quantidade razoável e numa proporção que nos permite ainda visualizar um centímetrozinho de pele descoberta e virgem e outros, no que suspeito de algum masoquismo, aparelham-se de tanta quinquelharia que mais parecem o lateiro da aldeia da minha avó montado em cima do jerico que o carregava junto com farto arsenal de lata e ferro que os embrulhava de tal maneira, que para cumprimentá-lo implicava primeiro afastar um pote, passar a seguir por cima de um funil, depois virar à direita num coador para finalmente encontrá-lo sentado na cavalgadura e atrás de uns medidores de azeite, bem jeitosos por sinal, que mais parecia ter acabado de chegar da terra de OZ.
[Ninguém me convence que aquilo não dói porque ainda me lembro de aguentar as lágrimas grossas e o berro na garganta para não chamar a minha mãezinha que o estupor do médico me magoava cruelmente com aquela agulha directa ao meu rabo e enterrada na minha nádega que ela mais parecia quer ganhar vida própria e desatar a saltitar pelo consultório e berrar ao violador tudo e mais alguma coisa, que aquela bodega doía mesmo!]
Pelo menos o lateiro, quando o encontrávamos, surgia-nos ileso e sem quaisquer mazelas e queixumes, o que destas figuras já não posso garantir que às tantas não sei se contei 89 puros poros ou 98 buracos, se 89 poros sepultados vivos numa tumba sintética e preta, se 98 empaliçados e empaulados pelo metal sanguinário como faziam algumas sub-culturas colonizadoras e colonizadas de África.
[Ainda me lembro que andei 15 dias com um penso na orelha, porque me lembrei de furá-la com uma agulha e em vez de a projectar certeira e firme em direcção ao lóbulo, andei para ali com o espigão espetado e desesperado aos apalpões e safanões que o lóbulo parecia pedra e a agulha entalada na orelha e indecisa no único furinho que não conseguia fazer]
Para os mais conservadores e tradicionais estas figuras têm ‘muita pancada’ porque perdidas da espiritualidade normalizante dos bons costumes e visuais, e para os ultra-conservadores resumem-se a esquizofrenias ambulantes de índole subversiva.
Também não exageremos que não é civilizado e de tolerância deixa muito a desejar. No campo dos padrões estéticos vrs acessórios não são mais nem menos anti-naturas que os que se macaqueiam nas ‘caravanas sociais’ com próteses estéticas e enchimentos carnídeos nos sítios mais pessoais.
Esses também parecem querer renegar alguma coisa da sua génese e da sua identidade particular.
[Até eu, que tenho fobia e pavor de agulhas cheguei aos 30 anos - acreditem nisto - aos 30 anos a chorar em plena enfermaria do Hospital de Vila Franca de Xira porque uma enfermeira muito simpática me queria alcançar a nádega sagrada para uma vacina intra-muscular e eu só lhe dizia:
- Desculpe-me senhora enfermeira mas eu tenho muito medo de agulhas. Prepare-se que não vai ser fácil.

A enfermeira sorriu e chegou-se a mim para me esfregar com álcool e eu mal senti o frio do algodão comecei logo a fugir e a chorar dizendo-lhe envergonhada:
- Ai que me dói! Desculpe-me lá senhora enfermeira - e fugia-lhe com a nádega - eu sei que já não tenho idade para isto – e já estava do outro lado da sala - mas desculpe-me mais uma vez que eu tenho medo de agulhas e isto dói-me – sem que a agulha me tivesse tocado ainda.

Andei quase meia-hora a fugir até ela me encurralar entre uma marquesa e um pequeno armário esmaltado e a chorar e a pedir imensa desculpa. Chorava pelo ridículo e pela dor da agulha sem ela me tocar sequer. O algodão foi ao chão e já a senhora enfermeira ria estupidamente com os outros auxiliares e eu de faces banhadas ria, chorava e continuava a fugir com o rabo:
- Devia ter vergonha não é senhora enfermeira? Isto é irracional eu sei…. mas é que eu tenho pavor de agulhas senhora enfermeira e como isto me dói!
Escusado será dizer que nunca mais pretendo lá voltar ou a outro hospital para levar o que quer que seja, que para os médicos eu sou como os supersticiosos:
- Vai de recto! - Vai de recto!

Mesmo assim - acreditem - ando com 16 argolas, mais precisamente 16 buracos nas orelhas. 16 Penduricalhos de prata maciça bem esculpidos e interessantes obras de ourivesaria argelina]
Trata-se tudo da mesma coisa: códigos e sinais estéticos, linguagens visuais e imaginosas, simbologias tribais ou classicistas. Fundamentalmente expressões e cânones estéticos (uns mais primitivos e outros mais modernos) e acima de tudo elementos acessórios ou modas de ‘estetas’ para nos normalizarmos, para diferenciarmo-nos por pertença a um grupo social ou à vulgar padronização das tendências que estão en vogue.
Digam o que disserem é tudo acessório e ainda não é fundamental à sobrevivência ou à individualização filosófica de cada 'ser' no tecido social anónimo. É inevitavelmente de valor secundarizante, mesmo que cada um não o tenha como tal, mesmo que acompanhado pelo principal, o que nos distingue dos outros, o que nos dá a verdadeira individualidade do carácter e como indivíduo - mesmo sabendo que contribui para a nossa segurança e conforto do ‘estar social’, não deixa de ser acessório, logo prescindível.
Algo mais importante nos une a todos sem distinção de classe ou filosofia estéticas: o Corpo Santo.
Esse a verdadeira matéria, forma, energia e sólido. O veículo transitório para católicos e o mesmo para os agnósticos, esse que vem ao mundo e deixa-o igual na sua génese: com cabeça, tronco e membros.
[Sou agnóstica confessa e custa-me a crer nas manutenções e sublimações corporais que ultrapassam o estado natural da matéria.
Lembro-me até de minha irmã mais nova, em tenra idade de criança, ser obrigada a assistir ao ritual da lavagem e preparação do sólido da avó-avó(?) do meu pai (sempre fui troca-tintas com os parentescos e só não sou deserdada porque meus pais são compreensivos) para a seguir participar no ritual carpideiro
da ronda dos da aldeia ainda vivos.
Imaginem uma criança a ver uma mulher de 90(?) e muitos anos (também sou troca-tintas nas idades e ainda este ano ia somando ao meu aniversário
dois anos se não fosse a maravilhosa Antonieta, minha mãezinha: oh filha, daqui a bocado
tens quarenta!!!!!).
Imaginem então a minha irmãzinha expectadora do
requiem do sólido da avó-avó(?) do
meu pai, com mais pregas que os cortinados da minha vizinha, branca como a cal que nem lhe valia o melhor pó de rouge que se arranjasse para ganhar mais viço e cor. Imaginem-na… cruel, cruel!
Vou doar o meu sólido a uma boa trituradora hospitalar e se entretanto o tabaco não me conspurcar de cancerosa talvez me queiram estudar e usar para adubo ou para uns pózinhos como fazem os chineses]

Nos tempos que habitamos o corpo tornou-se uma matéria pura a modelar segundo o ambiente cultural e social do momento. Já não é versão irredutível de si mesmo mas uma construção pessoal, uma individualidade física mutante, um objecto transitório e manipulável segundo as variadas metamorfoses dos desejos e intelectualidades do indivíduo que o carrega.
Já não nos contentamos com o corpo per si e ansiamos modificá-lo convencidos que só assim somos os genuínos mandatários de uma Ideia/Imagem/Mensagem que queremos que os outros façam de nós , ou seja, dele.
Por vezes chega a parecer que essa Ideia/Imagem/Mensagem não é a que mora lá dentro por excelência mas a do exterior, a transitória e dependente da interpretação correcta ou incorrecta dos outros.
Chego até a desconfiar que alguns, se pudessem, cuspiam-na para a berma da estrada para ficarem mais versáteis às actualizações permanentes, como aquela tralha toda que os carros de corrida largam para mais leves e rápidos.
[Cá por mim é como eu durmo melhor, que só me preocupa se num futuro próximo já não tenho rins para fazer ‘marmelada’ a noite toda ou que a minha preciosa visão não alcance as letras cada vez mais pequeninas dos jornais e às vezes dos livros, que quando os verões ardem neste país a industria da celulose produz menos papel, logo os livros de repentem minguam e o tamanho dos caracteres por consequência.
Não prescindo das minhas orelhas rendilhadas a prata que me sinto despida sem elas, mas não contem comigo para encher com silicone as pálpedras ou os lábios para fazer olhinhos de uma idade que não tenho ou boquinhas ululantes às criançinhas porque aos pais delas é que não podemos fazer.

Também prescindi da tatuagem nas costas que acho exótica por demais mas que nunca tive a coragem de fazer por medo da dor que possa sentir e aqui tenho a certeza que em vez de deserdada sou elogiada pelos compreensivos dos meus pais que acham que pela primeira vez revelo bom senso]
Imagino que se os cirurgiões plásticos brasileiros vêm para Portugal como fizeram os dentistas e sabendo nós a tabela de preços competitiva que eles atingem, corremos sérios riscos de nos cruzarmos na rua com sólidos dentados e bem ‘siliconados’ dos pés à cabeça:
- Olá, sou 50gr nos labiais, 4 lipoaspirações à posteriori e 37gr no rabiosque – e abre-nos uma boca gelatinosa para mostrar uma placa digna de um Papa que nos parece que nos vai chupar e trincar todinhos.

terça-feira, novembro 16, 2004

Deixa lá, agora tens o vazio… mas depois há alguém novo

- Perdi alguém querido…
- Deixa lá, agora não compreendes… mas depois revive-lo na saudade.
- Perdi alguém importante…
- Deixa lá, agora faz falta… mas depois apazigua-lo numa história.
- Perdi alguém como ninguém…
- Deixa lá, agora esqueceste-te dos outros… mas nós esperamos por ti.
- Perdi alguém que descobri fazer-me falta como tudo
- Deixa lá, agora tens o vazio… mas depois há alguém novo.
- Não, perdi um bocado de mim.
Não me sinto inteira que me falta qualquer coisa na vista turva e difusa. Até os sonhos não devem ser sonhos porque agora são pequenos e frios.
As mãos recusam-se à escrita e os pensamentos encalharam num tempo indifinido e melancólico como todo o corpo.
Hoje a rua não parece a mesma rua e assusta-me ter que descer para ela onde as pessoas me parecem outras e me incomodam porque me obrigam a reagir e a ser o que eu já não sei como é que sou, porque me falta qualquer coisa que não sei, agora que não sou a mesma.
Estou incompleta com certeza que me violenta só a ideia de ter que erguer-me do sofá, não da cama de quem me divorciei porque me incomoda o seu conforto, deixar o sofá sob as minhas pernas e com o pensamento desencontrado começar um dia, aliás, fingir começar mais um dia. Um que eu não conheço e que me é estranho porque eu não sei o que perdi…

segunda-feira, novembro 15, 2004

B¨_cad/sdegen_e.[]blogsp)t.com..................

Por motivos que me ultrapassam e que estão directamente relacionados com as musas inspirativas deste ciberespaço, peço desculpa pelos próximos post’s de carácter lamechas e a raiar a autocomiseração.
Obrigado, Linfócittos

sexta-feira, novembro 12, 2004

("C"+"O"+"P") x ("O"+"N"+"S")

"O Restaurante 'O Caneira' publica no jornal ½ rodapé no intuito de avisar os seus estimados e sempre bem-vindos clientes que a sucursal/filial que se tem feito representar por 'Caneira', nada tem de relacionado consigo a não ser a apropriação indevida do seu bom e reconhecido nome e marca por registo legal."
Pousei o jornal e acendi um cigarro que me enevou de fumo e formou no ar o que pareciam ser pequenas letras que não deixei de fixar curiosa. Sustive a respiração para não desfazer a névoa e pareceu-me ler um "C", um óbvio "O" e talvez um "P" esquisito. Que raio????

"COP"????????
Coitado do "Caneira" que ainda se arrisca a perder a clientela que quando essa voltar vai levar com a porta na cara porque afinal aquele não era o verdadeiro mas o trafulha que entretanto já se chama outro qualquer que não ele mesmo e como não leu o anúncio, porque qualquer leitor salta os classificados do jornal, não tem como saber e vai achar que fechou. Tenho que ir ao "Caneirinha", mas como saber nas Páginas Amarelas qual é o que é mesmo e não o que se faz passar pelo outro?

Umas quantas páginas à frente no mesmo jornal é notícia "o extermínio do Urso Pardo dos Pirinéus, acto sanguinário perpretado pelas mãos de um grupo de caçadores da região de Aspe que alegava perseguir javalis. Em vez dessa outra espécie foi 'Canela', uma jovem fêmea de 15 anos e mãe há pouco tempo, a presa exterminada. A associação local de caçadores estava ciente da preciosidade genealógica que 'Canela' representava para o mundo mas alega ter-se defendido de um ataque repentino por parte da fêmea."
Levei o cigarro outra vez à boca imaginando aquele corpulento animal a ser esfrangalhado pelas mandíbulas canídeas e com urros apelar à misericórdia do homem para lhe dar com um balázio bem no meio da cabeça e poupá-lo aquele sofrimento indigno. Desconfiada inalei todo o fumo que consegui para a maior baforada que os meus frágeis pulmões deram até hoje e surgiu novamente a clarividência: outro "O" bem definido, um "N" um pouco manco e um claro "S".

"ONS"????????????
("COP" x "ONS") = ?????
Hum? Olhei à minha volta e para os outros fumadores e constatei que o fumo dos seus cigarros não passava de umas nuvenzinhas ralas que mal se viam a olho nu. Que raio????????
Pensei, pensei, e de repente a coincidência pareceu-me óbvia e os sinais semelhantes o suficiente para não ignorá-los.
Recordei-me do boletim anónimo de Jerry tal como o jornal que lia, também de distribuição massiva (o meio da mensagem?);

A inusitada notícia que ocupava quase página inteira da "Canela" especial como era aquele cavalo que a advogada recebeu de seu pai assassinado misteriosamente depois (o animal?);
E porque não um urso, espécie em extinção de valor inestimável, como era aquele juiz arguto e perspicaz, pai da advogada, que descobre os homens do "Sistema" (o crime?);

Somei-lhe a duvidosa acção do grupo de caçadores da Federação dos Caçadores dos Pirinéus Atlânticos ou até mesmo, porque não, da própria organização que me leva a seguir aos homens do "Sistema", também eles um grupo autónomo e reconhecido pelo próprio governo americano, uma estrutura superior (criminosos?); Que tal?
E porque não há mistério sem que alguém dele e de alguma coisa desconfie atrevi-me a considerar o gerente do "Caneira" (actor principal?) como um elemento-chave para a suspeita duplicação da identidade representativa que, como o taxista, tem também nos seus clientes a verdadeira desenvoltura da sua aventura conspirativa.
Faltava-me só escolher a protagonista a salvar pelo herói. Eu???? Talvez. Afinal estava descansada a ler o jornal como aquela jovem advogada, descansadinha também a pedalar em casa a sua vidinha naquela bicicleta mecânica (actriz principal?). Eu???

= ("COP" x "ONS")
= ("C" de Caneira + "O" de ovas que deve ser um petisco lá do sítio + "P" de parece-se mas não é o mesmo restaurante) x ("O" de 'ocaso' do crime da ursa com por 'acaso' mal escrito com certeza + "N" de nada sabíamos que ao longe parecia-nos um javali + "S" de sangue, do da ursa, claro)
= "COPONS"
= Bem baralhadas as letras também fica "CONSP"
= A teoria da CONSPIRAÇÃO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Reparem bem como as várias associações eram plausíveis:
Temos um restaurante que não se sabe vindo de onde e passa por outro o que nos deixa sem saber afinal qual é o verdadeiro e afamado por um "naco agridoce de javali que é o animal que os caçadores franceses diziam estar a caçar em vez do urso (símbolo da força económica americana, saída recentemente de eleições onde Bush é vencedor e por acaso até gosta mais de cavalos do que de ursos).
Este urso irremediavelmente morto era por acaso a única fêmea existente na França e pertencia à espécie "Parda" de que agora só restam exemplares na Croácia e Eslovénia, o que é muito conveniente para que não fique nada para reproduzir. Reparem, reproduzir com antigos países da única até hoje, se a Coreia do Sul não se adiantar ao meu blogue, única superpotência alguma vez opositora à supremacia americana no mundo e que até foram alvo de recentes investidas pseudo-humanitárias e pacifistas por parte dos militares americanos.
Por acaso durante as eleições tive a visita de uma amiga da Filadélfia que até é uma séria activista da campanha de Kerry e que por acaso estava muito preocupada com o futuro próximo da América se o Bush vencesse as eleições.
As ligações a Portugal continuam quando sabemos que a mulher de Kerry é de origem portuguesa e tem familiares numa aldeia próxima da dos meus avós (já viram a coincidência!), para não falar de que consta que vai comprar acções do Sporting que é o clube do meu amigo bloguista.
Desculpem-me lá mas está por demais.

Kerry é conhecido por frequentemente doar fundos a ONG’s para a protecção animal (como os ursos não é?) e durante os meses de campanha eleitoral "A Teoria da Conspiração" esgotou-se misteriosamente das casas de aluguer de vídeos. Não me lixem, pá!!!!!!!
Existirá algum "Caneira"? Qual deles será o restaurante inofensivo e qual o suspeito covil de concluio para aniquilar a simbólica e única fêmea no mundo que poderia reproduzir-se com os dois únicos machos croatas e eslovénios, permitindo assim a manutenção dessa espécie no outro grande continente que enfrenta agora a recém-eleita américa por mais um mandato e que de ursos só nos deixou o Bush e o símbolo feroz do capitalismo americano?
O que significará o aumento da espécie do javali no mundo que fora do seu habitat é devastador? Passará o javali a ser o produto dominante na pestiscada do pessoal? Alguém tem que o comer, não?
Os gajos do "Caneira" - os falsos, atenção - serão também eles «aliens disfarçados que a NASA e o Santana Lopes trouxeram do espaço e que raptam humanos atraindo-os a restaurantes que se deslocam deliberada e geograficamente sem que deia-mos por isso?
E eu? Onde é que eu entro nesta história toda?
Por acaso tenho um tio que encontrou o sonho americano na confecção e venda de acessórios militares lá para a terra dos cowboys… mas nem por isso tenho ligações à Al-Queda, mesmo sendo politicamente anti-americana como meio mundo, aliás….
Também sou uma fumadora (convic)activista e costumo dizer que não há americano (porque o tabaco é quase todo americano) que me convença de que não tenho o direito aos mesmos séculos para deixar de fumar como a Civilização os teve para se viciar!!!!!!
Ou será que ser vegetariana tem alguma coisa a ver com isto? Isso não ameaça o consumo de carne, que como eu há muito poucos, pois não?

Andará para aí um Jerry qualquer, à minha procura para qualquer coisa?…
(Só espero que seja para me…)
Estará o jornal mesmo a avisar-me de alguma "Teoria de Conspiração"? Esta é a parte mais difícil… Se calhar meti o pé na poça e são só mensagens subliminares dos COPCONS para os seus camaradas.
Telefonei a um sabichão que me ajuda sempre quando estou enrrascada e que me disse:

- Eh pá! Isso parece-me muito complicado pá! "Teoria da Conspiração" não prometo mas que "COP" são comandos operacionais e "COPCON" eram os do Continente, isso sim pá!
Pensei, pensei, e de animais do COPCON só me lembrei de uma avestruz que um capitão de Abril evocara num debate parlamentar na Assembleia da República:

- "Pois não é linear e de uma evidência gritante que é na hora da tempestade que o capitão deve abandonar a nau e que é no tempo da doença que o diagnóstico é importuno? Pois não é verdade que a técnica da avestruz é o modelo da melhor deontologia de um político e sobretudo de um político revolucionário?
Isto era a voz da reacção parlamentar (na altura considerada a 'reaccionária') ao idealismo forte e ao trabalho no terreno que Otelo Saraiva de Carvalho comandava no COPCON, tão só, nada de javalis e com ursos talvez alguns comentários acesos e menos nobres entre os deputados.

Animais só esta avestruzinha por uns minutos lá no plenário e até sei que Otelo nasceu em Lourenço Marques (Maputo) onde não havia ursos sequer, talvez javalis...
UUUUPPPSSSS!!!!!!! Q’grande barraca!!!!!!!!
UUUUPPPSSSS!!!!!!! Acho q'meti o pé n'poça!!!!!!!!

quinta-feira, novembro 11, 2004

Para mim a juiza perfeita para o Caso

Perguntava no outro dia a alguém o que era feito de Margarida Amarante.
Teria virado a "Sargenta-Doméstica" dos solavancos de Emídio Rangel tão desaparecido dos Media?
Hoje, no Expresso que tinha lá pela sala, encontrei-a serena e envergando uns modestos tons beges que lhe conferiam um jeito demasiado "domesticado".
Parece que o divórcio com o Sucesseful-Media-Men sempre vai sair e prepara-se agora a senhora para se dedicar ao Direito nas funções de jurista de uma qualquer empresa espanhola forte no mercado português (ditames com que se amanhará muito bem com certeza…).
Lembro-me das suas entrevistas televisivas que me chocavam pela arrogância desmedida e o despesismo pedante que a dita senhora lançava para lá daquela franja ondulante, bem direito aos seus convidados que quando convidados a falar de si se descobriam afinal proponentes a harikiri televisivo.
Umas quantas páginas à frente aparece-me o triste e labiríntico caso "Casa Pia" e só me ocorre que gostava de ver Margarida Amarante, não na senda legalista do capital espanhol, mas na sobrevivida daqueles putos todos que nunca hão-de perceber porque é que o mundo tem destes homens e os homens destas coisas.
Já imaginaram aqueles
estupores a piar fininho ao martelinho da "Generala" e a baterem a pala à "Nossa Senhora Generala, a Excelentíssima Juíza".
Ai gostava de ver, gostava de ver!!!!!!!

quarta-feira, novembro 10, 2004

Linfócittos arranjou um cão (aliás, cadela...)

- Olá!… Mas o que é isto?
- Não percebo.
- Um cão…. o que é que andas a fazer aqui sozinho?
- Sim um cão. Não percebo porque é que vocês humanos fazem tanto isso. Espantam-se com o que não tem nada de espantoso ou sugerem excepcionalidades onde não as há, como se a evidência por si não bastasse.
- Como?...
- Só posso ser um cão porque só me identifico com o que vocês chamam de cão e um cão, salvo excepção, não tem nada de espectacular nem é bicho-raro ou do outro mundo, o que invalida a tua admiração.
- Sim, mas…
- Vês-me com alguém por perto? A lógica dir-te-á então que sou um cão porque me pareço com um cão e estou sozinho dado mais ninguém se encontrar ao meu lado e comigo.
- Já percebi que comecei mal contigo e sem intenção safaste-me.
- Agora quem não percebe sou eu.
- Estamos num blogg. Chamo-me Linfócittos – com dois tt’s – e tu és o primeiro personagem vivo do meu blogg. Acho que nos podemos divertir os dois.
- Os dois…
- Primeiro tenho que te dar um nome e um perfil psicológico que me parece que acabaste por ser tu próprio a defini-lo. Espera! Tens que viver comigo para eu te poder conhecer e falar de ti!
- É-me indiferente. Os cães não são propriedade de ninguém a não ser deles próprios e mesmo isso não é claro, porque não configuramos os lugares e os valorizamos como coisas distintas entre si e para nós. Ontem ‘era’ de alguém como tu e hoje ‘sou’ teu como 'era' do de ontem, tempo esse que é sempre o mesmo para nós. Vocês é que não sabem 'ser' sem estruturar um espaço, num dado tempo e com uma determinada função…
- Acho isso muito interessante mas se não te der um nome não tenho como te dar forma, jeito e acção.
- É-me indiferente, eu sou cão. Aliás, cadela...

Caodagua.jpg

segunda-feira, novembro 08, 2004

(I) Aquele estranho e calado regresso de Clotilde do pequeno-almoço

Clotilde voltara a entrar em casa tão depressa quanto saíra. O marido estranhou e procurou-a pelo chamamento que não mereceu resposta.
Permaneceu afundado no sofá de jornal aberto sobre as pernas e à espera que algum barulho chegasse à sala e explicasse aquele estranho e calado regresso da mulher do pequeno-almoço.
Manteve-se atento e não tardou que Clotilde o chamasse para o almoço entretanto servido e a fumegar adoçicado que já percorria o pequeno hall quadrado e contíguo à sala.
Ergueu-se e poisou o jornal sobre a mesa ao seu lado deixando as folhas impressas como imaculadas, como se nunca tivessem sido violadas na leitura pelo tacto das suas mãos toscas e grossas e seguiu sério e curioso para a cozinha perseguindo aquele silêncio anormal e procurando interpretá-lo no rosto inexpressivo de Clotilde. De pouco lhe serviu que sempre que a encarava ela parecia fugir à sua atenção e forçava no olhar um amuo qualquer que não se encaixava ao seu feitio:

- Esta pescada não é fresca com certeza…
- Não vais comer? – olhou novamente mas em vão que a resposta já ia sumida no ar e pelo corredor a fora.
- Nãoooooooo….. Estou sem apetiteeee..... Tens broa no arm....
[Que raio mas o que é que a mulher tinha? A pescada não lhe parecia nem mais nem menos fresca que a da semana passada e quanto ao resto tudo parecia normal: broa de centeio, azeitonas regadas em alho e azeite, as batatas da aldeia, as únicas que comiam e que se pareciam desfazer ao vapor que era de se ver, o vinho verde de sempre, pouco maduro e bem fresco que transparecia límpido de rolha nos copos grossos.]

domingo, novembro 07, 2004

(II) Era a pobreza do campo entranhada na pele de Clotilde

Um almoço igual aos outros todos, mas Clotilde diferente, deambulava pela casa como que distraída dele e numa inércia que não lhe era própria. Séria e fugidia, aborrecida que mais parecia envergonhada. Do outro lado da toalha axadrezada não estava ela debruando o miolo da broa lentamente com os dedos sobre o azeite e o peixe suado como sempre fizera - ela e todas as mulheres que conheceu na sua aldeia de Trás-os-Montes. Roía as azeitonas com as mãos, hábito que sempre o fascinara e incomodara em simultâneo, porque enquanto ele bem ensinado por seu pai segurava os talheres, já Clotilde comia com as mãos numa satisfação de expressão carnal que o perturbava.
Era chupadela aqui, lambidela ali, na broa e nas batatas inteiras e esmagadas no azeite. A comida saltava dos talheres, que a estorvavam para as mãos e delas para os dedos que, ainda requintada nesse prazer que tinha, ainda levava a seguir a comida à boca e os dedos atrás para lambê-los antes deles voltarem outra vez às mãos e aos talheres.
Não era falta de educação ou maluqueira que Clotilde não se revelava assim em mais nenhuma circunstância.
Era a pobreza do campo entranhada na pele e nos hábitos que mesmo quando civilizada com talheres e presenteada com mesa rica e esteta, ela voltava à lembrança e abarcava tudo nos cheiros, sabores e toques.
Perpetuava a animalidade do prazer, esse que não se esquecia da boca, das mãos e do corpo inteiro da pobreza na fruição das coisas.
Uma consoada de natal para as gentes do campo lembra sempre a Última Refeição de Cristo. O jantar monárquico mais rico e sumptuoso que às vezes chega a ser de luxo obsceno perde aqui terreno na graça e na fé humilde.
É intrinsecamente avesso aos prazeres bodos que restam aos que pouco ou nada têm. Na comida, mesmo quando terrosa, é-nos oferecida a dádiva do corpo e o testemunho santificado do milagre da ressurreição (o corpo e o sangue de Jesus Cristo).
Aos pobres, Deus surge antes de perecerem e permite-os olhá-la, cheirá-la e alcançá-la pela última vez, com as mesmas mãos e unhas sujas que antes revolveram a terra também pobre e que nunca lhes mereceu tanta fartura.
Tudo para que participem antes da morte no milagre da partilha e multiplicação do pão e do vinho (o corpo da fé e da salvação) e possam invocá-lo no leito e legá-lo virtuoso aos que cá ficam por eles a perpetuar essa mesma solicitude.
Passam-lhes o testemunho sagrado e a miserabilidade cega e surda à abundância injusta por classicicista que por não ter um certo cheiro, gosto, nem calor, falta-lhe então o que importa ao amor e à fé desse deus que só assim se alcança.
Do outro lado da toalha axadrezada onde tudo lhe parecia normal, desde a broa de centeio, as azeitonas regadas em alho e azeite e até o saboroso vinho verde, pouco maduro e fresco, começou a comer acompanhado pelo silêncio que o perturbava por misterioso e só quando um barulho miudinho de vida se anunciou vindo do quarto é que comeu como sempre e terminou satisfeito, afagando a barriga apertada contra a mesa em sinal de prazer.
Se a mulher não lhe faltava para alguma coisa era com certeza na fome.
Unia-os de forma erótica a mesa e a saciação dela, de cada um para cada um, na comida de um e para o outro.

sábado, novembro 06, 2004

(III) Clotilde lançava-se com mestria a todas aquelas batatas reboliças

Já na aldeia, Clotilde quando moça casadoira era conhecida na corte primaveril pela 'cozinhada': os rapazes pediam a seu pai autorização para namorar com ela na hora da janta com a promessa de lhe levarem algum azeite ou um presunto, o que agradava ao pai e a Clotilde em particular que se esmerava bastante no preparo.
Na cozinha, pela boca, namorou e foi conquistado por Clotilde para o casamento, que outra coisa podia querer fazer então todos os dias com ela até que a morte os separasse: gerir a churrasqueira do tio em Lisboa, só podia ser!
Clotilde despia-se no quarto e parecia arreliada com as chinelas que não encontrava.

- Viste as minhas chinelas?. Caramba, mas onde é que as deixei? - vociferou em surdina que mesmo fora de si era uma senhora.
[O que te dana Clotilde que mesmo curiosa e irrequieta como as cabras sempre me lembráste os coelhos lá de casa, mansos e quentes até para as mãos de meu pai, o carrasco, que no domingo de missa os atirava contra a cerca da loja lá debaixo e num esticão os libertava do pêlo de seda inteiro que só ficavam os olhos, frios como o vidro, um olhar de frio de nortada, porque se gostava de coelhos e me doía e revoltava era porque eles eram o mais quente de tudo lá em casa. Até te conhecer era sempre tudo frio lá em casa...]

Ouvia-se a cama a queixar-se do peso das mantas remexidas, o roupeiro ranger em queixume à violència da porta que ora abria, ora fechava, e ao lado na cozinha contígua ao pequeno hall quadrado ao fundo da sala, um almoço tomado sem a companhia daquela mulher desconcertada como não devia estar à 2ª feira, em particular à 2ª feira.
Era a folga da churrasqueira e o dia de descanso para ambos e com um passeio que fingiam especial pela Avenida da Liberdade que nunca lhes parecera o vale verde e fronteiriço da aldeia, mas o único passeio que podiam governar ao ócio e à saudade.
Um negócio herdado de um certo tio falecido há cerca de 20 anos os trouxera curiosos à grande cidade. Vieram, ficaram em Lisboa, mas com os frangos da aldeia e também as batatas, que quando se comiam mais se pareciam desfazer ao vapor que era como se faz a uma boa mesa e refeição em Trás-os-Montes.
Serviam durante toda a semana cerca de 200 frangos assados acompanhados por legumes vários e batatas cozidas. Ele fazia juz aos homens transmontanos de tronco robusto e braços pequenos e fortes, que nunca lhe falharam para obras de maior envergadura.
Logo pela manhãzinha corria ao Mercado da Ribeira para comprar os produtos enquanto Clotilde já se lançava com mestria a todas aquelas batatas reboliças (que são as mais saborosas) por descascar e aparava hábil mãos cheias de nabiças para uma cozedura infernal que lhe deixava o dia todo e a noite a seguir o rosto, pequeno e talhado, com nuances ocres e doiradas como um bronzeado, como a terra transmontana quando amanhada e despida pela enxada.

sexta-feira, novembro 05, 2004

(IV) Clotilde aguarda o seu transmontano, dócil como nenhum rapaz lá da aldeia

- O que é que te aconteceu que nunca perdeste os trapos de vista? - berrou-lhe alto.
- Vieste cá ao quarto? Viste as minhas chinelas? - perguntou-lhe do quarto.
[Estás tonta? Queres ver que as chinelas estão mesmo à tua beira e agora estás cega, que nem me viste na cozinha com o almoço que arranjaste à minha frente? Não as vês? Não me viste? Que se passa mulher...]

Clotilde ouve a buzinadela na rua e sabe que à porta da churrasqueira a aguarda o seu transmontano, dócil como nenhum rapaz lá da aldeia, num arrastamento vigoroso de sacas e mais sacas pesadas a cheirar a terra, prontas para ela na sua cozinha.
Em Trás-ós-Montes os homens comandam no campo de enxada em riste mas na cozinha são as mulheres que os dominam.
Domam-nos, tiranas, o sexo viril e ali desmascarado na fragilidade da fome: tomam-lhes a quentura do caldo e se o azeite lhes parece amargo não lhes deixam molhar a brôa nele que se o azeite não tem a acidez certa foi porque fizeram o que não deviam ou não fizeram o que era preciso.
No campo a força está pelo homem que fustiga e domestica o coração da terra e na cozinha com a mulher em obediência materna impelida pela fome e solidão.
Numa manhã inteira aquela força da natureza curtida prepara panelões e panelões de água a ferver e trata de encher e atiçar os grandes assadores para que as brasas já crepitem vivas aquando do retorno do marido do mercado.
Uma parelha espantosa e sincronizada: ele carrega os frangos e as batatas, ela escalda-os, lança-os sem medo, quilos e mais quilos de batatas já descascadas para dentro daquela fervura assustadora e já as mesas se compõem arrumadas e prontas para receber os clientes esfomeados e ávidos da carne crucificada no espeto e a assar.
A partir dali nada há senão um reboliço esvoaçante e sem intervalo, que cresce em uníssono com a desenvoltura energética dos dois que só podem respirar para ver os rostos que depois de entrarem magros e sem cor, saiem opulentos de satisfação e com expressões de rubor avinhatado: um cliente, um frango que salta da brasa e voa para uma boca qualquer, outro cliente e batatas perfumadas exibindo-se nos pratos e competindo o seu calor com a frescura aguada do vinho verde.
Mais parece uma festarada de gente pagã com asas voando e saltitando por entre mesas e cadeiras num malabarismo louco de batatas e vinho que escorre de copo a copo.

- Já estás de robe mulher? Que fazes? Não vamos sair hoje Clotilde? - entretanto na sala.
- Não me sinto bem - jurou pouco convencida - acho que vou ver um pouco de televisão.
[Talvez seja cansaço que Clotilde já não é nova.]

quinta-feira, novembro 04, 2004

(V) Logo que se viu dentro de casa virou as costas a António que lia o jornal

Pôs sem jeito a chave à fechadura, tão arreliada estava e atirou a mala incómoda para o degrau ao lado para libertar o braço e puxar pela tranca da porta, teimosa e ferrujenta, esquecendo-se que a mala era nova e querida, que só a usa à 2ª feira e quando lhe apetece esquecer os frangos e as batatas que escalda, assa e coze diariamente na churrasqueira.
Não desgostava do trabalho, até pelo contrário, em Lisboa ou na aldeia qualquer outro era bem mais pesado que a cozinha, mas o bodum e os cheiros vivos é que sempre a agoniaram.
Adorava cozinhar e por mais que se lavasse ou raspasse tinha sempre a sensação que se oferecia à noite na cama ao marido, gordurosa e enjoativa, em vez de se deitar com ele na cama, deitava-se era com frangos e mais frangos, numa capoeira qualquer forrada por batatas e hortaliças.
Não há muito tempo descobriu a rebeldia às panelas e fogões ao aperaltar-se toda na única folga da semana: perfumava-se, pintava-se e vestia uma saia leve, que ao vento lhe descobria as pernas que até achava bonitas mas que andavam sempre escondidas em calças de fazenda grossas e botas pesadas que a ajudavam para protecção naquela cozinha perigosa onde o mínimo descuido a podia queimar com os salpicos dos óleos ou das brasas dos grandes aquecedores.
Arranjava-se com descrição e modéstia e passava as manhãs de 2ª feira no café do bairro com outras mulheres trotando vulgaridades e debicando os ares e jeitos dos que entravam e saíam, fosse para lhes desfazer o que lhes parecia pernicioso fosse para o que sabiam inofensivo e com conhecimento de causa.
Tanto nos meios pequenos e promíscuos à privacidade como nos grandes turbilhões anónimos das cidades, as mulheres são pródigas em desdizer o que não vêm para poder ver o que não ouvem.
Era um frenesim coloquial de senhoras, que os homens quase não compareciam com certeza na suspeita de que se lá entrassem, garantias de sair inteiros e ilesos ao juízo probatório da matri-doméstica não sairiam - na certeza de que seriam comidos e triturados vivos se sujeitos aquelas bocas e olhos tribunalizados para o prazer pérfido do nada fazer.
Danada que estava demorou tanto tempo a abrir a porta que logo que se viu dentro de casa virou costas à sala onde António lia o jornal e mergulhou pelo hall adentro ao encontro do quarto onde ansiava despir-se rápida e aliviadamente que só lhe apetecia o confortável robe velho de lã e as chinelas que tão bom andar lhe davam aos pés massacrados a semana toda pelas botas duras.
Livre de cremes, pinturas e aromas procurou a sua roupa sempre igual e envelhecida como o seu corpo estéril que sempre estimou para o marido mesmo sem esquecer os filhos que sabia desejar mas que não lhos deu.
Não os semeou e colheu na aldeia e na grande cidade também não os pôde fazer ou comprar já embalados, que lhe diagnosticaram um mioma avantajado e incauta sujeitou-se à indigência médica de um talhante qualquer que a esventrou e arrancou as entranhas como se faz a um porco.
As entranhas doentes e as menos doentes, só lhe deixando um buraco negro e silencioso que se podia espreitar pelos seus olhos castanhos e ternurentos.
Seguiu para a cozinha - sem gosto de boca algum - para aprontar o almoço do marido que sabia estar naquele momento a interrogar-se preocupado com ela, que não só o vetara à dúvida como o enxotara de si.
Chamou-o a si e indicou-lhe ligeira a mesa:

- Esta pescada não é fresca com certeza...
- Não vais comer? - perguntou-lhe António mas em vão que a resposta já ia sumida no ar pelo corredor a fora.
- Nãooooooo....... Estou sem apetiteeeee.... Tens broa no arm.........
[Malandro, que me enganou. Não gosto de espertalhaços e já não é a 1ª nem a 2ª vez que o seu’Zé me engana e me vende peixe menos fresco. Não é por mim, mas só gosto do bom e do melhor cá para casa, que os outros não me interessam. Os outros, as outras, malandros... Hoje deixo-te a comer sózinho António.]

quarta-feira, novembro 03, 2004

(VI) António fez-se criança frágil e sensível por sózinho ter que encontrar uns 'braços de família'

Esqueceu-se da mala nova e querida no degrau da escada e deixou o marido no sofá sentado e suspenso nas linhas do jornal para despir a folga caprichosa da semana que lhe descobria as pernas que António dizia serem bonitas e finas e reencontrar-se de novo consigo no quarto, sem o bodum e tão perfumada quanto o pequeno-almoço que não chegara a partilhar com a urbe feminina do bairro - durante a semana tinha-a como clientela do outro lado do balcão e só à 2ª feira sentia-a igual a si, porque do lado de fora dele a arrogância de ser servida esquecia-a.
A indiferença tremia-lhe arrependida que António era homem corajoso e quente como nenhum que conhecera em nova na sua aldeia e até hoje em Lisboa.
Criado por um pai severo e ausente de afectos pela amargura de muito cedo ter perdido a mulher e o amor apaixonado, fez-se criança frágil e sensível por sózinho ter que encontrar uns ‘braços de família’ e consumir a inocência no trabalho do campo.
Fora conquistada por uma cumplicidade e amizade fora do comum entre os homens e as mulheres, em particular naqueles meios tão pequenos.
Conheceu-o despretencioso e aventureiro com os bens terrenos e estranho aos amores comuns. Quando em namoro se encontravam, discorria horas seguidas sobre as viagens que ambos iriam fazer e as cidades que os esperavam, grandes e loucas como as feiras e os circos que às vezes chegavam à aldeia e deixavam todos em delírio com a sua magia.
A António nunca se lhe aperta o coração por não voltar a Trás-os-Montes.
Lembra a aldeia em nostalgia mas de afectos basta-lhe a mulher que o completa com a generosidade apurada que tem.
Completa-o pela que o pai nunca lhe fizera sentir ou pela da mãe que não chegara a conhecer.
António conquistou a rapariga doce e ingénua do campo com o apelo ao colo protector e a companhia dedicada como faz qualquer rapaz ainda jovem e dependente de sua mãe.

terça-feira, novembro 02, 2004

(VII) No regresso das terras as pernas de António ganhavam alento e aceleravam o passo

Deixou-o sózinho à mesa, saíu da cozinha, percorreu o hall pequeno e apertado e ouviu-o chamar por si ao que o ignorou fria. Estava arreliada e não queria apoquentá-lo com parvoíces de mulheres, embora gostasse de dizer-lhe que às vezes pensava em retornar à sua aldeia, que lá gosta das mulheres, solidárias e companheiras que a dureza do campo não as convence de melhor para partilharem.
Desde muito criança que aprendera a cozinhar com aprumo e desenvolver o reconhecimento pelos afectos maritais através das suas mãos na cozinha, seduzindo seus sentidos gustativos em troca de irmandade.
Das mais novas às mais velhas, todas se recolhiam à cozinha, lavando, amanhando e preparando comida todo o santo dia para que os homens da família tão felizes se levantassem com uma papa de milho fervente a excitar-lhes os músculos aptos à lavoira no campo ou à noite um perfumado arroz de forno os aquecesse e lhes convencesse a alma para o repouso curto da noite.

- Viste as minhas chinelas? Caramba, mas aonde é que as deixei? - vociferou em surdina que mesmo fora de si era uma senhora.
[Onde páram as minhas chinelas? Onde pára a minha aldeia? Já te arranjei o almoço homem, mas que mais queres tu de mim? Tu e eles, caramba! Almoço, frangos, gordura e mais bodum que se me entranha na pele... cheiros que nunca encontro nas outras no café! Onde páram as mulheres da minha aldeia... ]

Aprendiam umas com as outras todos os truques, fossem eles para disfarçar o ranço da carne mal salgada, fossem eles para enganar a gula da guloseima dos enchidos que só elas sabiam assegurar que durasse o Inverno todo até crescer o leitão rosado que dormia em baixo na loja, e, chegado o Verão quente, se pudesse matar também para mais um Inverno e a seguir mais um Verão.
Em Trás-os-Montes mal o sol nasce os homens armam-se de armas de lavoira e seguem para a luta com a terra dura e seca deixando as mulheres em casa sozinhas ou com os filhos.
António fizera o mesmo durante muitos anos e mal se avizinhavam as casas da aldeia no regresso das terras, as pernas ganhavam novo alento e aceleravam o passo que sabiam esperá-las trabalho menos duro: o namoro ardente e o afecto maternalista.
Entre outros de fortuna e nome mais promissor ele fora o escolhido, mas só em Lisboa sentiu a totalidade dessa estima e entrega por parte da mulher.
Se por momento algum estiveram ausentes um do outro terá sido apenas à 2ª feira quando ela queria esquecer os frangos e as batatas que escaldava, assava e cozia diariamente na churrasqueira.

- O que é que te aconteceu que nunca perdes-te os trapos de vista? - berrou-lhe alto
- Vieste cá ao quarto? Viste as minhas chinelas? - perguntou-lhe do quarto.
[O que é fiz às coisas? Por onde andam vocês? Junto ao fogão e dentro do balcão eu não perco nada e conheço os modos e jeitos para melhor servir a fome danada. Sim, porque fome não tem família, a delas é como a minha, nem mais feia nem mais bonita. Sim, a minha do campo pobre e árido no Verão seco!!!! A delas é igual só que aperaltada e disfarçada naqueles modos de falar educados mas que não escondem a submissão ao homem e ao fogão que ele exige. Lá porque pariram filhos e podem disfarçar os vincos da velhice nos decotes sem bodum, não são mais nem menos que eu do outro lado do balcão, eu que lhes sirvo os caprichos vestidos dos melhores fatos e alteados por aqueles sapatos altos que não me dizem nada aos pés. Para mim os pés têm que sentir a terra respirando senão não são pés para aguentar a alma... Lá porque me asso num espeto gorduroso e mesmo lavada e raspada à 2ª feira não consigo libertar-me das asas e das penas, quem são elas para me julgar e condenar o filho que não dei a António?]