sábado, novembro 06, 2004

(III) Clotilde lançava-se com mestria a todas aquelas batatas reboliças

Já na aldeia, Clotilde quando moça casadoira era conhecida na corte primaveril pela 'cozinhada': os rapazes pediam a seu pai autorização para namorar com ela na hora da janta com a promessa de lhe levarem algum azeite ou um presunto, o que agradava ao pai e a Clotilde em particular que se esmerava bastante no preparo.
Na cozinha, pela boca, namorou e foi conquistado por Clotilde para o casamento, que outra coisa podia querer fazer então todos os dias com ela até que a morte os separasse: gerir a churrasqueira do tio em Lisboa, só podia ser!
Clotilde despia-se no quarto e parecia arreliada com as chinelas que não encontrava.

- Viste as minhas chinelas?. Caramba, mas onde é que as deixei? - vociferou em surdina que mesmo fora de si era uma senhora.
[O que te dana Clotilde que mesmo curiosa e irrequieta como as cabras sempre me lembráste os coelhos lá de casa, mansos e quentes até para as mãos de meu pai, o carrasco, que no domingo de missa os atirava contra a cerca da loja lá debaixo e num esticão os libertava do pêlo de seda inteiro que só ficavam os olhos, frios como o vidro, um olhar de frio de nortada, porque se gostava de coelhos e me doía e revoltava era porque eles eram o mais quente de tudo lá em casa. Até te conhecer era sempre tudo frio lá em casa...]

Ouvia-se a cama a queixar-se do peso das mantas remexidas, o roupeiro ranger em queixume à violència da porta que ora abria, ora fechava, e ao lado na cozinha contígua ao pequeno hall quadrado ao fundo da sala, um almoço tomado sem a companhia daquela mulher desconcertada como não devia estar à 2ª feira, em particular à 2ª feira.
Era a folga da churrasqueira e o dia de descanso para ambos e com um passeio que fingiam especial pela Avenida da Liberdade que nunca lhes parecera o vale verde e fronteiriço da aldeia, mas o único passeio que podiam governar ao ócio e à saudade.
Um negócio herdado de um certo tio falecido há cerca de 20 anos os trouxera curiosos à grande cidade. Vieram, ficaram em Lisboa, mas com os frangos da aldeia e também as batatas, que quando se comiam mais se pareciam desfazer ao vapor que era como se faz a uma boa mesa e refeição em Trás-os-Montes.
Serviam durante toda a semana cerca de 200 frangos assados acompanhados por legumes vários e batatas cozidas. Ele fazia juz aos homens transmontanos de tronco robusto e braços pequenos e fortes, que nunca lhe falharam para obras de maior envergadura.
Logo pela manhãzinha corria ao Mercado da Ribeira para comprar os produtos enquanto Clotilde já se lançava com mestria a todas aquelas batatas reboliças (que são as mais saborosas) por descascar e aparava hábil mãos cheias de nabiças para uma cozedura infernal que lhe deixava o dia todo e a noite a seguir o rosto, pequeno e talhado, com nuances ocres e doiradas como um bronzeado, como a terra transmontana quando amanhada e despida pela enxada.