terça-feira, novembro 02, 2004

(VII) No regresso das terras as pernas de António ganhavam alento e aceleravam o passo

Deixou-o sózinho à mesa, saíu da cozinha, percorreu o hall pequeno e apertado e ouviu-o chamar por si ao que o ignorou fria. Estava arreliada e não queria apoquentá-lo com parvoíces de mulheres, embora gostasse de dizer-lhe que às vezes pensava em retornar à sua aldeia, que lá gosta das mulheres, solidárias e companheiras que a dureza do campo não as convence de melhor para partilharem.
Desde muito criança que aprendera a cozinhar com aprumo e desenvolver o reconhecimento pelos afectos maritais através das suas mãos na cozinha, seduzindo seus sentidos gustativos em troca de irmandade.
Das mais novas às mais velhas, todas se recolhiam à cozinha, lavando, amanhando e preparando comida todo o santo dia para que os homens da família tão felizes se levantassem com uma papa de milho fervente a excitar-lhes os músculos aptos à lavoira no campo ou à noite um perfumado arroz de forno os aquecesse e lhes convencesse a alma para o repouso curto da noite.

- Viste as minhas chinelas? Caramba, mas aonde é que as deixei? - vociferou em surdina que mesmo fora de si era uma senhora.
[Onde páram as minhas chinelas? Onde pára a minha aldeia? Já te arranjei o almoço homem, mas que mais queres tu de mim? Tu e eles, caramba! Almoço, frangos, gordura e mais bodum que se me entranha na pele... cheiros que nunca encontro nas outras no café! Onde páram as mulheres da minha aldeia... ]

Aprendiam umas com as outras todos os truques, fossem eles para disfarçar o ranço da carne mal salgada, fossem eles para enganar a gula da guloseima dos enchidos que só elas sabiam assegurar que durasse o Inverno todo até crescer o leitão rosado que dormia em baixo na loja, e, chegado o Verão quente, se pudesse matar também para mais um Inverno e a seguir mais um Verão.
Em Trás-os-Montes mal o sol nasce os homens armam-se de armas de lavoira e seguem para a luta com a terra dura e seca deixando as mulheres em casa sozinhas ou com os filhos.
António fizera o mesmo durante muitos anos e mal se avizinhavam as casas da aldeia no regresso das terras, as pernas ganhavam novo alento e aceleravam o passo que sabiam esperá-las trabalho menos duro: o namoro ardente e o afecto maternalista.
Entre outros de fortuna e nome mais promissor ele fora o escolhido, mas só em Lisboa sentiu a totalidade dessa estima e entrega por parte da mulher.
Se por momento algum estiveram ausentes um do outro terá sido apenas à 2ª feira quando ela queria esquecer os frangos e as batatas que escaldava, assava e cozia diariamente na churrasqueira.

- O que é que te aconteceu que nunca perdes-te os trapos de vista? - berrou-lhe alto
- Vieste cá ao quarto? Viste as minhas chinelas? - perguntou-lhe do quarto.
[O que é fiz às coisas? Por onde andam vocês? Junto ao fogão e dentro do balcão eu não perco nada e conheço os modos e jeitos para melhor servir a fome danada. Sim, porque fome não tem família, a delas é como a minha, nem mais feia nem mais bonita. Sim, a minha do campo pobre e árido no Verão seco!!!! A delas é igual só que aperaltada e disfarçada naqueles modos de falar educados mas que não escondem a submissão ao homem e ao fogão que ele exige. Lá porque pariram filhos e podem disfarçar os vincos da velhice nos decotes sem bodum, não são mais nem menos que eu do outro lado do balcão, eu que lhes sirvo os caprichos vestidos dos melhores fatos e alteados por aqueles sapatos altos que não me dizem nada aos pés. Para mim os pés têm que sentir a terra respirando senão não são pés para aguentar a alma... Lá porque me asso num espeto gorduroso e mesmo lavada e raspada à 2ª feira não consigo libertar-me das asas e das penas, quem são elas para me julgar e condenar o filho que não dei a António?]