Estaria na adega do Barca Velha ou numa película de Wong Kar-wai?
Cheguei a casa e tinha o 'meu-mais-que-tudo' - perdoem-me a expressão mas estamos em 'alta relacional' - esse que agora tenho à minha espera no sofá, sorrindo malandro ao fundo do corredor enfiado num belo kimono de seda decorado por motivos campestres que se espalhavam num padrão esverdeado e bordeaux que por sinal lhe assentava muito bem à figura de menino.
Olhou-me com deferência quase presidencial e disse solene que me aguardava na cozinha assim que estivesse mais à vontade, desaparecendo para esta sem que eu tivesse tempo sequer de perguntar "como estás?" ou o que quer que fosse e quedei-me apalermada com aquele visual estranho e o tom sério.
Despi-me, vesti uma túnica branca e mal lhe surgi à porta já ele me pegava pelos braços, arrastava sem força e me obrigava a sentar na mesa da cozinha quase às escuras sem se esquecer sequer de me aliviar ainda as mãos daqueles cigarros que tanto o aborrecem.
Assim que pisei o palco da cozinha e entrei naquele filme rapidamente percebi suas intenções e limitei-me a seguir os seus comandos e alguns instintos pessoais não fosse chocar com alguma coisa daquele cenário.
Um pouco enfeitiçada executei sem falha os diálogos que me estavam reservados naquela encenação toda.
O realizador plantou-me num jardim extenso e sumptuoso de iguarias japonesas que só visto: Tempura de Vegetais regada com sal, limão e gengibre; Obentô de arroz, peixe e pickles e o famoso Sushi que do resto já não me recordo bem tão bizarros eram os seus nomes.
Inquiri-o sobre a surpresa ao que me silenciou com um beijo estupendo - que só ele me sabe dar -, um beijo bestial e afastou-se cerimonioso para preparar o vinho que iria acompanhar o banquete.
Resolvi não o voltar a inquirir (já me torcia o nariz por mais que uma vez) e não resisti mais à dialéctica do argumento limitando-me a observá-lo no trato de meste com o néctar que me esperava, com certeza de excelência.
Já não sabia onde estava, se na adega escura e silenciosa do Barca Velha, se numa película de Wong Kar-wai.
Se acompanhada por um enólogo experiente e doutrinário, se por um verdadeiro samurai trajado a preceito: calças harmoniosas como uma saia e uma jaqueta curta e solta.
Ocorre-me até a analogia tonta de me ver no papel do Senhor que não obriga este guerreiro a trabalhar e apenas lhe permite cumprir seu dever de manter-se em boa forma para combater e defender a harmonia lá de casa - só lhe faltava o sabre e o rabo-de-cavalo.
A ambiguidade revelava-se intensa e perturbadora: ora alquimia de um bom vinho duriense em balão semielítipco 'enfiado' pelas fossas nasais ora a performance minuciosa do baishaku com um cálice de saquê.
Não importava. Era soberbo e digno de exemplo aquele Dom Juan na apreciação do generoso líquido.
Começou por observar a cor e o aspecto do seleccionado tinto: elevou-o à luz das velas - suficientes para iluminar a cozinha mas não em excesso que lhe interferissem na ambiência certa para a desenvoltura romântica que pretendia -, elevou mais, agitou o balão para forçar a efervescência e mirou-me nessa análise sensorial encantado e convencido que estava do que fazia e convencia no meu escarrapachado espanto face a toda aquela 'pinta' de enólogo.
Vaidoso sorriu-me, ao que lhe respondi com uma espécie de beijo lufado de ar. Que figura devíamos nós estar a fazer!!!!!!
Confirmado o deleite pela minha deixa passou à exploração degustativa do suco levando o balão aos lábios secos e até fechou os olhos aquando do gole fatal, a tomada do corpo do vinho que o paladar se lhe apresentava concerteza doce e frutado.
Que tolos devíamos parecer!
Mais exuberância não podia o mestre inventar que logo que terminou a prova sorvendo a preceito o divino, inalou com profundidade de atleta o aroma até as narinas se lhe dilatarem e o deslumbrarem com um brilho de lágrima magnífico no bordo do balão.
Lévi-Strauss sabia bem o que dizia quando há muito tempo chocou conservadores e puritanos com a analogia profunda entre comer e fazer amor.
Ontem na cozinha apaixonei-me outra vez e tão doida me encontrava que só para não lhe fazer desfeita degustei paciente o manjar dos deuses e esperei até à consumação da carne real e do verdadeiro fluido, aquele homem por inteiro.
Estes dois mundos que só aparentemente interagem numa necessidade frugal (a fome que habita o corpo e este que a sacia e a acalma) tocam-se também num profundo erotismo e partilham assim campos de expressão comuns, os sentimentos.
Por mais mitologia barata que se invente sobre o pretenso poder afrodisíaco de algumas substâncias a haver alguma verdade só pode ser a que da ficção se gera e impulsiona para sentimentos verdadeiros, estes sim, reais e mútuos na segurança e tranquilidade para o desempenho afectivo e sexual de dois parceiros depois de um bom petisco.
Ontem na cozinha esperava-me um puro jantar de enólogo pelas mãos de um samurai especial, mas acima de tudo uma noite encantada servida por um amante estupendo e que não pretendo esquecer.
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