quinta-feira, novembro 04, 2004

(V) Logo que se viu dentro de casa virou as costas a António que lia o jornal

Pôs sem jeito a chave à fechadura, tão arreliada estava e atirou a mala incómoda para o degrau ao lado para libertar o braço e puxar pela tranca da porta, teimosa e ferrujenta, esquecendo-se que a mala era nova e querida, que só a usa à 2ª feira e quando lhe apetece esquecer os frangos e as batatas que escalda, assa e coze diariamente na churrasqueira.
Não desgostava do trabalho, até pelo contrário, em Lisboa ou na aldeia qualquer outro era bem mais pesado que a cozinha, mas o bodum e os cheiros vivos é que sempre a agoniaram.
Adorava cozinhar e por mais que se lavasse ou raspasse tinha sempre a sensação que se oferecia à noite na cama ao marido, gordurosa e enjoativa, em vez de se deitar com ele na cama, deitava-se era com frangos e mais frangos, numa capoeira qualquer forrada por batatas e hortaliças.
Não há muito tempo descobriu a rebeldia às panelas e fogões ao aperaltar-se toda na única folga da semana: perfumava-se, pintava-se e vestia uma saia leve, que ao vento lhe descobria as pernas que até achava bonitas mas que andavam sempre escondidas em calças de fazenda grossas e botas pesadas que a ajudavam para protecção naquela cozinha perigosa onde o mínimo descuido a podia queimar com os salpicos dos óleos ou das brasas dos grandes aquecedores.
Arranjava-se com descrição e modéstia e passava as manhãs de 2ª feira no café do bairro com outras mulheres trotando vulgaridades e debicando os ares e jeitos dos que entravam e saíam, fosse para lhes desfazer o que lhes parecia pernicioso fosse para o que sabiam inofensivo e com conhecimento de causa.
Tanto nos meios pequenos e promíscuos à privacidade como nos grandes turbilhões anónimos das cidades, as mulheres são pródigas em desdizer o que não vêm para poder ver o que não ouvem.
Era um frenesim coloquial de senhoras, que os homens quase não compareciam com certeza na suspeita de que se lá entrassem, garantias de sair inteiros e ilesos ao juízo probatório da matri-doméstica não sairiam - na certeza de que seriam comidos e triturados vivos se sujeitos aquelas bocas e olhos tribunalizados para o prazer pérfido do nada fazer.
Danada que estava demorou tanto tempo a abrir a porta que logo que se viu dentro de casa virou costas à sala onde António lia o jornal e mergulhou pelo hall adentro ao encontro do quarto onde ansiava despir-se rápida e aliviadamente que só lhe apetecia o confortável robe velho de lã e as chinelas que tão bom andar lhe davam aos pés massacrados a semana toda pelas botas duras.
Livre de cremes, pinturas e aromas procurou a sua roupa sempre igual e envelhecida como o seu corpo estéril que sempre estimou para o marido mesmo sem esquecer os filhos que sabia desejar mas que não lhos deu.
Não os semeou e colheu na aldeia e na grande cidade também não os pôde fazer ou comprar já embalados, que lhe diagnosticaram um mioma avantajado e incauta sujeitou-se à indigência médica de um talhante qualquer que a esventrou e arrancou as entranhas como se faz a um porco.
As entranhas doentes e as menos doentes, só lhe deixando um buraco negro e silencioso que se podia espreitar pelos seus olhos castanhos e ternurentos.
Seguiu para a cozinha - sem gosto de boca algum - para aprontar o almoço do marido que sabia estar naquele momento a interrogar-se preocupado com ela, que não só o vetara à dúvida como o enxotara de si.
Chamou-o a si e indicou-lhe ligeira a mesa:

- Esta pescada não é fresca com certeza...
- Não vais comer? - perguntou-lhe António mas em vão que a resposta já ia sumida no ar pelo corredor a fora.
- Nãooooooo....... Estou sem apetiteeeee.... Tens broa no arm.........
[Malandro, que me enganou. Não gosto de espertalhaços e já não é a 1ª nem a 2ª vez que o seu’Zé me engana e me vende peixe menos fresco. Não é por mim, mas só gosto do bom e do melhor cá para casa, que os outros não me interessam. Os outros, as outras, malandros... Hoje deixo-te a comer sózinho António.]