sexta-feira, novembro 05, 2004

(IV) Clotilde aguarda o seu transmontano, dócil como nenhum rapaz lá da aldeia

- O que é que te aconteceu que nunca perdeste os trapos de vista? - berrou-lhe alto.
- Vieste cá ao quarto? Viste as minhas chinelas? - perguntou-lhe do quarto.
[Estás tonta? Queres ver que as chinelas estão mesmo à tua beira e agora estás cega, que nem me viste na cozinha com o almoço que arranjaste à minha frente? Não as vês? Não me viste? Que se passa mulher...]

Clotilde ouve a buzinadela na rua e sabe que à porta da churrasqueira a aguarda o seu transmontano, dócil como nenhum rapaz lá da aldeia, num arrastamento vigoroso de sacas e mais sacas pesadas a cheirar a terra, prontas para ela na sua cozinha.
Em Trás-ós-Montes os homens comandam no campo de enxada em riste mas na cozinha são as mulheres que os dominam.
Domam-nos, tiranas, o sexo viril e ali desmascarado na fragilidade da fome: tomam-lhes a quentura do caldo e se o azeite lhes parece amargo não lhes deixam molhar a brôa nele que se o azeite não tem a acidez certa foi porque fizeram o que não deviam ou não fizeram o que era preciso.
No campo a força está pelo homem que fustiga e domestica o coração da terra e na cozinha com a mulher em obediência materna impelida pela fome e solidão.
Numa manhã inteira aquela força da natureza curtida prepara panelões e panelões de água a ferver e trata de encher e atiçar os grandes assadores para que as brasas já crepitem vivas aquando do retorno do marido do mercado.
Uma parelha espantosa e sincronizada: ele carrega os frangos e as batatas, ela escalda-os, lança-os sem medo, quilos e mais quilos de batatas já descascadas para dentro daquela fervura assustadora e já as mesas se compõem arrumadas e prontas para receber os clientes esfomeados e ávidos da carne crucificada no espeto e a assar.
A partir dali nada há senão um reboliço esvoaçante e sem intervalo, que cresce em uníssono com a desenvoltura energética dos dois que só podem respirar para ver os rostos que depois de entrarem magros e sem cor, saiem opulentos de satisfação e com expressões de rubor avinhatado: um cliente, um frango que salta da brasa e voa para uma boca qualquer, outro cliente e batatas perfumadas exibindo-se nos pratos e competindo o seu calor com a frescura aguada do vinho verde.
Mais parece uma festarada de gente pagã com asas voando e saltitando por entre mesas e cadeiras num malabarismo louco de batatas e vinho que escorre de copo a copo.

- Já estás de robe mulher? Que fazes? Não vamos sair hoje Clotilde? - entretanto na sala.
- Não me sinto bem - jurou pouco convencida - acho que vou ver um pouco de televisão.
[Talvez seja cansaço que Clotilde já não é nova.]