Um vão de escada de um exíguo r/c é o cabaré dos meus vícios
Talvez pela velhice aparentada a minha tabacaria preferida é a do sr. Manel, homem simples que fez do vão de escada de um exíguo r/c na José Falcão o cabaré dos meus vícios.
Mesmo ao pé, do outro lado da Almirante Reis, é-me oferecido um quiosque de interior a cheirar a carvalhos nobres e onde se respira um élan distinto e insólito com o que lhe vive à porta e bem defronte à grande porta envidraçada e trabalhada em ferro forjado da conhecida Portugália.
Tem no charme um ‘quê’ de ex-libris que só lhe dura o dia porque chegada a noite, entre 'pielas' e ‘piélados’, o quiosque e a cervejaria inteira perdem mérito e elegância.
Nesse, que até me está mais à mão por deste lado da Avenida, já só me espera parca revisteira feminista e alguns bons charutos que a minha bolsa não alcança.
Enquanto o sr. Manel, atrás daquele balcão rústico e castiço - projectado por si e não por uma notoriedade qualquer – ele já me oferece os jornais e o tabaco com mãos que o acaso me apresentou e que me fascinam porque contam folhas e mais folhas, parecendo conhecê-las humilde e sem presunção.
No da cervejaria quem me atende é uma senhora de cabelo armado de potalco em cima de uns bons 60 anos e com ares de alinhante da corte de Luís IV. Atira-me como que envergonhada os pacotinhos inofensivos de mortalhas - bem entalados entre os dedos marginalizadores e anéis de pedras obscenas - e o tabaco sufocado pelos grossos açaimes de ouro.
As mãos dela têm uma rugosidade demasiado lisa e lavada para mexerem e afagarem jornais todos os dias, enquanto nas do sr. Manel brilham unhas de tez escurecida aos nossos olhos viciados no offset, e que, como ele, nunca conheceram leituras empedradas em escritos preciosos.
Danam-me todas as regras de boa educação aprendidas sempre que por lá passo.
Saio rápida e discretamente no último segundo tolerante antes do segundo último de irrazoabilidade e desatino.
A ‘marquesa’ deixa-me pairando pelos revisteiros uns valentes 15 minutos para me demover da intenção compradora e quando se conforma à minha presença persistente pergunta-me sombranceira de óculos na ponta de nariz:
- O que deseja a menina?
Fico danada e saio contrariada antes de lhe dizer o que quer que seja. Contrariada pelo pedantismo barroco e emproado da ‘marquesa’ e pelo parco orçamento que não me deixa dar-lhe uma lição.
Retiro-me sempre a jurar que mal caia o ‘carcanhol’ no fim do mês vou lá.
Chego e entro logo a matar com a retórica cívica da liberdade individual da ‘forma’ e ‘objecto’ do vício que cada um tem por direito (ou o que me ocorrer melhor) e a seguir dou-lhe o golpe fatal, pedindo-lhe como quem não quer a coisa que me junte às mortalhinhas e tabaco de enrolar o “Le Monde”, “O El Pais”, a “Wallpaper” e, porque não, umas modestas cigarrilhas espanholas que sempre são mais em conta.
Não tenho como explicar sentir-me mais atraída pela manga de flanela coçada que afaga o “Público” borrado em vez da manicure ostensiva que calculo assente muito bem numa “Vogue”, “Elle” ou “Cosmopolitan”.
Se calhar tenho que comprar a “Marie-Claire” com um saco e guarda-chuva a condizer com a “La Maison” e assim ficar nas boas-graças da ‘miss’ para a seguir poder solicitar uma ou duas “Gorilas”, que até nas pastilhas ela me marginaliza.
Não gosto, não tenho o hábito só que por vezes preciso apimentar o hálito fumado e vejo-me obrigada, dado não ter escova de dentes à mão, vejo-me forçada a comprar uma pastilha que parece nunca lá haver (a não ser no sr. Manel e de todas as formas e feitios) e a senhora até me esguelha expressão absurda pela existência de tal coisa pequenina que não sabe o que é nem nunca ouviu falar.
Tretas!Tudo tretas!
Se lhe pedisse porventura umas “Ice Creams” ou “Flips” ela sorria afável e até num registo familiar.
Tretas! Tudo tretas!
“No problem my friends” o sr. Manel nunca fecha ou ousa frustrar quaisquer demandas, que aquele balcão minúsculo esconde tesouros para qualquer um ambicionar sem pretensões de classe.
Um dos quais – senão o mais especial e magnífico – o próprio SR. MANEL. Almoça, ouve rádio, repousa e volta a jantar se for preciso porque algum cliente distraído se resolveu tardar.
Serve os caprichos todos e se a memória de algum gaveto lhe falhar também não tem por melhor “que se vier amanhã menina, não se preocupe que logo se há-de arranjar”.
Abençoados sejam os simples e afiançados dos vãos de escada, de sapateiros a jornaleiros, de relojoeiros a alfarrabistas, todos os que se escondem orgulhosos nos quiosques entaipados pela modernidade incolor e nos vãos da humanidade urbana que nos resta do tempo litúrgico em que esses eram ‘senhores’, eram os salva-vidas dos pecados sem hora nem demora e redentores dos ócios e manias.
Vivam os srs. manéis que ainda resistem à frivolidade consumista e se espalham dignos nas profundezas velhas da memória da cidade!!!!
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