quarta-feira, novembro 24, 2004

Os rostos "dos romances que não te pertencem" somos todos nós!

Orgulha-me saber que te engrandece mais um prémio, português e megalítico de outra grande humanidade que foi Namora, médico de todos os que precisaram, fosse de palavras ou da mão milagrosa que sutura a melancolia e a ferida.
Os teus livros têm-me proporcionado dos momentos mais ternurentos em toda a minha literatura, essa com pouca idade e atiçada - quando ‘bem tenrinha’ - por meus pais nesse mundo de letras fartas que numa simples folha de papel agarram e concentram outros tantos, mundos voláteis e pequenos e, no entanto, mais belos que o nosso, que chega a ser injusto quando esquece a generosidade pela vigência das necessidades evolucionistas e produtivas da civilizacão.

Se bem me lembro, a última vez que estivemos juntos foi no "Esplendor de Portugal", obra primeira e antiga da que te glorificaram agora em prémio.
Não precisas de mo lembrar outra vez António. Tu achas que a obra de um romancista só ganha corpo e legitima a memória vivificada quando se aproxima do fim, porque só assim - suada e combatida com corpo no corpo - ela pode reflectir genuína a espessura humana e a sua fragilidade.
Claro, se entendermos que tu és tão comum como os comuns mortais. E se não te considerarmos assim? E se te tivermos como um 'são demoníaco' porque te capacitaste a sobrevoar as entranhas escôndidas da espiritualidade sem que nelas te imiscuas, mesmo sendo tu tão comum aos anseios e desejos dos verdadeiros comuns?
Continuo a achar que o que o autor alcança ou perde não segue uma linha recta e ascendente - afinal sempre terá que "vir cá abaixo" para regozijo da sua inquietação - portanto, não tem que ser lido também com esse movimento crescente.
Daí que ande a ler-te mais antigo e novato em vez do que hoje te aprimorou e quase sublimou como romântico e genial trovador das gentes sólidas.
Não disseste que achavas o último romance de Garcia Marquez francamente mau? Pois é, aqui tens. Porque haveria eu de te ler também dessa maneira? Quem te diz que não tens obra maior nos teus primeiros escritos, ao invés só nos últimos?
Também nós, leitores inquietos e ingénuos, precisamos como tu de ter a esperança no sítio (in)certo para te fruirmos e nos esgotarmos na tua (in)felicidade.
Também nós somos subterrâneos e nem sempre encontramos no teu testemunho aquela palavra certa ou o significado derrador para nos confortarmos das coisas do mundo.
Como cada um é como cada um, imagino que enquantos uns riam de Carlos e Lena na Ajuda patética, eu ame aquela tristeza e cinzentude que os engole e que me lembram as Ajudas de Lisboa senão a mim também.
Dou-te os parabéns por continuares a ser tido e achado nos que enaltecem em escrita os rostos das gentes e seus sentimentos às vezes letais às suas vidas, emoções essas que tu sossegas e paternalmente nos desculpas (como tu compreendes a inocência falsa porque perversos somos quando ambicionamos outros...).
Quantos não morrerão mudos porque não têm essa clareza, essa tua magia que na escrita se evidencia e ganha corpo para exorcitar nossas almas atrofiadas e perdidas, que não há como banir para não nos envergonhar?
Também a passagem do tempo me apoquenta, mas ao contrário de ti, não por achar que me resta pouco para o que ainda não concretizei, mas por ter a certeza de que na velhice quero uma memória surda e hipócrita das coisas dos homens.
O mundo é demasiado feio para as minhas expectativas e desejo apenas que passe por mim rápido e ausente nas suas (des)evoluídas conquistas do tempo e da minha memória para que amanhã não tenha que chorar o milagre que não há como não haver ou ter sido, ou a obra que nos traíu desumana e cruel.
Sei que todos temos um papel na desenvoltura desse universo cósmico que erigiste e tão bem recheias, o que não temos é a inteligência afectiva para dar-lhe continuidade dentro de cada um de nós.
És a longura romântica e o busílis do meu desassossego e angústia, eu que faço parte dos humildes que precisam de ser iluminados para que se sintam dignos como operários e nobres na sujidade e sapiência da sua passagem breve e inócua por cá.
Somos os que esgrimimos a tua "vaidade e inveja" para que o sangue nos pulse nas veias, dilate em vida e te possamos oferecer esse caos humano de que te inspiras e onde nos fazes ricos afinal de tudo.
Meu avô, camponês iletrado mas sábio porque entregue à paixão pelo mundo, diria com certeza que és o pastor da serra inóspida e perigosa que o recolhe à sua consciência, ao conforto do 'bem simples' e do sentimento profícuo mesmo que marginal e autista para os senhores da verdade e da moral.
Precisamos ver-nos outra vez. Talvez agora possa agarrar no teu último romance, agora que "cá debaixo" e com outros preciso de te rever outra vez para me encontrar novamente.
Como sabes, a vida tem poucas glórias e nos últimos dias tenho tido a casa perdida e abandonada porque ousei conquistas que só agora reconheço não estar à altura delas.
Sei que se te ler posso recuperar a serenidade e sentir a paz como elas são verdadeiramente intensas e belas: no sonho comandado pelo impulso do desejo, no sonho acordado.
Aqui são perfeitas e alcançáveis porque os teus romances mesmo duros dão-lhe corpo e a razão justa dos sentimentos.
Mesmo a justiça sem lógica e inconsequente, porque expressão do amor absoluto e instintivo: em "sangue, olhar e gesto".
Preciso de ti neste momento porque é como tu dizes e muito bem: "um amigo é aquele que não necessitamos para falar. Há uma partilha, até de silêncios".
Quando "Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo" chegou aos escaparates não hesitei - e aqui me confesso, estava num frio e impessoal hipermercado - e agarrei logo num exemplar, sem que não o afagasse primeiro para certificar-me ainda virgem, não fosse alguém antes lhe ter pegado e levado algumas palavras consigo.
Comprei-o e logo em casa o folheei, mesmo sabendo-o reservado para mais tarde, que outros autores entretanto me ocupavam.
Contigo é assim, abro ao acaso um livro e salta de lá o amor viúvo nunca mais esquecido, ou então, reconheço espelhada a fúria cega por intolerância do dia anterior ou a loucura desbragada de um abraço solto que deixei numa rua qualquer.
Não quero sugerir com arrogância que sejas o meu redentor, configures na escrita o oráculo certo de cada incoerência ou aberração minha e que exorcitas fatalmente nos escritos.
Não, claro que não. Não és o "divino", nem nós sujeitos tristes e perdidos de desgraça que precisemos do código da tua loucura sã para de tontos perigosos passarmos a excênctricos inofensivos.
Não, as aberrações e os demónios que temos continuarão a sê-los e a deambular pela vida mesmo depois de te lermos. Talvez mais ricos por revelados, não?
O estranho que te lê e se confessa continuará estranho para os outros, porque o teu mundo é o teu e não o nosso, que não é fácil de entender e explicar porque assombrado, mais estranho e absurdo que o teu que nos abre uma porta amiga.
Como podes dizer que às vezes te soa tão estranho o que escreves como a nós, esses sim, que assistimos na tempera final e consumada, sem essa mestria e força de pulso 'sonar' que te move aos instintos mais bárbaros e egoístas.
Penso que o afirmas como defesa e talvez tentativa de não te sentires superior aos "cá debaixo", os ilógicos e de costas viradas para o amor fraternal.
Não precisas, nem queremos que reinventes a tua fragilidade porque assim o mundo não tem salvação, sem românticos como tu ainda seria plano...
Precisamos todos dessa oratória infame e inflamada que tens já que a indiferença nem sequer nos leva ao confessionário.
Precisamos que apontes todos os 'judas' que puderes porque só assim podemos contar com alguma dignidade na morte, porque tu - que até nisso és brilhante, tu que não tens medo de morrer mas pavor que a mão te falhe - com essa capacidade de arrancar do sorriso anónimo a pequenina história de amor ou a paternidade infecunda, não queremos que te atrofies ou absolvas para o quedar do sopro.
Não queiras que tu e outros como tu sejam modestos e humildes porque assim quem nos resta para contraiar e denunciar as falsas virtudes?
Orgulha-te dessas histórias de amor que coleccionas até hoje para nós, que fora do teu papel não têm como ganhar vida, essa o teatro escrito para alguém levar vivo à cena.
Nós que nos queres primitivos em vida para que o centro do mundo sejas tu com essa mão maravilhosa que endeusa as nossas imperfeições e no-las despes para mostrá-las com ternura, as virtudes remendadas de falsa vida por gente viva, mesmo de falsitudes.
Os rostos "dos romances que não te pertencem" somos todos nós, e nós amamos-te por isso.