sexta-feira, novembro 19, 2004

Corpo Santo…

É frequente surpreendermo-nos quando circulamos pela rua com ‘estranhezas’ se não ‘entranhezas córporas’, se mo permitem dizer assim. Cruzamo-nos com figuras bizarras que desconfiamos serem mais andróides pelo metal que carregam do que humanóides que não lhes alcançamos muita carne à mostra.
Basta chegarmos ao Chiado para encontrarmos em tertúlia "cacofónica" espécimen’s cobertos de tatuagens e piercings em número suficiente que ganham aos pontos o ferroso e esverdeado Fernando Pessoa.
Alguns em quantidade razoável e numa proporção que nos permite ainda visualizar um centímetrozinho de pele descoberta e virgem e outros, no que suspeito de algum masoquismo, aparelham-se de tanta quinquelharia que mais parecem o lateiro da aldeia da minha avó montado em cima do jerico que o carregava junto com farto arsenal de lata e ferro que os embrulhava de tal maneira, que para cumprimentá-lo implicava primeiro afastar um pote, passar a seguir por cima de um funil, depois virar à direita num coador para finalmente encontrá-lo sentado na cavalgadura e atrás de uns medidores de azeite, bem jeitosos por sinal, que mais parecia ter acabado de chegar da terra de OZ.
[Ninguém me convence que aquilo não dói porque ainda me lembro de aguentar as lágrimas grossas e o berro na garganta para não chamar a minha mãezinha que o estupor do médico me magoava cruelmente com aquela agulha directa ao meu rabo e enterrada na minha nádega que ela mais parecia quer ganhar vida própria e desatar a saltitar pelo consultório e berrar ao violador tudo e mais alguma coisa, que aquela bodega doía mesmo!]
Pelo menos o lateiro, quando o encontrávamos, surgia-nos ileso e sem quaisquer mazelas e queixumes, o que destas figuras já não posso garantir que às tantas não sei se contei 89 puros poros ou 98 buracos, se 89 poros sepultados vivos numa tumba sintética e preta, se 98 empaliçados e empaulados pelo metal sanguinário como faziam algumas sub-culturas colonizadoras e colonizadas de África.
[Ainda me lembro que andei 15 dias com um penso na orelha, porque me lembrei de furá-la com uma agulha e em vez de a projectar certeira e firme em direcção ao lóbulo, andei para ali com o espigão espetado e desesperado aos apalpões e safanões que o lóbulo parecia pedra e a agulha entalada na orelha e indecisa no único furinho que não conseguia fazer]
Para os mais conservadores e tradicionais estas figuras têm ‘muita pancada’ porque perdidas da espiritualidade normalizante dos bons costumes e visuais, e para os ultra-conservadores resumem-se a esquizofrenias ambulantes de índole subversiva.
Também não exageremos que não é civilizado e de tolerância deixa muito a desejar. No campo dos padrões estéticos vrs acessórios não são mais nem menos anti-naturas que os que se macaqueiam nas ‘caravanas sociais’ com próteses estéticas e enchimentos carnídeos nos sítios mais pessoais.
Esses também parecem querer renegar alguma coisa da sua génese e da sua identidade particular.
[Até eu, que tenho fobia e pavor de agulhas cheguei aos 30 anos - acreditem nisto - aos 30 anos a chorar em plena enfermaria do Hospital de Vila Franca de Xira porque uma enfermeira muito simpática me queria alcançar a nádega sagrada para uma vacina intra-muscular e eu só lhe dizia:
- Desculpe-me senhora enfermeira mas eu tenho muito medo de agulhas. Prepare-se que não vai ser fácil.

A enfermeira sorriu e chegou-se a mim para me esfregar com álcool e eu mal senti o frio do algodão comecei logo a fugir e a chorar dizendo-lhe envergonhada:
- Ai que me dói! Desculpe-me lá senhora enfermeira - e fugia-lhe com a nádega - eu sei que já não tenho idade para isto – e já estava do outro lado da sala - mas desculpe-me mais uma vez que eu tenho medo de agulhas e isto dói-me – sem que a agulha me tivesse tocado ainda.

Andei quase meia-hora a fugir até ela me encurralar entre uma marquesa e um pequeno armário esmaltado e a chorar e a pedir imensa desculpa. Chorava pelo ridículo e pela dor da agulha sem ela me tocar sequer. O algodão foi ao chão e já a senhora enfermeira ria estupidamente com os outros auxiliares e eu de faces banhadas ria, chorava e continuava a fugir com o rabo:
- Devia ter vergonha não é senhora enfermeira? Isto é irracional eu sei…. mas é que eu tenho pavor de agulhas senhora enfermeira e como isto me dói!
Escusado será dizer que nunca mais pretendo lá voltar ou a outro hospital para levar o que quer que seja, que para os médicos eu sou como os supersticiosos:
- Vai de recto! - Vai de recto!

Mesmo assim - acreditem - ando com 16 argolas, mais precisamente 16 buracos nas orelhas. 16 Penduricalhos de prata maciça bem esculpidos e interessantes obras de ourivesaria argelina]
Trata-se tudo da mesma coisa: códigos e sinais estéticos, linguagens visuais e imaginosas, simbologias tribais ou classicistas. Fundamentalmente expressões e cânones estéticos (uns mais primitivos e outros mais modernos) e acima de tudo elementos acessórios ou modas de ‘estetas’ para nos normalizarmos, para diferenciarmo-nos por pertença a um grupo social ou à vulgar padronização das tendências que estão en vogue.
Digam o que disserem é tudo acessório e ainda não é fundamental à sobrevivência ou à individualização filosófica de cada 'ser' no tecido social anónimo. É inevitavelmente de valor secundarizante, mesmo que cada um não o tenha como tal, mesmo que acompanhado pelo principal, o que nos distingue dos outros, o que nos dá a verdadeira individualidade do carácter e como indivíduo - mesmo sabendo que contribui para a nossa segurança e conforto do ‘estar social’, não deixa de ser acessório, logo prescindível.
Algo mais importante nos une a todos sem distinção de classe ou filosofia estéticas: o Corpo Santo.
Esse a verdadeira matéria, forma, energia e sólido. O veículo transitório para católicos e o mesmo para os agnósticos, esse que vem ao mundo e deixa-o igual na sua génese: com cabeça, tronco e membros.
[Sou agnóstica confessa e custa-me a crer nas manutenções e sublimações corporais que ultrapassam o estado natural da matéria.
Lembro-me até de minha irmã mais nova, em tenra idade de criança, ser obrigada a assistir ao ritual da lavagem e preparação do sólido da avó-avó(?) do meu pai (sempre fui troca-tintas com os parentescos e só não sou deserdada porque meus pais são compreensivos) para a seguir participar no ritual carpideiro
da ronda dos da aldeia ainda vivos.
Imaginem uma criança a ver uma mulher de 90(?) e muitos anos (também sou troca-tintas nas idades e ainda este ano ia somando ao meu aniversário
dois anos se não fosse a maravilhosa Antonieta, minha mãezinha: oh filha, daqui a bocado
tens quarenta!!!!!).
Imaginem então a minha irmãzinha expectadora do
requiem do sólido da avó-avó(?) do
meu pai, com mais pregas que os cortinados da minha vizinha, branca como a cal que nem lhe valia o melhor pó de rouge que se arranjasse para ganhar mais viço e cor. Imaginem-na… cruel, cruel!
Vou doar o meu sólido a uma boa trituradora hospitalar e se entretanto o tabaco não me conspurcar de cancerosa talvez me queiram estudar e usar para adubo ou para uns pózinhos como fazem os chineses]

Nos tempos que habitamos o corpo tornou-se uma matéria pura a modelar segundo o ambiente cultural e social do momento. Já não é versão irredutível de si mesmo mas uma construção pessoal, uma individualidade física mutante, um objecto transitório e manipulável segundo as variadas metamorfoses dos desejos e intelectualidades do indivíduo que o carrega.
Já não nos contentamos com o corpo per si e ansiamos modificá-lo convencidos que só assim somos os genuínos mandatários de uma Ideia/Imagem/Mensagem que queremos que os outros façam de nós , ou seja, dele.
Por vezes chega a parecer que essa Ideia/Imagem/Mensagem não é a que mora lá dentro por excelência mas a do exterior, a transitória e dependente da interpretação correcta ou incorrecta dos outros.
Chego até a desconfiar que alguns, se pudessem, cuspiam-na para a berma da estrada para ficarem mais versáteis às actualizações permanentes, como aquela tralha toda que os carros de corrida largam para mais leves e rápidos.
[Cá por mim é como eu durmo melhor, que só me preocupa se num futuro próximo já não tenho rins para fazer ‘marmelada’ a noite toda ou que a minha preciosa visão não alcance as letras cada vez mais pequeninas dos jornais e às vezes dos livros, que quando os verões ardem neste país a industria da celulose produz menos papel, logo os livros de repentem minguam e o tamanho dos caracteres por consequência.
Não prescindo das minhas orelhas rendilhadas a prata que me sinto despida sem elas, mas não contem comigo para encher com silicone as pálpedras ou os lábios para fazer olhinhos de uma idade que não tenho ou boquinhas ululantes às criançinhas porque aos pais delas é que não podemos fazer.

Também prescindi da tatuagem nas costas que acho exótica por demais mas que nunca tive a coragem de fazer por medo da dor que possa sentir e aqui tenho a certeza que em vez de deserdada sou elogiada pelos compreensivos dos meus pais que acham que pela primeira vez revelo bom senso]
Imagino que se os cirurgiões plásticos brasileiros vêm para Portugal como fizeram os dentistas e sabendo nós a tabela de preços competitiva que eles atingem, corremos sérios riscos de nos cruzarmos na rua com sólidos dentados e bem ‘siliconados’ dos pés à cabeça:
- Olá, sou 50gr nos labiais, 4 lipoaspirações à posteriori e 37gr no rabiosque – e abre-nos uma boca gelatinosa para mostrar uma placa digna de um Papa que nos parece que nos vai chupar e trincar todinhos.