domingo, novembro 07, 2004

(II) Era a pobreza do campo entranhada na pele de Clotilde

Um almoço igual aos outros todos, mas Clotilde diferente, deambulava pela casa como que distraída dele e numa inércia que não lhe era própria. Séria e fugidia, aborrecida que mais parecia envergonhada. Do outro lado da toalha axadrezada não estava ela debruando o miolo da broa lentamente com os dedos sobre o azeite e o peixe suado como sempre fizera - ela e todas as mulheres que conheceu na sua aldeia de Trás-os-Montes. Roía as azeitonas com as mãos, hábito que sempre o fascinara e incomodara em simultâneo, porque enquanto ele bem ensinado por seu pai segurava os talheres, já Clotilde comia com as mãos numa satisfação de expressão carnal que o perturbava.
Era chupadela aqui, lambidela ali, na broa e nas batatas inteiras e esmagadas no azeite. A comida saltava dos talheres, que a estorvavam para as mãos e delas para os dedos que, ainda requintada nesse prazer que tinha, ainda levava a seguir a comida à boca e os dedos atrás para lambê-los antes deles voltarem outra vez às mãos e aos talheres.
Não era falta de educação ou maluqueira que Clotilde não se revelava assim em mais nenhuma circunstância.
Era a pobreza do campo entranhada na pele e nos hábitos que mesmo quando civilizada com talheres e presenteada com mesa rica e esteta, ela voltava à lembrança e abarcava tudo nos cheiros, sabores e toques.
Perpetuava a animalidade do prazer, esse que não se esquecia da boca, das mãos e do corpo inteiro da pobreza na fruição das coisas.
Uma consoada de natal para as gentes do campo lembra sempre a Última Refeição de Cristo. O jantar monárquico mais rico e sumptuoso que às vezes chega a ser de luxo obsceno perde aqui terreno na graça e na fé humilde.
É intrinsecamente avesso aos prazeres bodos que restam aos que pouco ou nada têm. Na comida, mesmo quando terrosa, é-nos oferecida a dádiva do corpo e o testemunho santificado do milagre da ressurreição (o corpo e o sangue de Jesus Cristo).
Aos pobres, Deus surge antes de perecerem e permite-os olhá-la, cheirá-la e alcançá-la pela última vez, com as mesmas mãos e unhas sujas que antes revolveram a terra também pobre e que nunca lhes mereceu tanta fartura.
Tudo para que participem antes da morte no milagre da partilha e multiplicação do pão e do vinho (o corpo da fé e da salvação) e possam invocá-lo no leito e legá-lo virtuoso aos que cá ficam por eles a perpetuar essa mesma solicitude.
Passam-lhes o testemunho sagrado e a miserabilidade cega e surda à abundância injusta por classicicista que por não ter um certo cheiro, gosto, nem calor, falta-lhe então o que importa ao amor e à fé desse deus que só assim se alcança.
Do outro lado da toalha axadrezada onde tudo lhe parecia normal, desde a broa de centeio, as azeitonas regadas em alho e azeite e até o saboroso vinho verde, pouco maduro e fresco, começou a comer acompanhado pelo silêncio que o perturbava por misterioso e só quando um barulho miudinho de vida se anunciou vindo do quarto é que comeu como sempre e terminou satisfeito, afagando a barriga apertada contra a mesa em sinal de prazer.
Se a mulher não lhe faltava para alguma coisa era com certeza na fome.
Unia-os de forma erótica a mesa e a saciação dela, de cada um para cada um, na comida de um e para o outro.