domingo, novembro 21, 2004

Os filhos que não alcanço no elevador para minha mãe

Posted by Hello

Nos meus afectos, e asseguro-vos que são fortes e bem estimados, neles os filhos não existem, ou pelo menos não se afiguram como tradicionalmente são.
Não me ocupam espaço, nem ganham forma nas minhas expectativas, que eu bem os procuro e esforço-me mas não os encontro.
Tentei, ai isso é que tentei! Mesmo assim não os acho...
Um dia, num elevador exíguo e perversamente espelhado, descia eu com minha mãe, descíamos as duas em conversa bem lá do alto dos andares que nunca me pareceram tão altos como naquele dia - ou pelo menos nunca os tinha subido ou descido assim.
Sem razão à vista perguntou-me se não pensava em filhos.
- Filhos? - repeti-a em eco sem ainda sentir-lhe o conteúdo - filhos como mãe?
- Filhos. Acho que gostava de te ver com um. Talvez me desses um neto…
- Um neto mãe? Que tal arranjar um pai primeiro? - perguntei-lhe malandra.
- Não falo de um pai, mas claro que precisas de um homem. Apetecia-me um neto, um filho teu sabes?
Tínhamos partido do 6º andar e chegávamos ao 3º na segunda tentativa materna ao
convencimento:
- Penso muitas vezes que te fazia bem para cresceres como mulher…
- Oh mãe! Achas-me assim tão imatura?
- Não filha, até te acho uma miúda muito interessante. Por isso mesmo. Tu revelas no teu ‘ser’ afectivo um jeito maternal e uma sensibilidade que parece por vezes inapropriada para quem não é ‘mãe’ e não conhece o mundo generoso que lhe é de expressão única. Não sei, penso muitas vezes o quão importante isso não seria para a fragilidade e emotividade que tu sempre revelaste.

- Mãe…….
Pouco faltou para que o rés-do-chão não lhe bloqueasse a terceira tentativa ao argumento e tese e eu pudesse abrir logo a porta do elevador e deixá-la lá dentro mais a sua persuação espelhada e gorada e me lançasse ligeira à rua que se reflectia mais ampla e livre - lá fora não insistiria e esqueceria as investidas mátrias na falta de privacidade do exterior agora ocupado
por outras filhas e mães que se lhe impunham distantes entre si.
Por razões que agora não são importantes, uma vez chamei por esse filho mas nem o amor de mãe mo conseguiu arranjar.

Desencantar essa criança que não lhe concedo para regalar e apaziguar o seu coração generoso, que bem me esforço mas não o encontro (procuro e não o vejo à beira do meu corpo, dentro dele...).
Vejo crianças, isso sim, até as vejo nos meus sonhos ou fantasias – chamem-lhe o que vocês quiserem - mas elas não são diferentes de mim nem de ninguém.
São gente mais pequena e estranhamente perfeita.
Perfeitas porque simples, e toscas também, como tudo o que brota novo no segundo imediato ao segundo anterior quando não eram ainda nada.
Perfeitas porque são como são, sem precisarem de ser o que quer que seja, e por serem irredutíveis no que se propõem naquele segundo exacto, são toscas porque puras e perfeitas, porque livres do juízo consideratório a ser qualquer coisa.
Eu sei, isto não são crianças, talvez só imaginários sentimentais e simbólicos do valor hipotético dessa criança em mim.

Talvez por isso elas me visitem como gente igual aos outros e a mim, só que mais pequenas e perfeitas, porque não as deixo crescer e ser gente.
Porque a perfeição não fala nem ouve - que o que dizem não se resume a nada senão ao espelho do que sempre existiu e que parece que já fomos.
Como somos sofisticados e evoluídos, nós nem nos lembramos do que é 'ser' meramente pela força do 'ser' , no vivificar, particularmente no que toca ao sentimento, que não se consegue configurá-lo sem pretender a construção de qualquer coisa - como só até hoje a criança inocente consegue - ser afecto e alimentar o 'ser' sentimento por si.
Talvez por isso sendo mais pequenas e toscas, não sejam diferentes nem imperfeitas porque afinal não lhes falta nada.
São mulheres e homens pequeninos e embora sejam a cara de outros, não agem nem reagem como esses iguais a si, maiores e sofisticados, não se medem sequer pelas suas acções, pois não reside nelas o que são ou o que fazem delas.
'Ser' por 'ser', exclusivo ao sentimento e afecto com generosidade é demasiado básico e inconcretizável para os que não são crianças, ou direi demasiado perigoso e frágil?
Não passa pela cabeça de ninguém estabelecer os afectos como moeda de troca primordial para ‘ser’ qualquer
coisa para alguém.
Não tem forma, peso e medida. É só o que se propõe por si e é irredutível: é a relação com o sentimento pelo sentimento do ‘ser’.
DELÍRIOS!!!!
"Diz-me o que fazes e dir-te-ei quem és!"
O padeiro senão fizer pão não é padeiro, o empresário se não gerar capital não é empresário, e até um pai se não levar os filhos à escola não parece um pai.
Como explicar isto à minha mãe?
As crianças, essas serão sempre filhas de alguém, mas sobretudo crianças: ainda nada a não ser o sentimento vivo para o sentimento dos que as fizeram.
Não poderemos ser nós também assim nos intervalos da gente grande que tenhamos?
Ser por nós pelo sentimento dos outros?
Porque mesmo que façam pão, gerem capital ou levem outros à escola poderão também ser às vezes crianças e ainda filhos de alguém - duplamente reunirem em si o sentimento pelo devir!
Esta perfeição em ''ser só o que somos para os outros em sentimento, não porque nos fizémos desta ou daquela maneira, mas porque evidenciamos o 'ser' como somos, fomos e pretendemos ser em sentimento.
Como explicar isto à minha mãe?
Para mim um filho não sabe aos filhos dos outros que quando os vejo juntos não me parecem as crianças dos meus sonhos, parecem-me 5 ou 10 dos mesmos e para os mesmos - talvez porque não os conheço.
No fundo e bem no fundo dos meus afectos não é um filho que me sublima os sentimentos e os afectos pelos outros e por mim própria, mesmo sendo ele produto d’O sentimento maior entre gente grande.
Procuro sempre e gosto de sentir o sentimento pelo sentimento nos grandes e não já crianças. Isso procuro e anseio a todo o momento com todos os que fazem parte de mim e do meu universo de afectos.
Minha mãe acha que talvez precise de amar.
- Amar mesmo aquele amor sabes filha? Amar, assim como tu não sabes, um homem para desejar filhos… Acordar sem esse homem ao lado e sentirmo-nos morrer e aí sim, nesse momento, nesse dia que nasce para sufocar até fazer um filho. Percebes, filha?
Percebem vocês? Sabem vocês?

Eu não sei, que nunca acordei assim com um ao meu lado a sentir um filho que ainda não fiz com esse homem que me vai deixar a morrer pela vida.
- Nesse dia tomas o verdadeiro peso do amor e por isso da vida, filha. Porque tu és nele e ele em ti... É isso o amor, filha...
Fazes-te nele e nele te esgotas como sopro de vida. Só nos esgotamos assim quando os filhos nascem, nos arrebentam as entranha e cegam o ódio aos nossos homens.
Pois é, deve ser assim o tal amor.

Esse homem chega e é o primeiro dia da nossa vida e assim nos traz um filho que não se pode fazer sem se amar assim, isto se esse homem for o que ela diz e o filho como pretende que seja.
Imagino que as mães também sirvam para nos lembrar os filhos que não alcançamos no elevador e os homens por quem ainda não sufocámos até fazê-los.