O baptismo de Comédia
Cheguei a casa ‘à rasca’ com as 14:00h seguidas sem sequer ir à rua ‘morfar’ qualquer coisa pela hora de almoço. Dói-me o estômago obrigado este que foi todo o dia a trabalhar só com nicotina e ainda tenho uma bruta de uma enxaqueca a chatar-me a 'moleirinha'. Bolas!!!!
A seguradora acumula cada vez mais trabalho e proporcionalmente menos funcionários o que resulta na proporção directa do aumento de turnos para o pessoal e um suspeito e epidémico surto de baixas temporárias. Do que é que estão à espera, que o pessoal dê conta de tudo menos da saúde? Bolas!!!!!
(…)
- Comédia? – só a minha ‘fofa’ para me aliviar com aquelas lambidelas quentes que tanto gosta nos meus pés…
- Vejo que já chegaste…
- E vês muito bem. Queres ir já à rua ou posso sentar-me um bocado? Estou estoirado…
- Um bocado não Linfócittos, senta-te todo. Com cabeça, tronco e membros, Linfócittos.
- Uhhhhh……. Estás de 'trombas'?
- Se queres mesmo saber não estou de 'trombas', estou de 'focinho' que é o que tenho. Estou há 6:00h de 'focinho' e aflita para ir para a rua, sabes?
- Uffffff….. Estou estoirado e tu ainda gozas comigo Comédia? Está bem, deixa-me em paz cão! – com a enxaqueca esqueci-me da única coisa que não posso chamar a Comédia, que é CÃO. Esqueci-me ‘fofa’, foi sem querer…
- Cão? – sentou-se e olhou para cima com o que acho que é um canino de fora – Cão de estimação, cão de caça, cão de casa, cão-guia…
- Siiiiiiiiimmmmm Comédia!
- Cão de guarda, cão de fila, cão-polícia, mas fundamentalmente doméstico, o que vigia a casa e te faz companhia!!!!!!!
- Desculpa Comédia, é que estou cansado…..
- Não desculpo senhor Linfócittos que ainda falta o cão-comédia – disse arrogante e elevando a voz.
- Cão-comédia?
- Não me chega ser cão-aculturado, domesticado, socializado e amestrado, como ainda achaste por bem (achaste, nota bem, que a minha opinião não ma pediste), achaste por bem fazer pouco de mim e fazer-me cão-comédia: um cão com graça e comediante.
- Comédia!!!! Estás agora a ser injusta!
- Deixa-me, larga-me, livra-me e ‘achentra-te’ como tu tanto gostas de dizer. Não sou cómica e muito menos tenho jeito para comediante! Ouvis-te????
- Cccooooooommmééédddiiiaaaa? – está chateada mas que se 'dane' , logo dou-lhe um osso e fazemos as pazes.
(…)
Comédia é como as mulheres: dá-se-lhes um mimo e dizemos-lhes que são o nosso ‘mais-que-tudo’, que há dias que são ‘lixados’ e não nos lembra sequer que elas não têm a culpa: Bidu, bidu…. Não é ‘fofa’? – e ‘pimba' caiem-nos logo no papo.
Claro que com a senhora Comédia não foi tão rápido e até exigiu dotes de retórica que eu nunca pensei que tivesse. Levei dois dias a convencê-la que tinha sido um nome escolhido com muito cuidado e com base de sustentação forte.
Era bestial porque associava sempre a algo ou alguém de espírito crítico – omiti o seu jeito leve e de 'graçola' -, com a particularidade de evidenciar também um conhecimento profundo das circunstâncias sociais, ideológicas e culturais do tema em questão, o que lhe dava um estatuto priviligiado (até lhe lembrei que o amigo dela - o Aristóteles - é muito afamado pelo estudo da comédia e da tragédia).
Andou um dia a matutar no assunto e veio ter depois comigo dizendo-me que me escusava de armar ‘aos cucos’ porque comédia também é o teatro de humor jocoso e a sátira sarcástica, aliás tudo o que se associa ao ‘gozo’ e à palermice, tudo o que as pessoas tem por cómico e tonteria tolerada.
Tive que começar tudo de novo e esforçar-me um pouco mais para encontrar o argumento indestrutível, o inabalável que a comovesse.
Isto tudo para que a minha ‘fofa’ me desse ‘troco’ outra vez, porque vocês não imaginam o que é viver com Comédia mal humorada, é pior que uma mulher zangada.
Comédia vinga-se com as armas que tem: mata-me de susto cada vez que me aparece por trás a ladrar com todas as notas que arranja, que da última vez até parti uma jarra da minha mãe que quando souber corta-me a mesada.
Rói-me os chinelos alegando que está com falta de cálcio nos dentes, para não falar das 'mijinhas' em tudo quanto é rodapé e perna de cadeira porque no seu entender vai poucas vezes à rua.
O pior foi quando cheguei à Seguradora e numa reunião importantíssima com um potencial cliente eu ‘saco’ todo 'pintarolas' e inchado do memorandum que me levou uma noite a redigir em duplicado para o cliente e digo-lhe:
- Como o Sr. pode verificar a minha companhia assegura-lhe a cobertura de todos os danos em qualquer parte da Comunidade Europeia, danos pessoais e materiais evidentemente. Além disso acrescentámos uma cláusula nova que permite abranger os danos tradicionalmente não cobertos pela nossa concorrência.
Se ler a página 66 vai…. – o meu cliente já estava no ‘papo’ e entretanto começara a folhear o calhamaço à procura da dita 66 – isso mesmo aí…. – olhou mais perto e olhou para mim.
- O Sr. está na página 66? – perguntei claro!
O homem levanta-se e pergunta-me que raio de «danos não tradicionalmente cobertos pela concorrência» é que a minha Companhia pensa entender deverem serem cobertos:
- Está a gozar comigo, homem?
Fiquei todo baralhado e disse-lhe:
- Como? Se o Sr. vir a página 66… – o homem passa-me o calhamaço com a dita aberta e quando eu vou ver o que lá está engasguei-me e comecei a baralhar a papelada toda, aflito que estava.
Estava indeciso, não sabia se havia de meter uma ‘peta’ para aguentá-lo e passá-lo a uma colega, se me havia de rir à ‘fartazana’ com a prenda que Comédia tinha entendido dar-me como forma de protesto.
É que eu até acho que sou um tipo porreiro e difícil de zangar. Têm que me ‘chagar’ muito a ‘carola’ para me fazerem perder o ‘tino’.
Ao contrário do que Comédia pretendia, aquela poiazinha perfeitinha e clara, como todas as que faz (Comédia defende que o verdadeiro carácter de um cão conhece-se pelas fezes, que ela fala assim, não pelas poias mas pelas fezes que deixa no passeio), aquela coisinha limpinha, ali escarrapachada no «artigo nº 64, 4ª cláusula e 7º item» que confirmava «a cobertura total e reposição inteira do valor em causa», não me ‘lixou’ - que por acaso estávamos no Carnaval - mas deu-me um ‘gozão’ do caraças logo pelas 10:00h naquela casa de gente ‘enfiada’ e sem ‘tesão’ algum.
Ri como uma doido, pus o cliente a rir como outro, convencido que estava da partida carnavalesca, e fechámos o contrato onde eu ainda consegui ‘sacar’ uma comissão do 'caraças' para as minhas mini-férias que se aproximavam.
Pumba! Dois coelhos numa cajadada só!
(...)
Cheguei a casa e sério disse-lhe que estava muito enganada a meu respeito:
- Se a senhora pensa que lhe vou mudar o nome por um capricho intelectual seu, está muito enganada!
Nesta casa quem escolhe os nomes é quem trabalha e a senhora que eu saiba não faz nada senão pregar-me partidas todos os santos dias! Isso é que era bom saiba que…. – lembrei-me do «artigo nº 64, 4ª cláusula e 7º item» que confirmava «a cobertura total e reposição inteira da poia em causa» e da cara do cliente a olhar para ele e desatei às gargalhas caindo no chão e rebolando-me com Comédia agarrada a mim – a senho… AHAHAHAHAH fique sab…. AHAHAAHAHAH, desculpa Comédia mas só tu para me fazeres feliz ‘fofa’….AHAHAH
Rebolámos ternurentos os dois e rimos até nos doerem as entranhas.
Dois coelhos numa cajadada só: Comédia percebeu que só podia ser Comédia e eu safei-me da boa, que se Aristóteles não a convenceu eu não sei o que mais podia ‘desencantar’ para a convencer.
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