sexta-feira, novembro 26, 2004

O género feminino

Acordei com grande relutância, vesti-me à toa e fui ao único café aberto na rua. Passei para lá das enormes vidraças e segui a escuridão num chão granítico e demasiado polido para as botas ensonados e de atacadores desapertados ao pendurão pelo pescoço, que bem queriam agarrar-se à ganga, zonzos que estavam, e se sentiam da brusquidão calçada, mas até as calças contrariadas e doridas pelo brilho dos mosaicos se esquivavam deles.
Éramos mais dos que eu esperava ali encontrar fechando os olhos violentados pela luz artificial e que bem há pouco tinham deixado a escuridão sonhada e o leito solto da noite.
Muitos e demais ali no café, naquela manhã tão radiosa quanto violenta aos sentidos adormecidos.
Um velho lê o jornal entre lamelas de comprimidos e um papo-seco menos convidativo que a torrada assada e um sumo de laranja efervescente do outro e último homem ao lado e prostrado num tampo novo por desinfectado.
Esse menos velho procurava nos óculos o equilíbrio entre o infortúnio e o azar da vida, os números mágicos do totoloto que por certo o levariam daquela rua cinzenta e triste que só lhe permitia adivinhar o sol entre uma marquise descascada e uma chaminé quase desfeita e o encaminharia à felicidade entalada entre dois ponteiros velhos, os que perfaziam a hora exacta das 11:27, a hora para o milagre fervorosamente desejado que trepava e se fazia ao céu como Ícaro um dia.
Dois homens cinzentos e sem asas para alcançar o paraíso e eu mais cinzenta ainda naquele subterrâneo de piso nobre à procura de não sei o quê que aquela noite falsa do café roubava ao dia perfeito fora dele.
Hesito a sentar-me, hesito a manter-me de pé, suspendo-me curiosa com os homens e mais quatro mulheres que comigo descubro absorvidas e escondidas na sala e mais inertes que as sombras que ali se emparedavam.
Sem jornal, comprimidos ou pequeno-almoço, nada tinham consigo e por si, só despidas de intenções e penduradas na luz ténue da aurora que sobrevivia na tumba e nelas - como em mim à procura de não sei bem o quê.
Enquanto neles o rosto lhes denunciava objecto e aventura, já nelas desfalecia a esperança acordada e a vitalidade maquilhada da sexo que o domingo lhes propunha a gozar.
Dois homens de vida expressa na presença e cinco mulheres que bastávamos para uma, todas iguais e perdidas nas horas apalaçadas do café que se impunham à humildade decadente e soturna das solteiras matutinas que nos fazíamos.
Naquele domingo o género feminino pareceu-me unido e igualitário de forma vaga pelo eco do corpo enxovalhado pela sonolência e também suspeito, não lhe conhecesse já as solicitudes precárias e pouco sociais no anonimato artificial para lá das vidraças.
No único café aberto da rua, dois homens velavam a existência conciliada e as mulheres deambulava letárgicas nos vãos do granito e nas sombras subterrâneas da sua existência inócua.