segunda-feira, janeiro 31, 2005

O fio condutor da (eco)vida


A sustentabilidade da Terra - único porto de abrigo da Civilização conhecido - não é obrigação do Homem e até agora só lhe foi pedido que, com bom-senso, viabilize os seus recursos e a sua habitabilidade.
A força do seu corpo, testada cruelmente de mil e uma maneiras, e a estrutura complexa de ecossistemas vários que enreda, cada vez mais depende só da boa ou má-fé humana.
Os mais tímidos fazem tricôt com a sua vulnerabilidade e os mais afoitos desfazem-na numa vil centrifugação maquiavélica.
Quando forçado o fio condutor da (eco)vida, a rebeldia e revolta do seu magma ardente assume expressões catastróficas que ainda estão presentes na nossa memória.

domingo, janeiro 30, 2005

Sexo-Expresso (IV)


"Camponeses em repouso" - Pablo Picasso, 1919

sexta-feira, janeiro 28, 2005

Tendência de voto para Fev/2005

quinta-feira, janeiro 27, 2005

Sexo-Expresso (III)


H.R. Giger - "Death-Bearing Machine III" (1977)

quarta-feira, janeiro 26, 2005

Sexo-Expresso (II)

Não te amo, quero-te: o amar vem d'alma.
E eu n'alma - tenho a calam,
A calma - do jazigo.
Ai!, não te amo não.


Não te amo, quero-te: o amor é vida,
E a vida - nem sentida
A trago eu já comigo.
Ai!, não te amo, não!

Ai!, não te amo, não; e só te quero
De um querer bruto e fero
Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.
Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela,

Quem ama a aziaga estrela
Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?

E quero-te, e não temo, que é forçado,
De mau feitio azado
Este indigno furor.
Mas oh!, não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto
Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror...
Mas amar!... não te amo, não.

"Não te amo" - Almeida Garrett, 1853

terça-feira, janeiro 25, 2005

A trrrrrrrrrrrrrrapalhada de Comédia

Caodagua[1].jpg

Enterrado no sofá a ver o Sporting e as panteras do Boavista e um barulho peculiar começou-se a ouvir. Nada que se pudesse reproduzir por palavras, só sons indefinidos que ora vinham, ora iam, e convergiam sempre para a mesma consoante:

- RRRRRRRRRR…………. RRRRRRRRR………

Levantei-me e fui à janela mas não era da rua. Passavam esporadicamente alguns carros e vozes também não eram que não topei ninguém. Em casa só barulhos da televisão, mas diferentes, berros meio-animais e um coro de apitos e 'bocarras' a buzinar porque o Rochemback em dueto com o Douala marcou um golaço aos 15'.

- 'GANDA BUJARDA'!
- RRRRRRRRRR………… RRRRRRRRR………

Os sons permaneciam e ao verificar a ausência de Comédia, como raras vezes faz, sismei que podia ter a haver com a senhora.
Fixei um jogador de bofes de fora no ecrã, a seguir a bola aos seus pés rebolando no relvado e outras perninhas tortas a zarparem com ela fanada ao 10. A defesa leonina está cheia de gana.


- Calma, calma que ainda há tempo! Ainda cá moram leões!

Levantei-me com fome e aproveitei para sondar Comédia.
Corredor? Nada. Cozinha? Nada. Talvez no quarto...
Lá estava ela enrolada e de focinho enfiado na barriga e entre as patas traseiras enrodilhadas com o rabo espanador.

- Comédia?
- RRRRRRRRRRRRR..........
- Então estás aqui!
- Vês-me noutrrrrrrrrrrrro lado Linfócittos?
- Vou fazer uma pipocada que não há pevides... Queres vir? -
silêncio
- Okay! - percebi a mensagem.

Petisco para dentro do micro-ondas, dois minutinhos e volto ao Estádio do Dragão.
Ouvi-as crepitar e danarem-se aos pulos na tigela. Saquei-as e fui embalado para o sofá que os axadrezados já ganiam.
Enquanto atravessava o corredor o RRRRRRRRRR voltou novamente.
Na sala o Sporting marcou o segundo golo aos 44'.

- AH LEÕES! - e fiquei indeciso entre felicitar Hugo Viana ou espreitar Comédia. Mole como sou, fui contrariado até ao quarto.
- RRRRRRRRRRRRR..........
- 2-0, Comédia!!!!!!!!!!!!!!!!!! O que tens, estás doente?
- Doente? Orrrrrrrrrrrrrrrrra essa!
- Estás com uma conversa estranha...
- Estrrrrrrrrrranha Linfócittos?
- Comédia??????????
- RRRRRRRRRRRRR........... RRRRRRRRRRRRRRR….
- Não estás bem.Vamos já ao médico!!!!! - vou mas é telefonar à Dona Antonieta, 'bolas'.

Assim que agarrei no telefone a baliza do Boavista abriu as pernas à segunda recarga de Hugo Viana e fizémos o 3-0.

- Gooooooooollllllllllllllllllllllooooooooooooooooo! - a minha mãe do outro lado deve ter estremecido porque do bocal ouvi um berro ainda maior com o cagaço que levou de rompante.
- Ai! Valha-me Deus!
- 3-0!!!!!!! O dragão mostra as garras!!!!!!!
- Linfócittos, valha-me Nossa Senhora!!!!!!

Pedi-lhe uns segundos para me acalmar e a seguir cravei-lhe o médico para a Comédia.

- Estou? Mãe? A Comédia está doente, podes vir vê-la?
- Eu não percebo de cães?!
- Então um médico qualquer!

É que eu não uso, ou melhor, o meu é uma, é ela própria a Dona Antonieta. Só recorro ao médico se a madame não der conta do recado, o que até hoje só foi preciso uma vez.
Desde puto que é assim: dói-me qualquer coisa, queixo-me de beiças e logo ela se apronta a arranjar-me o alívio certo.
'Janto' no sofá e ainda faz-me o frete de ligar para a Seguradora para me dar impróprio ao trabalho.
Como calculam não há melhor para a bolsa e para um ego débil.

- Tens é que ir ao veterinário!

Logo hoje! Bolas! Logo hoje com o Sporting e o Boavista na disputa pelo reposicionamento na Superliga!
O Peseiro com a corda pelo pescoço, o meu clube pela hora da morte e a claque canhota sem este senhor que Comédia doente monopolizou.

- Okay! Listas Amarelas já! Vamo-nos safar Comédia!

Pimba! Valente! O rei da selva ousou mais uma goleada com Rochemback a fazer um canto ao segundo poste para Custódio e aqui o adepto às aranhas com as Páginas Amarelas e a ficar ainda mais amarelo que as ditas por não acompanhar a partida.

- Logo hoje Comédia!- uma hora de jogo e perdi os dois últimos lances de humilhação das panteras...

Voltei a telefonar à madame porque afinal era sábado e não consegui encontrar nada.
Na sua ciência e gestão doméstica escusado será dizer que a eficácia não tardou e localizou logo o Hospital Veterinário de São Bento e ainda, precavida, avisou-me para telefonar antes não fosse desnecessária tanta aflição e correria.
Deu-me o número e um raspanete porque «veterinário é veterinário, médico é médico e que raio é que um tinha a haver com o outro»?


- Não, não sei o que é minha senhora. Bem... parece um motor mal oleado que se queixa em surdina... sabe como é?.
- (...)
Não! Não! Merda! Desculpe-me...- um cruzamento, o axadrezado do Flores fez-se cacto dos desertos para a defesa leonina e eu abrutalhado para a senhora do outro lado da linha.
- (...)
- Como? Não tem nada à vista. Está muito calma e só quer aninhar-se na cesta. Se lhe toco abre estupidamente os olhos e contorce-se toda - fez-me lembrar quando me doía a barriga em pequeno.
GOLO!!!!!!!!!!!!!!!!!!! - mais um 'esticão' na linha com o 5-1 de Liedson - Logo hoje minha senhora!
- (...)
- Muito bem, vou já para aí!
Comédia!!!!!!!!!!!!

Aprontei-me a enrolá-la numa manta e saí à cata de um táxi.
Cheguei ao Hospital Veterinário esbaforido e 'lixado' com o 'estupor' do taxista que por vingança me deixou no fim da rua, precisamente o lado oposto do hospital, que a principiava.
O 'gajo' não queria levar Comédia mas eu inspirado pela grande exibição leonina inchei-me todo e ele 'borrou-se' tanto que não teve outro remédio senão encolher-se entre o volante e a santinha do espelho.
O espertalhaço do malandro aproveitou-se da minha ignorância e deixou-me quase no 'cu de judas'. Tive que calcorrear o quarteirão inteiro que ainda por cima era inclinado como o raio.
O meu clube num momento de glória e eu estúpido a subir aquela rampa toda.
Cheguei a arfar e de língua de fora que nem cão mas logo fiquei em forma, seduzido com o 'borrachinho' estagiário que me recebeu.

Meti conversa com a feracidade sportinguista mas não se agradou e logo me encaminhou para a sala de espera: eu 'mirrado' pelo engate derrotado que não convenceu o 'borrachinho' a estagiar lá em casa em serviço domiciliário a Comédia, e esta naquele requiem meloso.
Pouco depois chamou-nos a uma sala interior onde nos aguardava um veterinário diante de uma marquesa velha e a quem tentei traduzir os sintomas, ou melhor dizendo, os R's.
Mandou afastar-me para oscultar Comédia e enfiou-lhe um termómetro na orelha e a seguir no 'cu'.
Enquanto na orelha Comédia gemeu 3 R's, já no 'cu' esbugalhou os olhos e produziu uns longos e vibrantes R's que até me doeram a mim.
Tive o impulso de a afagar mas não cheguei a fazê-lo porque o veterinário logo me levantou a mão e disse:

- Calma amigo. Não faça nada.

Virou-a e apalpou várias vezes. Em qualquer sítio o corpo parecia entregue à moleza e áquela estranha opereta.

- RRRRRRRRRRRRRRR..... RRRRRRRRRRRRRRRRRR........
- O amigo já teve cães?

Naquele momento só imaginei um canino afiado a voar-lhe para o braço bem a jeito e Comédia erguer-se da marquesa em protesto de que não era cão mas cadela.

- Sabe que as bichas têm cio duas vezes por ano? - ai que o tipo ainda leva uma dentada - E como me parece um cão jovem deve estar na hora amigo - ai que está mesmo a pedi-las...

Pela primeira vez a retórica toda de Comédia silenciou-se, incluindo aqueles sons esquisitos.

- O Sr. não precisa de se preocupar. Dura apenas 1 semana e o único inconveniente é poder emprenhar, de resto pode ir para casa descansado.
- RRRRRRRRRRRRRRR .....RRRRRRRRRRRRRRRRRR ........

Comédia olhou ternurenta para mim como que a pedir desculpa e soltou os R's mais fininhos e lambidos que tinha ouvido.
Lembrou-me que as mulheres também ronronam nessa altura. Pelo menos quando era com a Joana as noites era mais loucas.
Rebolava na cama como nunca visto e chegava mesmo a insinuar uma dança de ventre, reboliça se fazia aos meus braços.
Demonstrava uma sensibilidade fora do normal e era como se derretesse por dentro, tão frágil ficava ao toque. A mim excitava-me ainda mais, 'caraças'.
Agradeci ao médico, saí e despedi-me do 'borracho' armado aos cucos:


- Afinal está só com o cio, nada de grave.
São aquelas alturas, sabe como é não sabe? – fiz-lhe olhinhos malandros mas desisti com os ofendidos olhões com que respondeu.
Então até à próxima simpática! –
fez-me olhos, mãos, braços, tudo o mais e virou-me costas empertigada.

Logo hoje Comédia!- perdi a vitória histórica 34 anos depois, mas pelo menos a 'fofa' estava bem... sou mesmo um molezas..




segunda-feira, janeiro 24, 2005

A intenção do blogger constitui-se por si só no escrito vivo que declara

Blogging ou posting é o equivalente a ciber-opinion, ao diário-vivo cibernauta, ao paraíso cronista fora do alcance da censura dos tradicionais meios de comunicação,etc; um molde de expressão individual ou colectiva que implica à priori certo narcisismo (mesmo que tímido ou subtil) e alguma pretensão para dar corpo a motivos de protesto, simples desabafos, ou cingir-se à mera partilha de conhecimento e reflexões.
Talvez pela sua idade embrionária em Portugal os blogs são na generalidadede de pertinência filosófica ou provocadores (ataques directos a algo ou alguém e tiros no escuro, dado o anonimato ser efectivo e permitir a má-língua gratuita e abstracta).
Isto é a simplificação do acto do blogger. A sua intenção constitui-se por si só no escrito vivo que se declara.
E o blogger? A que se propõe, pessoal e verdadeiramente (ou não!) esse emissor que nunca se sabe se de personagem ficcionada ou real se trata.
No registo dos efeitos nefastos do próximo mandato de George W. Bush e do começo da nova era da potência ianque, que não havia como comentar dada a sua superficialidade (mesmo embelezada pela analogia da esfinge libertária), corresponde-me o Sr.(s) Vencido(s) da Vida com tal estado de alma, que me impressionou a (não)intenção que pretendi.
Surpreendida pela calada da Blogosfera, indico-lhe para terapia o meu afectuoso e crítico bloguista Nproblemas.blogspot.com que considero ser digno exemplo do «viver espiritual e intelectual» e que há cerca de 1 ano alcançou o Além grego, essa ilha de bem-aventurados rodeados por mar e com muito sol, muitoooooooooo soooooooooool!!!!!
Assumidamente de índole romana o Nproblemas.blogspot.com viu-se grego e virou as costas ao mítico universo da vida após a morte (espertalhaço!) para libertar a sua «alma entediada» para a verdadeira objectivação do seu ser: AS IDEIAS!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Na crença grega encontrou o distanciamento ao «bom-senso "holocáustico"» e elevou-se à existencialidade onírica e êxtase da sua imortalidade espiritual.
Aviso-o de antemão, Sr.(s) Vencido(s) da Vida, que este bloguista não fala de cor e salteado, que até a interpretação da minha sugerida metamorfose não lhe veio à baila em vão.
Ponha-se a pau que este grego Nproblemas.blogspot.com sabe-a toda e muito perspicaz associou a ‘minha’ alma com a ‘dele’, a do imaginário da Psicologia que muito oportunamente é representada por uma figura feminina de longas vestes e asas.
Está confuso ou isto parece-lhe familiar?
Até mais!!!!

domingo, janeiro 23, 2005

Sexo-Expresso ou O Sexo na expressão de outras artes (I)

Sexo é sexo, e é pedra filosofal para todos nós, primatas dominadores, não nos comermos vivos - 'comermos' na cultura canibalista subvivente e não na literacia das necessidades lascivas, como a exibicionista e jocosa expressão "de comer" alguém.
E o sexo, meus amigos, quando desbragado é puro exercício de (as)sexualidade mundana e primitiva onde se diluem as hierarquias porque é pura emergência orgástica.
No orgasmo não há Homem ou Mulher, somente corpos como instrumentos de sexo, pese embora o facto da sua expressão masculina parecer a dominante por ser a 'armada'.
Vem isto a propósito do desabafo publicado do tão em voga opinion-maker Pedro Mexia, de que «a Matemática, tal como o sexo, é coisa que o enfastia causticamente... que o seu raciocínio, pouco inteligente (é ele que o afirma), é mais dado aos delírios e utopias das artes várias».
Declara com peito inchado de extensas referências literárias que 'coitadinho', que «o sexo nunca lhe deu a satisfação, glória e reconhecimento como o fizeram as letras» e quase sugere subtilmente alguma impotência (permitam-me o afoito) ao longo da palavreada sobre Portugal e o seu problema com a Matemática e o Sexo, que nunca se chega a perceber qual é.
A conclusão a que eu chego desta última prosa (leio-as sempre!), é nenhuma e alguma, ou seja, não percebo se Pedro Mexia sabe o que é sexo e o que na escrita erudita pode haver e não se dar com ele (até porque quem não o pratica...).
Se sugere que os portugueses tem tantos problemas com a Matemática como com o sexo, quando é sabido que o que dá dores de cabeça nunca é o sexo mas o seu universo afectivo e consciente - o Amor - que para consumar o sexo bastamo-nos primitivos.
Pedro Mexia consegue ser mais infeliz do que eu, que achava que a minha sexualidade me estimava e só pecava pela simples razão de nunca poder vir a ter a oportunidade de sentir a supremacia sexual do poder masculino 'armado'.
A mim resta-me a imaginação erótica e a criatividade erógena, já que um falo nunca arranjarei para minha satisfação, a Pedro Mexia (se lhe importar) talvez no seu mundo das letras se cruze com Bocage, Henry Miller, Simone de Beavour, Natália Correia, etc, e descubra que o sexo está para o corpo como o afecto para o intelecto, e que os dois em combustão são de pedir por mais.

sábado, janeiro 22, 2005

22 Minutos de um futuro holocáustico(*)

O Mundo parou exactamente 22 minutos para acompanhar o juramento de George W. Bush, ou pelo menos parte dele:
- A metade da população que o elegeu há pouco tempo e que o vê como o líder e o "Último Guerreiro", como se das antigas guerras independistas se tratasse;
- Os outros 50%, os kerryanos, toldados com certeza por uma apneia – s
ó que acordados e bem conscientes – pelos próximos quatro anos que se adivinham mandatários de um Iraque multiplicado por cem e uma economia brutalizada e que esqueçe todos;
- A Europa rezando à Nossa Senhora dos Aflitos para que o texano caísse da cavalgadura e folgasse um pouco as suas alergias arábicas, não fosse assim a emergente porta turca consolidar não apenas a convivência islâmica e contrariada dos europeus, mas também arriscar-se a algum Cavalo de Tróia dos secularmente não alinhados com Israel;
- A concorrência chinesa imaginando o jeito que não daria já o imperial telescópio tibetano de 100 metros de diâmetro (um futuro que chega ao âmago do cosmo inimaginável) para
observar microscopicamente os suspiros intercalares do delírio do presidente em frases aterradoras que repetia aos milhares de americanos mais papistas que o Papa e que, como uma perfeita Meca, engoliram os arredores do Parque Malcom X, em Washington:
«A liberdade do mundo... (suspirava) A liberdade das nações do mundo... (suspirava) A liberdade da América... (suspirava) A liberdade americana pelo mundo inteiro... (suspirava)».
Lá em casa, entre o calorífico e os cães serenos da sua paz segura, quedei-me perturbada esses mesmos 22 minutos pelo futuro holocáustico(*) que se antevinha.
40 Mil (nem me atrevo a registar a unidade)... obscenos e ultrajantes para pagar um púlpito imperialista e déspota de um estadista ainda mais déspota e com visionismos expansionistas a todo o custo humano.
Em tempos idos (1885/86) o símbolo da Liberdade projectou-se numa figura feminina gigantesca, erguendo uma tocha incandescente de esperança dirigida aos céus e aos mares e que se eleva hoje do porto de Nova Iorque,
Agora, F. A. Bartholdi (escultor francês) talvez não a simbolizasse da mesma maneira.
Talvez lhe poria na mão um míssil ultra-sónico e na figura do corpo a sugestão de um esquadrão da morte que assentasse numa aberrante base de massa humana sacrificada.

(*) - Sei que "holocáustico" é uma derivação incorrecta e inexistente do substantivo, mas é o efeito que pretendo. O correcto seria "do holocausto" mas pretendo-o mais cáustico.

terça-feira, janeiro 18, 2005

A nova Trindade do menino Martunis, Tsunami e a solidariedade futebolística

Longe de Jerusalém mas não menos acossado por tragédias, oceanáticas em vez do gume das espadas romanas, o menino indonésio conquista a fraternidade e vê iluminada a sua esperança num cometa mediático e televisivo do Ocidente.
Desprovidos de títulos nobiliários, os senhores não se rogaram a menos cristandade que os antigos reis magos e juraram homenagear com dignos tributos a criança sobrevida do sacrifício e perseguição natural, símbolo da força e da resistência humana perante a calamidade alguma vez imaginável.
Martunis chamou a si vários titulares para essa intentona - Gilberto Madaíl, Luiz Filipe Scolari, etc - e quantos mais serão não se sabe ao certo, sabe-se sim, que lá por não se tratarem de causas messíacas ou evangélicas, é inegável que este menino envolvido pelas vestes da FPF aos olhos do nosso país, inspirou e iluminou as gentes de cá, em especial as da bola e chuteiras.
É inegável que desta criança se gerou uma verdadeira corrente espiritual e de dádiva no conforto seguro dos ocidentais e que a partir do mesmo começa um novo período espiritual no entendimento histórico destes povos.

segunda-feira, janeiro 17, 2005

Amem-se em casa hoje para que amanhã a impessoalidade cinzenta de um hotel não vos sirva fria a libertinagem erótica e a individualidade libidinosa

E por que querias de querer a minha alma na tua cama?
Disse por palavras líquidas, deleitosas, ásperas, obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo, prazer ou lascívia
nem omiti que a alma está além,
buscando aquele outro.
E te repito: porque haverias de querer a minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo.
Obriga-me.

"Do Desejo" – 1992 ou bocados de Hilda Hilst

domingo, janeiro 16, 2005

Na solidariedade enquantos uns perdem tudo outros ganham muito mais e Gilberto Madaíl não foi excepção


A solidariedade, enquanto movimento social que cativa a atenção e impele o cidadão ao envolvimento de uma causa, tornou-se neste último século um potencial universo para actividades empresariais e de negócios que têm na generosidade e humanismo do cidadão sedutoras variáveis geradoras de mais-valias.
O fenómeno não surge por acaso e entre as suas razões destaca-se a dependência económica destas estruturas produtivas por parte do anónimo, organização caritária e da própria vítima no momento trágico e desconcertante de urgência.
Nestas alturas os vários segmentos de mercado descobrem autênticas bolsas de oxigénio nos tecidos económicos exaustos pela competição cerrada: os bancos rendem com as omissas taxas nas transferências bancárias, os produtores escoam mais e equilibram receitas, os revendedores libertam os stocks e até na área de serviços estes vêm-se requisitados incessantemente.
Na área em particular da Publicidade os profissionais e agências de comunicação vêem nos últimos anos privilegiada a sua arte comunicacional para acções de natureza ética e de cidadania, além das exponencialmente comerciais que visam o mesmo sujeito comum, mas no seu carácter consumista.

Projectos e publicitários portugueses chegam aos salões internacionais de renome e um exército de marketeers - instrumentos não menos importantes - buscam hoje notoriedade ao serviço das humanidades e chegam a secundarizar o valorizado currículo-tradicional que assenta no Cliente/Produto de carisma comercial.
Nesta ordem de causa-efeito Gilberto Madaíl não foi excepção - apesar de curioso o argumento e o motivo alegado - e ao que parece o Presidente da junta futebolística perante o choque de imagens do socorro às vítimas do tsunami não resistiu ao impulso paternal de ajudar um dos seus.
O federalista do futebol lusitano emocionou-se na TV com uma criança indonésia e sobrevivente à enxurrada que levou tudo e todos - mais e menos jovens -, reparando ainda que no fundo do ecrã e junto ao olhar perdido e assustado só lhe restara o corpo frágil velado pela insígnia da FPF (Federação Portuguesa de Futebol).
Gilberto Madaíl não esteve por menos e anunciou de imediato o seu apoio a Martunis, disponibilizando ao menino de 7 anos um kit completo da Selecção Nacional e a promessa de mais ajuda financeira.
Terá sido a abençoada insígnia o motivo de força maior para a dádiva - todos conhecemos o clubismo romântico desta modalidade - ou trata-se apenas de defeito profissional e o provincianismo português mais uma vez conseguiu desvirtuar um discurso de humanidades para aprimorar uma dissertação de interesses e valores das organizações de futebol nas necessidades no mundo?
Na verdade, pouco interessa, porque sabemos que nestas lidas da solidariedade enquanto uns perdem tudo, outros ganham muito mais com o pouco que oferecem, e neste caso ganhou a FPF o mérito e a nobreza na participação na grande onda generosa em que o mundo mergulhou.
É a coabitação perfeita da sociedade de consumo, seus interesses e da imponderabilidade da espécie humana.

sábado, janeiro 15, 2005

Uma grande laranjada para a nossa palatite

A ambiguidade do significado de "azar" não se revela só nas suas geografias culturais ou religiosas, também labora em território de classes (o que é que não o faz????).
Só assim se poderá explicar que na esfera popular "azar" seja indubitavelmente o infortúnio e a desgraça, mas em circunstâncias povoadas por outras estirpes não só o seu vocabulário se transforma como o próprio significado que lhe pertence.
- A definição de "Jogo de azar" para o pelintra remete-nos para uma acção concertada em que a perda ou o ganho dependem mais da sorte esporádica que do cálculo inteligente, por exemplo: o jogo da roleta, loto, loterias, bingo, etc;
- Para os 'outros' este já passa a chamar-se "Jogo de sorte" e propõe um hipotético universo de fortuna e prosperidade, como por exemplo os casinos.
Reconheço que os castelhanos neste campo foram bem mais espertos e flexíveis.
Para nuestros hermanos "azar" enuncia o simples e linear "acaso", desenvolva-se este para acontecimentos mais ou menos infelizes, enquanto no português o principal significado desse termo é a falta de sorte, ou seja o repetido "azar".
Ora, o assunto-causa desta exploração temática ajusta-se mais à feição espanhola do significativo do que à nossa, a lusitana: à última da hora é sabido que vem sempre dar-se o "acaso" da "sorte" especialista transformar o azedo "azar" numa grande laranjada para a nossa palatite.

quinta-feira, janeiro 13, 2005

A tribo santanista não conhece o decoro?

É-me verdadeiramente intrigante a (in)discrição corporativa e o (des)governo ministerial desta legislatura ‘emprateleirada’.
Não é só impressão de pormenor mas verdade indesmentível que esta social-democracia provisória - até Fevereiro - anda num estado de despeito e arrogância próprios de juventude rebelde ou de maioridade forçada.
Esta pândega demissionária e confinada a acções meramente administrativas, não será porventura tão inofensiva e neutra ao que resta da saúde e credibilidade democráticas das instituições do Estado quanto seria de desejar, mesmo estando castrada no seu mandato e projecto político.
Até o aluno mais resistente quando ao canto da sala é prostrado e vexado com a vergonha de umas valentes orelhas de burro, cala-se e poupa a sua rebeldia para momentos de maior liberdade.
Se inquirido, contém-se (mesmo que fingidor) à continuidade da humilhação e não dirá com certeza que «não é interessante ou lhe encontra motivos que o justifiquem» ou «que não está disponível para o que tem assistido nos últimos 3 dias», não sabendo nós ainda se Morais Sarmento se refere ao desmascaramento da Comunicação Social, se à incredulidade inesperada do seu protectorado (refira-se Santana Lopes).
Não se entende como um governo de poder e decisão política descontinuada e obrigado a apenas a ‘picar-o-ponto’, persiste em fazer-se representar por equívocos, falta de concordância entre titulares e quando ultrapassado pelos momentos, senão por si próprio, fazer pior a emenda que o soneto no ‘desenrascanço’ que começou claramente pela escolha de sucessor de Durão Barroso.
A mim, um atestado de incompetência deixar-me-ia a ‘piar fininho’, neutra e publicamente tão discreta quanto transparente eu conseguisse, o que não se verifica com a tribo santanista.
Desautorizada a moratória dos vários súbditos e do Primeiro-Ministro, revelam-se eles todos verdadeiras crianças amuadas e birrentas ao contrário de homens de ombridade e seriedade como nos quis convencer o mentor da chumbada Central de Comunicação:
«Num momento em que é mais fácil desistir do que resistir, parar do que combater, não desisto de acreditar que existe outra forma de fazer política» - talvez a da comunicação controlada?
Azar!

domingo, janeiro 09, 2005

Elvis Presley

Faz 27 anos que morreu um dos ícones mais célebres da sociedade americana e do seu 'sonho'.
A evocação da sua memória peca todos os anos pela expressão do voyarismo promíscuo e falsidade romântica do seu valor sócio-cultural.
Com lágrimas fartas à beira da campa do mui afamado e querido uns estarão realmente tolhidos pela nostalgia do rebelde e nacionalista, mas outros não passarão da representação americana do oportunismo visionário que sempre os distinguiu na Civilização.
Lembro-me de um filme onde um típico e estereotipado gerente de casino em Las Vegas dizia, muito perturbado, a propósito da efeméride:
«Começámos por ser os criadores mais geniais do mundo e hoje dispersamo-nos na especialidade da imitação kitch e ultrapassada»

sábado, janeiro 08, 2005

A subjectividade dos números

Anseia-se o novo ano no que à partida ele representa de potencial ao nosso universo, mesmo desconfiando ficar sempre pelos calcanhares do que auguramos para verdadeira mudança.
Na herança do velho anuário pessoal lutamos por descobrir novos rumos ou consolidar, no mínimo, os antigos.
Todos os janeiros é assim - duvido que alguém se descarte desta empreitada - gastamo-nos numa operação mental de desejadas probabilidades concertadas em fórmulas circunstanciais de números e barómetros que ultrapassam a nossa vontade e acção.

E porque a sabedoria morreu de velha ainda avisa-nos a cautela que não há como prever as armadilhas da imprevisibilidade e as contrariedades do delírio ou da utopia.
Com um pé ainda na magia efémera do subsídio de natal e entre papel e tinta exploram-se teoremas infindáveis das variáveis pessoais ambicionadas e multiplicam-se pelo mínguo aumento que nunca parece justo para a seguir dividirem-se pelos próximos doze meses, senão os quatorze salários.
Cruzam-se projectos com o desenrascanço e os alíbis logísticos do costume - que nunca passam da hipoteca e o custo consumista da família - e esboça-se um mapa pessoal para calcorrear que nem peregrinos porque sujeito à violência da triagem orçamental, ou o mesmo será dizer dos impessoais números e cifras dos outros.
Constato que a transição do ano quase sempre não passa da simples mudança da última casa do seu algorítomo e raras vezes faz-se real e profícua no matemática pessoal pré-estudada.
Assim, e com o outro pé nos princípios de Janeiro, descobrimos passar grande parte dos anos a polir as expectativas (porque gasta-nos mesmo o alento e a paixão, caramba!) numa conta de valores absurda e exercícios mais que irreais.
Absurda porque se expressa em unidades filosóficas e não numéricas e irreais porque o que precisamos de mudar raras vezes se pode confinar em contas viáveis e conjunturas contadas desses tão curtos 365 dias formais.
Como bichos de hábitos que somos, convencemo-nos à porta de todos os anos que é importante diferenciar, signifique isso simplesmente mudar por mudar-lhe somente a maquiage ou personificar uma espécie de milagre da multiplicação, tudo para uma nova radiografia pessoal de metas que irremediavelmente se descobre sempre ficar aquém dos muitos objectivos definidos.
E Porquê? Para mim, por causa dos números, claro!
Quando tomo o peso do instituído sinto-me estupidamente light e nas franjas do que projectei para a continuidade de algo em particular é o inverso, que aí tudo me parece penoso e pesado para o que ainda tenho por estabelecer.
As ideias entusiasmam ao princípio e logo se declaram frustrantes aquando das evidentes décimas que só alcançam e dos milhares de insucessos que lhe são subtraídos em esforço e suor.
No fundo, no fundo, não são projectos viáveis à luz da sociedade funcionalista e produtora, que só conhece passivos e défices, e por isso considera-as temáticas idealistas, românticas ou globalizantes de outras variáveis que não as económicas e cotadas, verdadeiros candidatos a buracos orçamentais.
Hoje e agora em 2005, na consolidação lenta do que se aproxima dos meus sonhos e no terminus do que veio do passado e entendo ser história a encerrar, entrego-me fatidicamente ao planeamento dos próximos meses.
Estou sentada na cadeira do ano passado e sobre a mesa ainda mais velha, por isso teimosa à utopia da minha juventude, lanço um jeitoso pacote de projectos pessoais que me seduzem e a continuidade das aventuras que não realizei.
A mesa verga e o caruncho range ao peso que estes propósitos assumem e eu alteada vou torçendo o nariz no desespero pelo desenho impossível de conceber da ficção inflacionista, do delírio económico que não há como congelar ou dos budgets irracionais que não se ajustam a nenhum modelo credor uniformizado.
Enquanto a minha persistência canta as janeiras em jeito doce e enfeitiçado à calculadora, e esta teima em ficar pelas centésimas partes dos meus desejos, o ano 2005 mostra-se desconcertante e apático na futurologia pretendida.
Os números e as equações já não me parecem mais os mesmos: a hipoteca da casa não me acompanha na reforma; o prémio dos seguros não me cobra o aumento que só o ordenado não teve e até a pesada factura da saúde não me atazana a lembrança da dedução rala nos impostos que sempre dá para comprar uns livritos.

O ordenado do patrão que multiplica o meu por 10x não me parece remediar as dívidas; o salário do Primeiro-Ministro não me arregala o coração e até o Totoloto acumulando o Jackpot já não representa um horizonte infinito e o cenário impossível de medir.
Descubro ser este ano o único inovador nos meus valores e na representatividade real das suas cifras: um milhar já não é um milhar e os milhões também já não são os milhares a dobrar.
Tudo por causa dos aberrantes números das vítimas do Tsunami que me destruíram a eternidade e a imensidão subjectiva do meu universo numérico: 98.081 mortos na Indonésia; 1.137 desaparecidos na África do Sul; 47.000 mortos no Sri Lanka; 14.962 mortos na Índa; 40 toneladas de medicamentos e consumíveis; 425.000€ de donativos; 118.000€ convertidos por SMS's; 1.500.000.000€ recolhidos pelas Nações Unidas; etc.
Deixei a minha aritmética futurista a repousar na conjuntura velha lá de casa, levei-me melancólica à calçada fria e aconchegada pelas folhas perenes até ao café com vista para o Cesário Verde, que senti também ferreamente gelado pelos chocantes números com que o noviço 2005 se apresentou.
Decidi que amanhã vou ao BPI depositar a módica e antiga quantia de 50€ para a reconstrução daquelas cidadezinhas e talvez assim possa deixar mesmo o 2004 e entrar com a caneta na mão direita no 2005, mesmo sabendo que os números já não são o que eram...

quinta-feira, janeiro 06, 2005

Como eu gosto de comboios...


«No dia da inauguração da Linha de Alcântara, as doze estações e três apeadeiros que dispunha, encontravam-se devidamente embandeiradas e as povoações onde o comboio passava saíram à rua para o festejar. O acontecimento rodeou-se de grande pompa. O comboio inaugural transportando o ministro das obras públicas, chegou a Sintra ao meio-dia, entre ruidosos e entusiásticos vivas ao caminho de ferro e ao progresso da nação. A afluência foi enorme e duas orquestras tocaram no recinto da estação. Durante o dia mais de seis comboios partiram de Alcântara repletos de passageiros, calculando-se que cerca de mil pessoas quiseram apreciar as delícias do caminho de ferro no dia de inauguração».
(2 de Abril de 1887)

terça-feira, janeiro 04, 2005

Ai que se foi o comboio do Rossio...

Eu que preciso da cidade como do ar que respiro porque o mistério e as evidências humanas das ruas me apaziguam a solidão e o desasossego, suspeito que os sucessores da urbe antiga e mentores do utilitarismo anti-residencial da capital não perdem por esperar.
Chegam frescos e ávidos de modernidade e com a ambição técnicista em estado alérgico ao mofo do ferro forjado que outrora suspirava por azáleas e sardinheiras, quando não era nos lençóis branqueados da intimidade caseira que ao pendurão pesado não conseguia a curiosidade manter-se alheia à familiariedade costumeira senão promíscua às suas intrigas tecidas.
Hostilizam os vãos sombrios de formalidade e o aburguesamento citadino celebrado em azulejos policromáticos.
Projectam a salubridade póstuma da cosmópolis num emaranhado de vias e ciclo-vias, viadutos e ciclo-viadutos e todos os redutos das suas concepções contemporâneas que julgam isentos do borralho e da bodeguice popular.
À história feita na pedra mascarrada e briosa pelas várias convulsões sismícas arrancam-na e esfarelam-na para entulho indigno e toma o seu lugar a solidez de uma coreografia vítrica e metálica da solvabilidade eficaz e do imediatismo sensasorial.
A arquitectura do Marquês de Pombal que antes subverteu o provincianismo de Lisboa, sem no entanto esquecer-lhe o sentimento, é hoje despojo de guerra afidalgada e destroço da conversão forçada da cidadela num mónaco de aspirações de colarinho branco.
Os herdeiros da cidade europeia não servem o esteticismo dos velhos do Restelo e muito menos o carpir atávico e citadino de outrora.
Servem e idolatram, isso sim, a fibra e o vidro que prima pelo asséptico humano e o comprime em fachadas inócuas de rostos e história.
Eu que me alimento da cidade antiga, porque propícia ao romance, assusto-me com o seu horizonte inclinado ao Tejo que desconfio vir a perder pelas plásticas exfoliantes e me parece por vezes quase escorregar pelas colinas abaixo e ir bem para o fundo do Atlântico.
Não me interpretem mal, que não pretendo muralhar-me na precariedade da sua velhice, não, claro que não.
Lisboa tradicional e preservada na sua génese única que os terramotos não conseguiram abalar é uma diáspora de vivencialidades, um centro convergente e tertúlico e pela sua regionalidade quase telúrica uma grande bolsa boémia no que têm todas as classes de mundano e vadio.
Por isso mesmo não é, nunca foi, e nem pode ser uma cidade fechada. Até bem pelo contrário, é uma cosmopolita aberta e receptiva a todas as vicissitudes culturais, de expressão amadora ou sofisticada, em bom ou má fé.
Além da panóplia social que a ornamenta e que nos permite percepções várias da sua morfologia urbana a cidade configurou-se ideal pelas portas distintas que criou para entrarmos e dela sairmos: a linha do Rossio, a do Cais do Sodré, a de Santa Apolónia e a do Algarve.
4 Linhas férreas que permitem aos locais dela se apartarem e forasteiros nela se imiscuirem, como um coração orgulhoso que se toma e se abandona, se esse for o sentimento, montados na artilharia pesada e austera de um comboio, seja pelo centro, pelo norte ou pelo sul.
Se o desejo fosse perdermo-nos pelo oceano imenso e só respirar o salitre das águas até que a costa acabasse, o comboio do Cais do Sodré levava-nos com a voracidade e trepidão dos sons escangalhados até bastar.
E mesmo antes da viagem começar podíamos ainda criteriar o escalão da ocisosidade e escolher ora a altivez da linha de Cascais, ora a serrana e rural linha do Algarve.

Mar havia sempre, só diferenciava a classe do povo que encarrileirava e atracava de ganas nas carruagens.
Se a brisa marítima e a longitude de horizonte não era o que fazia jus à nossa inquietação, virávamos costas ao sul e o comboio do Rossio ou o de Santa Apolónia conduzia-nos às vistas serranas para o centro suburbano ou para o norte montanhoso.
Os habitantes lisboetas cersidos há muito à simplicidade de um campo e de um mar, onde o rio Tejo assumia a espinha divisória, para lá do rio e para cá dele, viam de repente disponíveis outras cidades pelos carris do comboio.
Já Almeida Garrett dizia: "Nenhuma coisa pode ser nacional, senão for popular", e o comboio é decididamente uma.
Eu que não gosto de scuts ou de vias-rápidas, dessas chegam-me as do entendimento, que anestesio as contrariedades pessoais quando deambulo sobre carris, onde o torpor do andamento no corpo me desperta para a fragilidade espatifada das rotinas e me chia indulgente para a personalidade pesada em que me tornei, sei que há sempre um comboio e um apeadeiro qualquer que me dá a absolvição.