terça-feira, janeiro 04, 2005

Ai que se foi o comboio do Rossio...

Eu que preciso da cidade como do ar que respiro porque o mistério e as evidências humanas das ruas me apaziguam a solidão e o desasossego, suspeito que os sucessores da urbe antiga e mentores do utilitarismo anti-residencial da capital não perdem por esperar.
Chegam frescos e ávidos de modernidade e com a ambição técnicista em estado alérgico ao mofo do ferro forjado que outrora suspirava por azáleas e sardinheiras, quando não era nos lençóis branqueados da intimidade caseira que ao pendurão pesado não conseguia a curiosidade manter-se alheia à familiariedade costumeira senão promíscua às suas intrigas tecidas.
Hostilizam os vãos sombrios de formalidade e o aburguesamento citadino celebrado em azulejos policromáticos.
Projectam a salubridade póstuma da cosmópolis num emaranhado de vias e ciclo-vias, viadutos e ciclo-viadutos e todos os redutos das suas concepções contemporâneas que julgam isentos do borralho e da bodeguice popular.
À história feita na pedra mascarrada e briosa pelas várias convulsões sismícas arrancam-na e esfarelam-na para entulho indigno e toma o seu lugar a solidez de uma coreografia vítrica e metálica da solvabilidade eficaz e do imediatismo sensasorial.
A arquitectura do Marquês de Pombal que antes subverteu o provincianismo de Lisboa, sem no entanto esquecer-lhe o sentimento, é hoje despojo de guerra afidalgada e destroço da conversão forçada da cidadela num mónaco de aspirações de colarinho branco.
Os herdeiros da cidade europeia não servem o esteticismo dos velhos do Restelo e muito menos o carpir atávico e citadino de outrora.
Servem e idolatram, isso sim, a fibra e o vidro que prima pelo asséptico humano e o comprime em fachadas inócuas de rostos e história.
Eu que me alimento da cidade antiga, porque propícia ao romance, assusto-me com o seu horizonte inclinado ao Tejo que desconfio vir a perder pelas plásticas exfoliantes e me parece por vezes quase escorregar pelas colinas abaixo e ir bem para o fundo do Atlântico.
Não me interpretem mal, que não pretendo muralhar-me na precariedade da sua velhice, não, claro que não.
Lisboa tradicional e preservada na sua génese única que os terramotos não conseguiram abalar é uma diáspora de vivencialidades, um centro convergente e tertúlico e pela sua regionalidade quase telúrica uma grande bolsa boémia no que têm todas as classes de mundano e vadio.
Por isso mesmo não é, nunca foi, e nem pode ser uma cidade fechada. Até bem pelo contrário, é uma cosmopolita aberta e receptiva a todas as vicissitudes culturais, de expressão amadora ou sofisticada, em bom ou má fé.
Além da panóplia social que a ornamenta e que nos permite percepções várias da sua morfologia urbana a cidade configurou-se ideal pelas portas distintas que criou para entrarmos e dela sairmos: a linha do Rossio, a do Cais do Sodré, a de Santa Apolónia e a do Algarve.
4 Linhas férreas que permitem aos locais dela se apartarem e forasteiros nela se imiscuirem, como um coração orgulhoso que se toma e se abandona, se esse for o sentimento, montados na artilharia pesada e austera de um comboio, seja pelo centro, pelo norte ou pelo sul.
Se o desejo fosse perdermo-nos pelo oceano imenso e só respirar o salitre das águas até que a costa acabasse, o comboio do Cais do Sodré levava-nos com a voracidade e trepidão dos sons escangalhados até bastar.
E mesmo antes da viagem começar podíamos ainda criteriar o escalão da ocisosidade e escolher ora a altivez da linha de Cascais, ora a serrana e rural linha do Algarve.

Mar havia sempre, só diferenciava a classe do povo que encarrileirava e atracava de ganas nas carruagens.
Se a brisa marítima e a longitude de horizonte não era o que fazia jus à nossa inquietação, virávamos costas ao sul e o comboio do Rossio ou o de Santa Apolónia conduzia-nos às vistas serranas para o centro suburbano ou para o norte montanhoso.
Os habitantes lisboetas cersidos há muito à simplicidade de um campo e de um mar, onde o rio Tejo assumia a espinha divisória, para lá do rio e para cá dele, viam de repente disponíveis outras cidades pelos carris do comboio.
Já Almeida Garrett dizia: "Nenhuma coisa pode ser nacional, senão for popular", e o comboio é decididamente uma.
Eu que não gosto de scuts ou de vias-rápidas, dessas chegam-me as do entendimento, que anestesio as contrariedades pessoais quando deambulo sobre carris, onde o torpor do andamento no corpo me desperta para a fragilidade espatifada das rotinas e me chia indulgente para a personalidade pesada em que me tornei, sei que há sempre um comboio e um apeadeiro qualquer que me dá a absolvição.