O mesmo mundo quadrado do Sr. Malato
Estava eu e um povo num café de povo - entre café de europeia qualidade e rissol de indubitável fritura nacional - e invade-nos o sossego a voz irritante de um tal Sr. Malato, num tal programa "No Coração de Portugal".
No cenário televisivo dominava uma audiência de comportamento uniformizado (que desconfio ter contrato vitalício com tudo o que é visionamento popular de programas) que estimulavam as vistas curtas em direcção a umas figuras masculinas de aparência não menos tipificada (e com uns bigodes que já não se usam) e que reagiam como que amestrados ao comando "chefe" vindo do apresentador, num bailado ao som da fanfarra local, que ora os mandava avançar, ora os mandava recuar aos sofás coloridos e centralizadores do palco.
Era «chefe para aqui», «chefe para ali», e «agora dê lá mais uma voltinha outra vez chefe», e de 10 em 10 minutos os bigodaças experimentavam os passos e o Sr. Malato arreganhava a tacha, ou fechava-a consoante a regionalidade do sapateado.
O apogeu desta dança de salão, ao toque de caixa do "chefe malatano", alcançava-se quando o anfitrião-mor abandonava o seu protagonismo e dava espaço aos "chefinhos" para exortarem a particularidade do «bolo escangalhado e de mau-feitio», «das cavacas com um buraco duvidoso» ou «do sui generes falo das Caldas que toda a gente conhece, não é??????????».
Um espectáculo apatetado que atingia o êxtase no universo feminino.
A encenação não destoava muito do já visto, excepto no sorriso mais escancarado do Sr. Malato que chamava as "donas" para sua performance e com o requinte de uma variável muito súbtil.
Cruzáva-as com o cantor de serviço (sempre de índole pimba-ó-popularucha) que as deixava exaustas com o jogo de malandrices e de sugestão erótica.
Passava assim a deixa ao vocalista e juntamente a tarefa mediática de «dar o ponto sem nó» e «mostrar o que trazia água no bico», tudo para o "chefão" repousar a lombalgia da dentadura.
A meu ver, bem se podia chamar Sr. Maxilato, que aquilo é igualzinho à Máscara no seu equivalente ao cinéfilo americano, Jim Carey.
Que o entertainer tenha que vender o que melhor sabe fazer eu até compreendo, agora não percebo como é que uma quota-parte significativa do país projecta as suas veleidades num cubo brilhante e ruidoso onde o ecrã só tem espaço para uma boca excitada que nos chama "chefe isto" e "dona aquilo" e embala-nos os ouvidos com «os teus olhos acordados na manhã que me acende».
A meu ver, às tantas já me chamuscavam as inocências críticas e a lisura televisiva, porque até para o espectador mais cultural-dissidente o que é demais chateia e o que aborrece de pasmo logo de se mete de lado.
Já na aldeia da minha avó se dizia: «A homilia do padre quando montada na teimosia do jumento faz-se sarna grossa para o nosso convencimento».
Nesse músculo poderoso e instrumento malatano palpita um Portugal provinciano e ingenuamente manietado pelos "chefões" que o transformam em viabilizadas audiências de incultismo para satisfação cardíaca do cubo economicista.
É a brejeirice vestida por Augustos e falando como um miúdo aos mais velhos ou como um velho aos mais miúdos.
Estou quase há uma hora com a minha intelectualidade à bulha com a pedantice assexuada e aculturada do Sr. Malato, que acredito estar no coração de alguns portugueses, não por filialidade mas talvez porque é o único que os convida a dançar dentro daquele quadrado místico das suas aspirações.
E se é assim, então que assim seja: além de pequeninos descobrimos-nos também quadradinhos, brilhantes e provincianos.
Afinal ainda há gente por cá de coração frágil que formatado na quadratura (des)funcionalista da televisão se reduz e à sua terra à beira do Atlântico antes navegado em glória, em bobos de corte e desenham a sua nação num mapa triste de meia dúzia de aldeias e cidadezinhas onde as mulheres só alcançam bailaricos ou filhós à moda antiga e os homens o jogo da malha ou a filarmónica da freguesia.
O Sr. Malato faz do coração português um órgão quadrado e de pulsar folclórico por artérias de fios de ovos.
Agora, estou com os que só lhes resta ser povo pela divina providência da portucalidade malatana, num café feito por um povo encurralado entre pastéis de bacalhau e galões de máquina, e onde só varia a pretensão colonizadora do "chefão" da humildade e ignorância do campesinato urbano que este mundo quadrado teima em não deixar crescer para seu apanágio mercatilista.
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