segunda-feira, dezembro 20, 2004

As pevides e o suspense de Comédia


Comédia tem-se revelado uma interessante companheira lá em casa. Se há coisa que não dispense é um bom policial acompanhado por uma tigela cheia de pevides.
Sim, pevides! Não queremos tremoços, pipocas ou amendoins, mas aquelas sementes de abóbora, secas em sal, que assim que as levamos à boca as papilas gustativas excitam-se de imediato ao seu sabor amargo.
Começo e só acabo quando não sobra nenhuma no fim do pacote, ou melhor, no fim da tigela que leva pelo menos dois pacotes de 250 grs cada um, e me asseguro que não sobeja nenhuma casca para chupar ainda algum sal esquecido.
É um petisco que não se iguala a nada com casca que eu conheça.
Entalo-as entre o polegar e o indicador sem as sufocar, levo-as aos dentes da frente para aconchegá-las a seguir por entre os espaços mal apertados das coroas imperfeitas que a minha querida mãe me deu.
A seguir com uma pressão certeira e rápida aperto-as pela anca ao que elas suspiram abrindo seu corpo em duas estaladiças conchas que a seguir chupo com a língua para despir e trincar a sua óstia.
Faço isto sereno e ritualista, e uma a uma vou comendo tantas quanto as cascas que também ponho de lado.
O ritual não se fica por aqui que depois de as despir e 'papar' dou-me ao luxo de palitar os dentes violadores com o fio dental que lhes sobra depois de escancaradas.
O filme avança interessante e se for um suspense de Hercule Poirot até me estimulam mais as pevides para a análise ao crime que exige tanto rigor para descobrir o prevaricador como elas todas para desvirginar.
Comédia é prova viva que os cães são bons detectives e não se furta a lembrar-mo exactamente quando estou seguro de ter descoberto o alíbi e desvendado o mistério.
Logo aí Comédia derruba-me toda a lógica com a peúga que ninguém viu e que não está onde devia ou o timing do personagem de que suspeito que não joga com o timing da sua confissão.
Comédia acha o suspense moderno insípido e defende que alguns argumentistas deviam tirar aulas de gastronomia pois talvez evoluíssem na arte da criminologia ao ver como tratamos os nossos amigos de penas e conchas:
- Uma receita horrorosa só pode dar um bom crime, um crime horrendo defende com muita convicção
(…)
- Foi o padeiro com certeza. Lembras-te como ele a assustou quando lhe passou a conta do pão?
- Todos temos um lado negro. Estás a ser básico Linfócittos. Até um padeiro inofensivo pode ser esquizofrénico.
- Esquizofrénico?
- A esquizofrenia inofensiva abunda por todo o lado, é uma doença cosmopolita. Não faz de nós criminosos, só potenciais candidatos.
- Cosmopolita?
- Enquanto nos meios pequenos uma característica de carácter pouco normal tolera-se e às vezes até ganha uma ‘notoriedade favorecevdora’, já nas grandes cidades são alvo de marginalização e podem desenvolver-se para perversões perigosas como defesa do indivíduo.
- Ora, tudo é possível até acontecer Comédia. Eu continuo a achar que o padeiro… - Comédia não me ouve até ao fim e sai de ao pé de mim
- Comédia????
- Um homem que aspira ao crimeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee se não tem uma mente pérfida e perversa, não consegue nada mais do que somente imitar um grande criminosoooooooooooooooooooooooooooo.
O teu padeiro é mais inteligente que tu Linfócittossssssssssssssssssss, até ele sabe que é um falso criminoso, porque sem recursossssssssssssssssssssssssssssssss.
Sabe à partida que não passa de um herói condenadooooooooooooooooooooooooo ao fracasso e à tragédiaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa – berrou-me do corredor.
- Mas não achas mesmo que o padeiro????????
Cccccooooommmméééédddiiiiaaaa!!!!!! Onde é que vais?
(…)
Comédia é inteligente demais para o meu gosto. Antes do primeiro intervalo já topou mais de metade do mistério e no segundo intervalo, precisamente quando eu estou preparado para defender a minha teoria, já ela descobriu o verdadeiro autor e já nem tem pachorra sequer para me ouvir, enfastiada que está com o filme.
Resumindo, desconstrói-me a tese toda e só me ajuda para mais pistas se lhe der mais pevides, ao que eu danado pela óbvia burrice e desatenção ao enredo, lhe dou as respectivas, contrariado e resignado que estou ao meu falso alibi agora escangalhado e inútil.
Comédia além de inteligente é também esperta demais para o meu gosto.
Com uma mulher seria com certeza mais fácil: convencia-a sobranceiro de que não deixava de ser pertinente a questão que levantava e depois calava-a com um ‘chocho’ para que pudesse continuar a ver o filme sem uma detective amadora armada aos cucos e a competir comigo.
Podemos ver policiais a dois desde que lhe faça as perguntas a partir do segundo intervalo, mas quanto às pevides é que eu não me conformo.
Comédia revela mais destreza a comê-las (ora obrigadinho!) e com aquela 'bocarra' jeitosa do miolo à casca vai tudo a eito e bem mastigadinho (assim também eu!).
Dada a concorrência feroz vi-me rapidamente obrigado a arranjar duas tigelas - uma para cada um - e em troca Comédia não me ‘crava’ as minhas e ainda me dá a vã glória de ser um Sherlock Holmes de trazer por casa e disfarçar-me de Comédia e ela de Linfócittos.