sexta-feira, dezembro 10, 2004

A ambição obscurece até os virtuosos...

É sentimento óbvio e esclarecido para qualquer um. Não é preciso ser-se versado em ‘altos’ assuntos e basta, no que significa por suficiente, basta o domínio básico das regras de coexistência humana para se perceber que a AMBIÇÃO não é objecto malvisto por juízos de pouco e infundado valor.
Mesmo num contexto simples (como não o é o do conhecimento, que esse nunca basta por si dada a sua infinitude) bastam as relações ingénuas com o mundo que obedecem à milenar e por isso omnipresente fórmula humana de coabitação social - viver em sociedade acenta primordialmente no respeito de cada indivíduo e no que ele representa e estabelece com todos os outros – basta esse saber 'doméstico' e trivial para descobrirmos que a ambição é um manancial de (más) intenções com retoques de malvadez.
Porque nos revelamos assim? Ultrapassa-me...
Na história da Civilização antecedem os grandes feitos e conquistas do 'primata-cerebral' outro alento, tão poderoso de motivação e talvez de génese muito mais primitiva do que se possa imaginar: o DESEJO.
O desejo é uma das forças motrizes da desenvoltura e tomada humana. Da mais simples à mais complexa, da mais imediata à mais epopeica ou da que se consolida no próprio indivíduo à que o ultrapassa, sem que ele próprio a consiga dominar.
Não deixa de ser curioso que o sentimento natural que o homem conhece antes de o da ambição seja afectivamente avesso a ela, não lhe tolde o bom-senso e nem o catapulque para a (irr)racionalidade calculista e perigosa sobre o próximo que conhecemos hedionda nas suas várias expressões.
É despertado pelo desejo, é benigno e todos já o sentimos. É socializante e às vezes solidário porque na construção das suas estruturas interiores idealizadas pelos valores pessoais que aspiramos gera a necessidade da envolvência dos outros para revelá-lo e dar-lhe forma: a ASPIRAÇÃO.
A aspiração é uma espécie de afecto impulsionador da pessoalidade e não pretende ser mais que isso, que quando desvirtuada nos objectivos já se trata de outra coisa qualquer, talvez de ambição...
É generosa e razoável porque sobrevive no deleite da nossa vontade ou esperança de qualquer coisa. Mas é, acima de tudo, inofensiva para os outros, o que da ambição já não se pode rezar o mesmo.
A aspiração embala-se lenta nas marés da INSPIRAÇÃO.
Fruímo-la com um movimento suave e constante cuja beleza simples nos suscita desejos de abarcar o seu abstracto e acolhedor corpo.
É um afecto narcisista que ora indo, ora vindo inspirado, nos acarinha sem exigências.
A inspiração é a franja de um grande manto desconhecido, o que se quer ver para lá de..., chegar muito depois de..., esperar encontrar sem se imaginar que..., e um imperativo porque desconfiamos perfeito e ideal ao que aspiramos.
Nas cavernas a necessidade básica de alimento fez o homem nómada e mostrou-lhe a fraternidade social das colectividades. Quando se julgava remediado olhou para os grandes oceanos e sentindo-se inspirado pelo infinito fez-se um vagabundo ingénuo do mundo e correu-o outra vez para sua revelação.
Num ápice o homem fez-se aos céus e liberto o género humano da mortalidade terrena, encontrou adormecida numa cratera de Saturno e afagada pelo marulhar das estrelas, a ambição velada pelo nocturno celestial.
Pareceu-lhe bela e luxuriante, imoderada pela energia que imanava e fazia jus à fama desmesurada que a Civilização lhe sagrava.
O homem aspira até cegar e quando esse desejo ardente e alucinado lhe tolda o bom-senso, já não vê nem tem como recusar a ambição para sossego dos ímpetos.
A ambição não tem conta nem medida, está sujeita à porção da fragilidade de cada um, a cada emoção de resistência ou vingança ao que o mundo não lhe foi capaz de proporcionar e acima de tudo aos desejos insatisfeitos ou frustrados.
Há os homens que ficam para trás e os que avançam para a glória, os esquecidos e os que se esquecem, os pobres e os reis...
Há os que abraçam cúmplices e os que vêm passar ao longe a grande obra que é o Mundo...
Volta-se sempre ao desejo que é afinal um amor virgem que só depois de violado é que se faz criminoso. Não foi o insidioso antes inocente? Seria incompleto de qualquer coisa? Não são os dementes antes homens sãos? Afinal a loucura é sempre filha de alguém...
Cada um arquitecta a insensatez e prevarica a partir do que lhe for proporcionado e posto à mão pelas circunstâncias da marginalidade moral e humana da vida.
Miguel Graça Moura, homem genial por mente fecunda de sensibilidade na música, lá deve ter achado que tinha no mundo contas a haver e que a sua obra merecia mais.
A sua dedicação à sociedade raiava do mais nobre: revelar a música ao próximo para que depois de sorvida o fizesse um iluminado. Partilhar a sua arquitectura íntima como instrumento de humanidade e estética para alcançar os homens 'surdos'.
É, entre muitos mais, um mago que fazia o mundo um pouco mais mágico para a emoção e o afecto do Belo.
Porque terá o maestro achado parco e imerecido o que a vida lhe tinha vindo a proporcionar?
Porque terá abandonado o púlpito do Fabuloso e da Erudição para o mundano e corrupto universo de mordomias e privilégios cegos ao sentimento da Dádiva?
O mágico tirou da cartola a acusação de crime de peculato, peculato de uso, infedilidade e abuso de poder, e conspurcou irremediavelmente 12 anos importantes de investigação no ensino da música e de uma instituição valiosa para Portugal.
Não sabemos e nunca haveremos de compreender como pode um maestro ser portador de características humanas tão avessas à expressão da sua obra, essa que é feita para júbilo de outrém porque só pode nascer e fazer-se aí.
Continuo a achar que a medida da ambição não está só no indivíduo mas também no que lhe faltou o mundo e equacionado com a fragilidade das suas aspirações.
Os antigos já diziam: quem não caiu em tentação que atire a primeira pedra!
Não se tentou Judas e ofereceu Cristo à cruz?
Que outra explicação pode haver para uma equipa de pilotos aéreos vandalizar o estatuto da sua classe favorecidade e imiscuir-se no tráfico de droga gigantesco e letal de um país onde a sobrevivência e a subvivência há muito engoliu a justiça e a dignidade humana e por isso tem com essa monstruosidade relações familiares que se assemelham mais a arrufos e birras?
Da droga só conhecemos um universo 'caseiro' e clandestino, de organizações mafiosas e da aberrante monumentalidade do dinheiro que implica não saberemos com certeza tanto assim, porque é um mundo demasiado obscuro e abstracto ao nosso provincianismo.
O que temos de flagelo não são os cartéis mas as suas vítimas. O que abunda são os desgraçados que nos deambulam à porta ou vimos esporadicamente saber estarem a definhar em guetos que a cidade e a vergonha esconde.
Como caíram na tentação de se equipararem àqueles barões venezuelanos que já nasceram amassando com seus pais e avós o pão do tráfico que os veste, leva à escola e lhes oferece a frágil vida para seu governo.
Pois é, continuo a achar que a ambição de cada homem não está só no que ele deseja profundamente e vê gorado mas também no que o mundo lhe terá prometido e ainda, provocador, lhe põe à prova da sua fragilidade.