sábado, dezembro 11, 2004

...Além dos remediados

Ia aqui a 'donzela' distraída e divertida pela calçada manuelina - que confessa ter para regalo dos seus olhos como tudo o que é símbolo ou insígnia gráfica - quando às tantas o coração se me desata aos pulos e a respiração baralhada atrás dele.
Era tal o batimento cardíaco e tão desgovernado que mais parecia respirar facetado num jogo de macaca e no empedrado da hora.
Levei a única mão livre ao músculo inquieto, que ora o sentia, ora o perdia ao tacto, tal era o tumulto, e comovi-me granítica de emoção.
Claro!
Pudera!
Era a regressão à infância pictórica!
Era a referência 'in loco' ali ao meu alcance!
Era 'a' própria, ao natural e na proporção exacta!
Era a memória vivificada!
Espreitava-me de esguelha do lado de lá da montra brilhante uma deliciosa xilografia de Vieira da Silva com a representação de uma das suas fabulosas bibliotecas sobejamente conhecidas.
Já o coração estava granítico de comoção, a respiração mais parecia um jogo de macaca e encheram-se-me os olhos de livros e mais livros, prateleiras e mais prateleiras profusas, pontes de leituras para outras leituras de ponta, uma imensidão de tonalidades ocres que convergiam para traços grossos de carvão que se perdiam na multiplicidade de planos e voltavam a reencontrar-se novamente noutras paletas ocres só que agora cruzadas em ângulos irreais que atravessavam e serpenteavam pela tela, da tela ao vidro, da montra aos meus olhos estetas e escusado será dizer que senti uma alegria tremenda e quase me atrevo a dizer 'abençoada' .
Claro!
Pudera!
Era a regressão à infância pictórica!
Era a referência 'in loco' ali ao meu alcance!
Era 'a' própria, ao natural e na proporção exacta!
Era a memória vivificada!

A montra desmaterializou-se e o meu 'gozo' ganhou a infinitude e profundidade que se encenava naquele metro e meio por quase outro metro de cromatismo vivo e intenso.
Arrebatou-se-me a modéstica e toldou-me a alucinação de ouvir Tom Waits e Crystal Gayle em sintonia perfeita, cantando e sobrevoando a minha pequena sala escura, como se de um par de amantes de Chagall se tratassem.
Levitávamos os três sobre a sala, a sala connosco e Vieira da Silva uma anfitriã divertida.
A Biblioteca ganhava corpo com os livros que dançavam loucos, os três loucos com as prateleiras ocres, as leituras grossas de carvão com os ângulos de ponta e tudo o mais que tinha abandonado a tela, saltado para a calçada manuelina e a provocar-nos uma alegria aos pulos pelo céu da sala que se tornara a verdadeira parede da notável Biblioteca.
Inspirou-me, aspirei e em parceria com o dueto 'jazzístico' arrebatei sem leilão a Biblioteca de Alexandria para a minha pequena sala escura.
Queixaram-se quatro ordenados tímidos, contrariaram-se os príncipios dos deveres e descobri que a ambição não só tolda os virtuosos como também os remediados…
Claro!
Pudera!
Era a regressão à infância pictórica!
Era a referência 'in loco' ali ao meu alcance!
Era 'a' própria, ao natural e na proporção exacta!
Era a memória vivificada!