A subjectividade dos números
Anseia-se o novo ano no que à partida ele representa de potencial ao nosso universo, mesmo desconfiando ficar sempre pelos calcanhares do que auguramos para verdadeira mudança.
Na herança do velho anuário pessoal lutamos por descobrir novos rumos ou consolidar, no mínimo, os antigos.
Todos os janeiros é assim - duvido que alguém se descarte desta empreitada - gastamo-nos numa operação mental de desejadas probabilidades concertadas em fórmulas circunstanciais de números e barómetros que ultrapassam a nossa vontade e acção.
E porque a sabedoria morreu de velha ainda avisa-nos a cautela que não há como prever as armadilhas da imprevisibilidade e as contrariedades do delírio ou da utopia.
Com um pé ainda na magia efémera do subsídio de natal e entre papel e tinta exploram-se teoremas infindáveis das variáveis pessoais ambicionadas e multiplicam-se pelo mínguo aumento que nunca parece justo para a seguir dividirem-se pelos próximos doze meses, senão os quatorze salários.
Cruzam-se projectos com o desenrascanço e os alíbis logísticos do costume - que nunca passam da hipoteca e o custo consumista da família - e esboça-se um mapa pessoal para calcorrear que nem peregrinos porque sujeito à violência da triagem orçamental, ou o mesmo será dizer dos impessoais números e cifras dos outros.
Constato que a transição do ano quase sempre não passa da simples mudança da última casa do seu algorítomo e raras vezes faz-se real e profícua no matemática pessoal pré-estudada.
Assim, e com o outro pé nos princípios de Janeiro, descobrimos passar grande parte dos anos a polir as expectativas (porque gasta-nos mesmo o alento e a paixão, caramba!) numa conta de valores absurda e exercícios mais que irreais.
Absurda porque se expressa em unidades filosóficas e não numéricas e irreais porque o que precisamos de mudar raras vezes se pode confinar em contas viáveis e conjunturas contadas desses tão curtos 365 dias formais.
Como bichos de hábitos que somos, convencemo-nos à porta de todos os anos que é importante diferenciar, signifique isso simplesmente mudar por mudar-lhe somente a maquiage ou personificar uma espécie de milagre da multiplicação, tudo para uma nova radiografia pessoal de metas que irremediavelmente se descobre sempre ficar aquém dos muitos objectivos definidos.
E Porquê? Para mim, por causa dos números, claro!
Quando tomo o peso do instituído sinto-me estupidamente light e nas franjas do que projectei para a continuidade de algo em particular é o inverso, que aí tudo me parece penoso e pesado para o que ainda tenho por estabelecer.
As ideias entusiasmam ao princípio e logo se declaram frustrantes aquando das evidentes décimas que só alcançam e dos milhares de insucessos que lhe são subtraídos em esforço e suor.
No fundo, no fundo, não são projectos viáveis à luz da sociedade funcionalista e produtora, que só conhece passivos e défices, e por isso considera-as temáticas idealistas, românticas ou globalizantes de outras variáveis que não as económicas e cotadas, verdadeiros candidatos a buracos orçamentais.
Hoje e agora em 2005, na consolidação lenta do que se aproxima dos meus sonhos e no terminus do que veio do passado e entendo ser história a encerrar, entrego-me fatidicamente ao planeamento dos próximos meses.
Estou sentada na cadeira do ano passado e sobre a mesa ainda mais velha, por isso teimosa à utopia da minha juventude, lanço um jeitoso pacote de projectos pessoais que me seduzem e a continuidade das aventuras que não realizei.
A mesa verga e o caruncho range ao peso que estes propósitos assumem e eu alteada vou torçendo o nariz no desespero pelo desenho impossível de conceber da ficção inflacionista, do delírio económico que não há como congelar ou dos budgets irracionais que não se ajustam a nenhum modelo credor uniformizado.
Enquanto a minha persistência canta as janeiras em jeito doce e enfeitiçado à calculadora, e esta teima em ficar pelas centésimas partes dos meus desejos, o ano 2005 mostra-se desconcertante e apático na futurologia pretendida.
Os números e as equações já não me parecem mais os mesmos: a hipoteca da casa não me acompanha na reforma; o prémio dos seguros não me cobra o aumento que só o ordenado não teve e até a pesada factura da saúde não me atazana a lembrança da dedução rala nos impostos que sempre dá para comprar uns livritos.
O ordenado do patrão que multiplica o meu por 10x não me parece remediar as dívidas; o salário do Primeiro-Ministro não me arregala o coração e até o Totoloto acumulando o Jackpot já não representa um horizonte infinito e o cenário impossível de medir.
Descubro ser este ano o único inovador nos meus valores e na representatividade real das suas cifras: um milhar já não é um milhar e os milhões também já não são os milhares a dobrar.
Tudo por causa dos aberrantes números das vítimas do Tsunami que me destruíram a eternidade e a imensidão subjectiva do meu universo numérico: 98.081 mortos na Indonésia; 1.137 desaparecidos na África do Sul; 47.000 mortos no Sri Lanka; 14.962 mortos na Índa; 40 toneladas de medicamentos e consumíveis; 425.000€ de donativos; 118.000€ convertidos por SMS's; 1.500.000.000€ recolhidos pelas Nações Unidas; etc.
Deixei a minha aritmética futurista a repousar na conjuntura velha lá de casa, levei-me melancólica à calçada fria e aconchegada pelas folhas perenes até ao café com vista para o Cesário Verde, que senti também ferreamente gelado pelos chocantes números com que o noviço 2005 se apresentou.
Decidi que amanhã vou ao BPI depositar a módica e antiga quantia de 50€ para a reconstrução daquelas cidadezinhas e talvez assim possa deixar mesmo o 2004 e entrar com a caneta na mão direita no 2005, mesmo sabendo que os números já não são o que eram...
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