As madrugadas
Chove torrencialmente, chovem ruas esvaziadas de gente pela hora tardia a que a noite obriga. A cidade encharcada está fria até para os moribundos e noctívagos que nunca lhe resistem na madrugada perene e libertadora.
São corações apartados do afecto caseiro que não os espera, estes que na noite tomam as ruas como suas porque se sentem livres e nem hoje temem afogar-se nela, indefesa e abalada que está pela enxurrada.
Desfigurada pela água que mais parece jorrar das suas entranhas do que vinda do céu e engoli-la em torrente, a cidade seduz e convida a tacteá-la nas calçadas luzidias por demasiado lavadas e pelo alcatrão de tonalidades férreas serpenteantes que agora a veste.
Não sei se por defeito ou feitio, sempre acolhi a melancolia citadina onde a solidão se revela feliz e acompanhada pelas luzes vivaças dos candeeiros e se faz amorosa com silvos surdos aos que a invadem na generosidade do refúgio desinteressado que oferece quando abandonada pelos que a martirizam de dia porque a esburacam e a esventram para dela se apoderarem.
Faço as ruas, cúmplice com a quietude, solitária como ela e que alguém esqueceu, gozo-a fugindo divertida das poças que se atravessam e evito desconfiada os pingos grossos da água acumulada nos varandins, nas varandas, nas janelas e até nas portas, todos bebidos por uma humidade fétida que escorre o desperdício da violência diurna para as ruas e para cima de todos que a exploram limpa e fértil por descoberta no dilúvio.
São 6:ooh da manhã, chove a potes e a cidade está atascada em água, mas nem isso me rouba a madrugada e os seus rios vivos que ferozmente abarca e recolhe tudo e todos numa epopeia oceanática que reclama uma atlântida dos sentidos.
Por mais que a inveja seca nos espreite nas janelas cerradas e nos fite quente e animosa às portas que a defendem, protege-nos sempre a 'mãe-madruga' e às nossas almas dispersas que ganham corpo quando iluminadas pelos candeeiros 'celestes'.
Fustigada pela água que já me gela os ossos, sigo para casa e abandono o que ficou lá fora e que em mim luta contra a indiferença de uma cama que alberga o corpo orfão.
Provocam-me os lençóis a espreitar a madrugada lá fora e assegurar que não se esquece e me aguarda sempre que quiser e a solidão aprover.
Se eu pergunto ao mundo, o mundo há-de me enganar.
Se eu pergunto ao mundo, o mundo há-de me enganar.
Cada qual acredita que não muda e que só mudam os demais.
E passo as madrugadas buscando raios de de luz.
Porque a noite é tão larga? Guitarra diz-mo tu.
Se é crua a mentira do que foi a terna verdade.
Se é crua a mentira do que foi a terna verdade.
E até a terra fecunda se incomoda a dar-me e a dar-me.
E passo as madrugadas buscando raios de de luz.
Porque a noite é tão larga? Guitarra diz-mo tu.
Os homens são deuses mortos de um templo já derrubado.
Os homens são deuses mortos de um templo já derrubado.
Mas os sonhos já se salvaram que são uma sombra de paz.
E passo as madrugadas buscando raios de de luz.
Porque a noite é tão larga? Guitarra diz-mo tu.
Mercedes Sosa