domingo, julho 31, 2005

A Capital e o Comércio do Porto


Quase se pode dizer que sou um bicho de jornais.
Gosto daquele papel pardacento cujo folhear dos dedos é único pela textura gordurosa e leveza instável que mais nenhuma folha comum tem.
Isto é só o seu corpo nos meus braços, porque o que ele me propõe em tintas, ora escritas, ora manchadas em rede, é o que me faz ser um bicho de jornais.
Quando se abre uma ficção de lombada, duas coisas temos garantidas: um sentido único de leitura (não obrigatório mas essencial para percepcionar o encadeamento histórico que sustenta as acções dos personagens) e a certeza de que é no final do livro que a história nos confessa os seus genuínos propósitos.
Recuar a leitura numa ficção de lombada serve essencialmente para referenciar a memória hesitante, adiantarmo-nos ao próprio autor (ilusão sempre irreal) ou a nostalgia de um bom pensamento que nos terá invadido e que muitas vezes trata-se do livro inteiro (entre estes estão os tais "livros da nossa vida").
Já a escrita folhada da Imprensa contraria tudo isto:
- não existe ordem de leitura e o mais aproximado talvez seja a disposição das secções que segue critérios de importância pessoais dos editores. Normalmente começamos a ler a macronacionalidade e findamos na microregionalidade, sendo muitas vezes evidente que uma é outra, e a outra a mesma;
- A história não existe, mas AS. É como uma ida ao museu com áreas e áreas para exploração dos nossos sentidos - como os políticos-expressionistas, os económicos-surreais ou os cultos-impressionantes.
A esta hora já estarão a perguntar-se: "E isto é ler jornais?"
Claro que não!
Confesso que o Comércio do Porto só o cumprimentava diplomaticamente e aquando das visitas à família 'lá de chima'. Agora, A capital já é outra conversa! Quantas vezes não a espreitei...
A minha cultura jornaleira é a do Público, no entanto, relaciono-me com os jornais como com a política!
A uns faço-me militante, a outros mero observador e concorrente!
Tenho em todos (os que não respeito intelectualmente e os que me referenciam) o certificado de que sou parte integrante da sociedade e não só mero cidadão passivo.
Agora podem dizer: "Então não é assim tão mau o desaparecimento destes dois jornais!"
Claro que é!
Já imaginaram os nossos quiosques com menos dois jornais e muito mais 'ralos' do que já são?
Já imaginaram as bancas portuenses tristes pelo sentimento de perda do seu ex libris da escrita folhada da Imprensa - o velhíssimo Comércio do Porto?
Já imaginaram como não vai ficar a minha coluna do "Diz-se", no Público, agora que ficou na miséria do 'diz-que-disse' por três tristes tigres nacionais (Diário de notícias, Expresso, Jornal de Notícias)?
Agora ouço-vos: "Mas o que é que isso tem a ver com jornais?"
É que eu sou um bicho de jornais!!!!!!!!!!!!!!!!
§
P.S.: Perdoem-me o atraso neste funeral, mas tinha muitos jornais para ler.

sábado, julho 30, 2005

Anedotário portuguesista

A velha rivalidade com nuestros hermanos teima em escolher só os assuntos de "boa" categoria, que para os de "má" já a Península Ibérica se apresenta como um condado único. Advinhem quais são os dois países europeus que apresentam a maior mortalidade por cancro dos quinze congéneres, por «mau desempenho na prevenção e informação dos vários tipos de cancro à população»*.
Pois é... se se tratasse de touradas ou futebol...
(*) Estatísticas da Agência Internacional para a Pesquisa do Cancro
§
Pudera!!!! Gordinhos, mal nutridos e candidatos à (des)elegância americana neste cantinho da Europa - afamado como a melhor casa da importante e reconhecida sã Alimentação Mediterrânica.
Não, não se trata só de fast-food, trata-se essencialmente da condição sedentária da vida moderna e somos o 16.º país a desmistificar a ideia de que sem stress (o sadio) somos mais felizes e saudáveis.
Errado!!!!!!! 73% Da população portuguesa não faz, nem nunca fez, qualquer actividade desportiva . O mesmo é dizer que não mexemos o rabo por nada.
Ao contrário dos franceses e ingleses, saímos da Casa das Sandes ou do McDonald's e apanhamos um transporte público qualquer para fazer 1(!!!) avenida ou 1(!!!) quarteirão.
Eles não! Passam o dia enfiados no escritório que só intervalam para uma massa tagliatelli mal amanhada, não usam ginásio, mas.... (aqui é que a porca torce o rabo) fazem 1(!!!!) hora a pé todos os dias porque deixam o carro no parqueamento suburbano dos combóios.
Se assim não for (espantem-se) ou apanham o metro com aquelas escadarias infindáveis que são óptimas para ginástica localizada (interessante, não acham?) ou saiem à rua!
Saiem à rua no seu tempo livre para andar junto ao Sena ou simplesmente estar em Monparnais a gozar a vista deslumbrante.
Mexem o 'cu' ao invés de o enfardar em frente da TV ou consola da Nintendo!

segunda-feira, julho 25, 2005

Será caso para dizer, "O ‘Arrastão’ e o caso do Ministro das Finanças"


Revista do "Correio da Manhã"

A REALIDADE "À ROLHA"

O Comandante Oliveira Pereira da PSP de Lisboa confessava à jornalista Adriana Adringa «que o comunicado do presumível “arrastão” na Praia de Carcavelos por 500 indivíduos fora pressionado» pelo Comandante Gonçalves Pereira da PSP de Cascais, também ele sob pressão da Imprensa antecipada que o levou a figurar «500 adultos e jovens constituídos em gangs e que entraram às 15:00h na praia (...) e começaram a assaltar e agredir os banhistas».
No espaço de três dias «a PSP contactou vários especialistas» (quais?) «nomeadamente jornalistas» (desde quando?), mas jura «não ter sido a primeira a falar de "arrastão"».
O confessionário retórico e irrealista das presumíveis "pressões" (e aqui já se não se trata de prudência discursiva) alterna de classe e chega ao primeiro dos primeiros repórteres, que alega ter sido «pressionado pelo dono de um dos restaurantes da praia com provas fotográficas».
Quais? Uma verdadeira vaga de "pressões" é caso para se dizer!
Calculo que até a própria autarquia do concelho devia estar "pressionada" também.
É que só agora António Capucho se lembra de criticar o sensacionalismo mediático, oportunista e desonesto da efabulação das «centenas de marginais». Até à desmistificação pela imprensa (promovida indirectamente por Adringa, reconheça-se) e em pleno acontecimento, da sua 'boca autarca' só se ouviu que «era conhecedor da situação há anos» (qual situação?) e a «lamentável ausência do corpo de intervenção nas praias da Linha» (costumam lá andar?).
Onde nós chegámos: corpos em topless, corpos com tops e corpos de intervenção espraiando-se nas dunas popularuchas do Estoril burguês!
Nesta história de pressões a Imprensa foi quem teve sempre garantido o seu quinhão. Antes, com a manchete fraudulenta do “Arrastão em Carcavelos”, depois com a desmontagem da encenação do “O arrastão que nunca existiu” e, por enquanto, com a exposição do servilismo perverso que as estruturas de segurança do nosso país tem para com o jornalismo impiedoso.
Sobra-nos o país real:
- 2 queixas de roubo na PSP local;
- 4 indivíduos suspeitos e detidos (ainda sem processo sumário);
- O Estoril na boca do mundo graças à "corrupção ética" da imprensa portuguesa;
- uma portugalidade de ódios rácicos até agora adormecidos e herdados das antigas colónias ultramarinas que, aliados hoje à emigração maciça e ao aumento da marginalização social de grupos de risco (de desemprego e de ausência de formação escolar/profissional) prometem-nos, a curto prazo, uma população de tendência xenófoba.

CAMPOS E CUNHA

Afinal não havia caso para se fazer “caso” algum de Carcavelos. Na ressaca das “pressões” constatava-se que a realidade era reincidente: o quotidiano da delinquência mecânica que projecta uns biscates no verão distraído dos portugueses pelas praias mais populares, logo mais atractivas.
O mesmo não se poderá dizer da governação socialista. Tudo o que eclode pelas hostes extra-PS e que se esforça por teatralizar uma transparência prossecutória, acaba sempre por instaurar do nosso lado a desconfiança política.
Também uma declaração, uma causa pública, mas consequências reais e muito para lá do conforto 'empregado' que a Direcção Nacional da PSP tem ainda por privilégio.
A 17 de Julho, Luís Campos e Cunha, ministro das finanças, numa coluna prosaica do “Público” apresenta e avalia o relatório oficial do Banco de Portugal e do BCE.
«As previsões económicas para 2005-2006, para Portugal e Zona Euro, que se encontram abaixo das anteriores - por razões de todos conhecidas, e que, assim, impôe-se uma cautela ainda mais vigilante na disciplina orçamental, o que pode implicar mais medidas de contenção da despesa, possivelmente já para 2006».
Como financeiro governamental, o indigitado cumpre a sua obrigação, mas como discípulo de Sócrates esquece tanto a “pressão” do défice, como a “pressão” do “choque tecnológico” que o governo ainda tem para reanimar a crise social.
E, ao contrário dos comandantes, o representante não antevê o “arrastão” ministerial que o espera quando confessa - em rigor - o que isso pode significar para os projectos de Sócrates (em particular a política contributiva, o Aeroporto da Ota, ou até o TGV).
Logo a seguir à chegada às bancas do tablóide, José Sócrates anuncia em comunicado oficial o «requerimento ao Presidente da República da exoneração do ministro» e declara ter um substituto preparado para avançar.
A partir de agora uma acção comunicacional bem diferente. De Sócrates
a comunicação intencional 'limpa', de Campos e Cunha o relatório com suporte técnico e avaliação rigorosa e, incluído, a certificação da sua origem: «A qualidade da despesa pública está relacionada com tudo os aspectos da despesa, mas, em particular, com o investimento. A ideia, de que o investimento é sempre algo de bom é errada(…). Hoje viveríamos melhor se certos investimentos não tivessem sido realizados».
A honestidade política e a competência profissional que a PSP não teve, teve-a o ministro das finanças para com os seus eleitores e com o seu governo.
Luís Campos e Cunha equivocou-se. Sócrates tem os seus homens com as rédeas-curtas e, ao mais pequeno sinal de “pressão” social, não está com meias-medidas: despede-os como não despediu ninguém da PSP.
Não é só Mário Lino (pasta das Obras Públicas) que «quer assumir o risco, para fazer alguma coisa», foi-o também o financeiro, só que outro “risco”: o da transparência política e praticabilidade governativa.
Será caso para dizer que, ao contrário do “arrastão”, aqui é que há caso. O das nossas finanças e dos ministros socráticos! Como muito bem dizia Augusto Mateus, «a sair alguém não era o ministro das finanças» (o único até agora que não nos deu números à “pressão da rolha”), mas alguém nas chefias da Segurança Pública que nos deixou abalada a confiança nas suas competências.

domingo, julho 24, 2005

Sexo-Expresso (XXI) ou o Sexo dos estudos

«Não conheço esse estudo que diz que as mulheres inteligentes têm mais dificuldade em casar. Acho credível que a generalidade das mulheres e, aquelas que, em particular, encontram níveis de satisfação agudos numa qualquer actividade (intelectual ou não), apresentem uma maior capacidade de autonomia o que os homens. O que me parece é que as mulheres têm uma prática milenar de articular certos saberes paralelos e é sabido que as práticas influenciam as formas. Se esse aspecto teve ou não tradução nesse estudo, não faço ideia. A verdade é que á mulher sempre coube a gestão das diferentes relações sociais. Parece-me plausível que a sabedoria e a argúcia que desenvolveu se possa capitalizar em maiores agilidades, quando aplicada noutras frentes».
Paula Moura Pinheiro

Para os designers a realidade inspira a estética dos criadores, técnicos especializados e ao serviço das múltiplas necessidades do consumidor - mesmo que pouco esteta.
O que é preciso é que se identifiquem no quotidiano os problemas da qualidade de vida e as suas particularidades, tais como: uma população em geral envelhecida pela longevidade que a ciência e a redução da mortalidade infantil permite; a heterogeneidade do estado civil, a qualificação variada; as assimetrias de rendimentos e poder de compra; etc.
Um tecido social de homens e mulheres que procuram a permanente experimentação das suas capacidades sexuais intercaladas com novos produtos e ambientes eróticos. A tendência é para um futuro onde a líbido e o erógeno se estimulem e procurem vivenciar na novidade e mudança constante e assimilando as novas tecnologias e materiais.
Por exemplo, nos objectos eróticos de uso quotidiano, estamos rodeados de obstáculos á autonomia e qualidade sexual dos mais graúdos que têm o bestial Viagra mas já não se mexem como quando eram jovens.
Os designers consideram que o seu conhecimento é vital para dar resposta á aparente discordância entre os objectos inovadores que proporcionam e a sexualidade pós-moderna que goza de uma vitalidade ainda com limitações.
De que modo o design e o seu constante estudo das formas pode ajudar um septuagenário com uma erecção juvenil, mas já sem a flexibilidade para satisfazer uma parceira na cama? Como funcionalizar um aparelho estimulador para o jovem deficiente mas ainda presente das suas necessidades masturbatórias? Como impedir que um cego entre em curto-circuito com o incorrecto manuseamento desse estimulador eléctrico? E um analfabeto? Como ler na bula da embalagem e escolher o preservativo ideal ou a sessão erótica no cardápio?
Os profissionais da criatividade confessam não ter ainda estudos suficientes para uma visão globalizante mas já se concretizam algumas linhas de acção como, por exemplo:

- na informação escrita dos produtos pornográfios para os mais velhos, os designers evitam a utilização de caracteres pequenos e difíceis de diferenciar;

- para a perda da sensibilidade visual assegura-se a acentuação dos contrastes cromáticos na roupa sensual e um código especial para os materiais sadomasoquistas de forma a evitar acidentes graves;

- recorrem-se a ícones mais simplificados para a identificação das características energéticas dos utensílios eléctricos e digitais; etc.

Em suma, desconstruir toda a linguagem tradicional da realidade dos acessórios e imagética sexual para atender á revolução das práticas sociais e privadas de sexo que, num futuro próximo, que se adivinha potencial e sem tabus.

sexta-feira, julho 22, 2005

Insucesso escolar = efeitos perversos do Síndroma da Pressa?

O Tempo não está para o homem só como um canal abstracto e aritmético que dita o ciclo das suas tarefas ou como uma alegoria do seu passado, presente e futuro.
Em todas as culturas o Tempo encontra uma simbologia própria e obrigatoriamente associada ao valor social que ele encerra.
Veritas filia temporis - "a verdade é filha do tempo" - implica um princípio, um meio e um fim que há muito [pelo menos desde a década de 50 e o movimento da Primeira Cibernética (1)] já não serve meramente para balizar o "tempo social" do conhecimento e dita os critérios realizadores do "tempo pessoal" de todos nós e que hoje revelam sérias incoerências na sua qualidade utilitária.
As diferentes avaliações do factor tempo ditam as estratégias políticas e económicas e, em consequência, geram teorias para a sua aplicabilidade e possibilidades reais de transformação.
O insucesso escolar é um dos resultados e uma das alegorias modernas desse factor, o Síndroma da Pressa, que nos parece sair muito caro.
Entre todos os agentes de educação há concordância sobre o ideal de entendimento (o desenvolvimento do Estado no sentido de promover o papel da formação do indivíduo altamente dotado), mas não sobre o ideal de sociedade e o espaço vital que ela necessita (as práticas educativas são influenciadas pelas relações sociais do trabalho mas não devem ser prerrogativas das necessidades corporativas do imediato desses grupos económicos).
Ou seja, em acordo sobre os valores cognitivos da educação (realidade do mundo) e em desacordo nos seus valores sociais (a ideologia implícita).
Outra coisa não seria natural. O calendário solar dos políticos é a sociedade produtiva e exige à temporalidade humana rácios de mais-valia com base em resultados transformáveis. Tem no tempo, enquanto critério administrativo e contabilizável, uma bolsa de capitais e metodologias lucrativas.
O calendário do "tempo cultural" tem outras rotações e reconhece o valor natural que lhe é subjacente "à lentidão", ou seja, o mérito na consolidação das estruturas de conhecimento.
Enquanto o discurso oficial é de «metas técnicas e pedagógicas» para o ensino, do outro lado a linguagem dos "pensadores" das universidades e das escolas superiores de educação são «a reflexão sobre as taxas de aprovação e reprovação nas frequências e na avaliação contínua».
Enquanto cada equipa ministerial por cada quatro anos confisca um sem número de percentagens para elaborar os seus relatórios de sucesso, já os agentes no terreno contestam as possibilidades reais das suas fórmulas "embandeiradas" e reclamam o bom-senso: toda a espécie de saber é individual e comunitária. É o auto-conhecimento vagaroso que constrói a capacidade humana rápida nos seus contributos para a história.
Praticamente todos os programas de Governo e seus representantes revelam-se a antítese empresarial na educação portuguesa.
Para praticar a ciência do conhecimento no seus vários segmentos (neste caso a escola), interessa que a estratégia preveja não só a sua realização em critérios contínuos de tempo, como a identificação do seu valor social na realidade longínqua que se deseja construir.
Como o tempo circunscrito a um mandato só permite diletantismos nas reformas educativas e para as saídas profissionais (o panorama actual das economias europeias não visa a recuperação económica em poucos anos), José Sócrates anunciou aos portugueses o «choque tecnológico» e disfarçou a "pobreza" profissional destas falsas carreiras com uns desejados «150 mil postos de trabalho».

  • Para Sócrates, 150 mil empregos em formação profissional a curto prazo e cientificidade relativa = à confiança política popular e empresarial.
  • Para o cidadão, 1 posto de trabalho = 1 salário = 6 meses, no mínimo, de autonomia económica.
  • Para o empresário, 1 posto de trabalho em formação profissional = compromisso de subsídios governamentais.


Uma "cabala" tecnológica porque o Primeiro Ministro sabe que no seu "tempo político" muitos lhe cobrarão uma determinada qualidade de vida. Sabe que a base da riqueza humana de uma nação privilegia a prática social das ciências (Educação) e o viver relacional com o conhecimento (Informação), mas que tudo isto é incompatível com o Síndroma da Pressa, um elemento espacial da era da globalização.
Esta matéria será sempre controversa porque o que está em causa não são ideais (ele próprio é pai de uma geração futura), mas défices e contribuições económicas que o barómetro europeu herdado de Mário Soares e os seus parceiros económicos não se irão coibir de cobrar no seu devido tempo.
O mundo da globalização significa a fluidez do conhecimento, a velocidade de realização social e a multiplicidade de acções humanas, ou seja, o tempo tão depressa é um aliado como um inimigo.
É como um grande campo de forças onde se degladiam indivíduos e condições de existência, meios humanos e sistemas sociais, inputs biológicos e outputs conjunturais (2).
É o móbile e o álibi dos "maus" governos, sejam eles conservadores ou liberais, de metodologias clássicas ou modernas e com economias obsoletas ou de ponta.
A um governo exige-se-lhe a organização do tempo económico e do nosso espaço de desenvolvimento para alcançá-lo, ou seja, espaço para a prática educativa e instituições do saber à altura
Os egípcios associavam à abstracção do tempo (Hach ou Heh) o número de um milhão. Não por ganância de acumulação, mas por essa imensidão numérica simbolizar a oportunidade de crescimento e a florescência.
Na práxis política e "globalizada" dos ministérios de educação não se exigem poderes divinos mas, independentemente da tecnologia e da sociedade formada e de informação, é preciso garantir que a ideologia vigente nunca se sobreponha ao ideal de entendimento sobre a condição temporal dos saberes e dos educandos.
O insucesso escolar também é resultado do Síndroma da Pressa moderno e este é filho do Princípio do Computacionismo (2) que fez do tempo a desculpa da globalização implacável e um inimigo para o valor intrínseco do conhecimento e do ensino.
Actualmente, alguns dos agentes de educação já podem contar o seu tempo de decadência profissional neste paradigma pós-moderno (a extinção de uma série de ramos do saber por se verificarem inviáveis no imediatismo das economias tecnológicas e "informatizadas") e a classe política futura sonhar o status das ideologias em prime-time que incorrem a gerar os novos "ignorantes" do mundo - os "escolarizados" inábeis do Síndroma da Pressa!
O insucesso escolar... talvez um paradigma dos tempos modernos!

§

(1) Teoria de onde surge a "Metáfora do computador" ou o conhecimento racional e complexo do novo homem "máquina".
(2) Conexionismo: ramo novo das ciências nos anos 80 em que o cérebro passa a equiparar-se a um maquinismo computacional na interpretação e reformulação do conhecimento.

quinta-feira, julho 21, 2005

Insucesso escolar = insucesso da sociedade contemporânea?

Se o saber é a actividade humana por excelência entre as "criaturas" do mundo e a sua dimensão informativa faz dos homens seres sociais produtivos, então poderemos ousar que o insucesso escolar é um sério problema de afeição com os instrumentos do conhecimento da parte de todos os intervenientes educativos (dos alunos, dos pais, dos professores, dos técnicos e das instituições implicadas).
Talvez por essa complexidade actuante o debate da TSF dedicado ao "Insucesso Escolar Português" fosse injustamente selectivo e restringisse a reflexão apenas nas suas dimensões formação/profissionalismo versus formação/motivação.
Engenhosamente, a rádio emissora punha logo de lado as recorrentes intervenções dos familiares insatisfeitos que fatalmente caiem sempre no cenário mais comum (não menos verdadeiro) da desmotivação dos "coitadinhos" dos alunos:


  • a inexperiência ou absentismo do professor
  • os conteúdos curriculares demasiado vagos da cultura liberal ou demasiado exigentes da cátedra extenuante
  • o peso excessivo dos horários escolares
  • o calendário de exames que não se coaduna com o tempo de estudo demasiado curto para as metas que se propõem, etc.


Estava assim entregue o debate só a um lado e aos principais responsáveis das estruturas de ensino (os professores, os teóricos e os vários técnicos educativos) ou seja, limitavam-se à partida os considerandos a um só ângulo da "obscenidade" nacional.
Cerca de 4 horas interessantes de debate radiofónico que alternavam entre os afazeres domésticos e catedráticos a vociferar para o sistema tecnocrata, entre a higiene dos cães e tecnocráticos a desvalorizar as doutrinas obsoletas e, de vez em quando, a tónica zangada mudava para os licenciados no estrangeiro (perplexos com a falta de exigência das escolas e a não dedicação dos alunos) ou para os gestores públicos que optaram por NBA's privados que o Estado empregador lhes paga muito bem (!!!!!) mas ainda não é o que os forma melhor.
Conclusões? Nenhumas, claro está!
Nem um ano de métodos escolásticos e conceitos cognitivos chegaria para resolver o que, à partida, enche um hipermercado de dúvidas mas de certezas basta-nos um carrinho: o "parque de ensino" como está, não produz qualidade e muito menos faz escola.
Contudo, num pormenor estes educadores estavam, sem dúvida alguma, em acordo. Não há nem nunca se pode garantir o sucesso, se para todos os actores (professor/técnico/teórico/instituição) ao invés da promoção ou mero sustento pessoal, o objectivo não for comum e não visar a informação e formação do indivíduo na malha social.
As deficiências da má ou inexistente escolaridade produzem como que uma espinha cultural bífida no cidadão e a seu tempo desastrosa para todos:

  • os indivíduos que hoje não assegurarem a totalidade da sua formação académica, esperam-lhes um amanhã fatal no mercado de trabalho e consequentemente para a subsistência da sua família
  • os agentes de educação que não "abraçarem" a responsabilidade de munir os seus educandos da capacidade progressiva e evolutiva de aquisição de conhecimento que os superioriza na temporalidade da sua época, correm eles próprios o risco de, num futuro cada vez mais imediato, enfileirarem a massa inútil e dispensável dos cidadãos que só lhe restam aguardar pela caridade da sociedade do conhecimento industrializado e do Estado cada vez mais benfeitor e menos social
  • um país que não é dotado de uma população informada e formada, não materializa profissionalmente resultados nem competências sociais para competir saudavelmente na economia global. Isso significa um passo para integrar um novo "Terceiro Mundo" que cresce rapidamente e que reúne as sociedades frágeis da aliteracia dominante e inutilidade pofissional, etc.


A "era do conhecimento" não é um fenómeno em lenta expansão, já é a realidade severa do presente. O tecido competitivo da sobrevivência tão depressa projecta magnificamente o indivíduo como o segrega e empurra para a marginalidade errante, ou seja, parece capaz de homogeneizar o planeta desenvolvido quando, na verdade, as diferenças locais tornam-se profundas e desastrosas.
A atenção sobre o insucesso escolar está muito para lá de razões como:

  • valores de «justiça económica na vertente social do contribuinte» e que mais não serve para encapotar a contenção de despesas que um Estado - desesperado - não sabe como fazer
  • absurdas teorias de «predisposição genética para esta ou aquela faculdade de compreensão do saber» que só um cientista saberá esclarecer e que na voz da actual ministra de Educação soa a desajustada desculpa no seu campo teórico e pedagógico
  • a globalização espacial da sociedade informatizada que mais não faz senão disciplinar o tempo e o espaço sem que lhe correspondam eficazmente novos hábitos e competências do saber
  • a redução negativa dos agentes de ensino a vulgos funcionários executantes, etc.

Deixemo-nos de ingenuidades. Algures, entre universidades utópicas de doutos filósofos e "exércitos" tecnológicos, é preciso encontrar o graal do ensino e dar espaço ao seu tempo primordial (aprender significa criar representações do mundo interno e externo e, com a linguagem própria, assimilá-lo e saber intervir).

Um hiato no tempo útil e produtivo da sociedade que não gere riqueza, mas precioso para o futuro que a divisão de trabalho da modernidade de raiz capitalista nos legou.
Se a aprendizagem de um aluno é uma espécie de negociação entre o meio e o seu próprio "sistema" de interesses e importâncias, então o Ensino deve ser também ele um "feliz" negócio entre a sociedade e as competências/saberes dos cidadãos.

segunda-feira, julho 18, 2005

Insucesso escolar = não reconhecimento do valor do indivíduo no campo do Saber?

Partindo do pressuposto que a escola é, para o jovem, o lugar e o tempo social da aquisição absoluta e definitiva dos conhecimentos básicos e pilares para o seu futuro, parece-me impossível assegurar o sucesso escolar se culturalmente o indivíduo não se rever como valor intrínseco e, consequentemente, ter o empenho e a criatividade necessários para consolidar o que lhe é providenciado.
Para qualquer "criatura" durante as várias metas sócio-cognitivas ao longo da sua vida, se este processo pessoal não for espontâneo e desejado (mas a sua percepção consciente) a criança, o adolescente, o jovem ou o adulto, enfim, qualquer um no papel de educando, tende a resistir a todo e qualquer princípio de raciocínio ou fundamentação.
O mesmo será dizer que a apreensão de qualquer realidade conceptual só se preconiza de modo lógico e crítico se essa "operação" fizer sentido para o próprio, ou seja, realizar-se importante na curiosidade mental ou num interesse complementar da sua pessoa.
É uma simplificação mas é - em grande parte - por esta lógica de realização pessoal e no reconhecimento da sua necessidade e importância, que em todas as gerações, épocas sociais e culturas educativas (também com as suas vicissitudes) grande parte do corpo estudantil e dos indivíduos activos no tecido profissional, cultural e cívico, ultrapassam os dogmas e os pragmatismos vigentes do pensamento/conhecimento ou das ideias/realidades, e assegura sempre uma vanguarda potencial para a sociedade produtiva.
Por isso em várias turmas sujeitas ao mesmo programa curricular, a vários métodos educacionais e constituindo por si variáveis exclusivas (cada aluno vem de um ambiente de desenvolvimento de personalidade único) além de não serem uniformes os seus resultados de aprendizagem, acusam diferentes níveis de apreensão do conhecimento.

  • [O aluno Y (igual ao aluno Z) falha no Português] + [o Z (diferente do aluno X) que o iguala na História e falha junto com aluno Y as Artes Visuais] = variável K
  • Este ano a variável K corresponde a 70% de reprovações na disciplina de Matemática.

Uma geometria humana complexa, racionável e constante nos relatórios anuais dos últimos anos do Ministério de Educação. Uma realidade escolar que hipoteca a qualidade económico-social dos nossos futuros quadros.
É reconhecido que as verdadeiras reformas (de efectuação teórica em moldes contínuos) são sempre adiadas por paliativos políticos que não arriscam mais senão mudar a cor dos imperativos administrativos e da contabilidade de merceeiro.
O sistema de ensino português continuará a não saber reagir eficazmente à constante degradação do seu capital enquanto tiver uma abordagem economicista e a curto prazo para questões que ultrapassam as gerações mais próximas (do passado e do futuro) e as tendências alternantes.
Como pode o "parque escolar" teórico-humano e a sociedade científica do conhecimento ajudar o educando a ser impermeável a todos os "bloqueios" próprios da acção humana por vezes relativista e desapaixonada?
O insucesso escolar é, entre outras coisas, produto da desvalorização da atitude personalista e da abstracção negativa do papel de cada um na comunidade dos saberes.
Para o aluno, por exemplo, a primeira forma de organização social e acção concertada para um valor comum que conhece - além do seu núcleo familiar - é a sua turma.
Mesmo que se aborde a aprendizagem a um nível mais básico da consciência, este contexto "comunitário" do conhecimento que o indivíduo encerra, é crucial para que a sua atitude filosófica e individualidade crítica assegurem no futuro a mesma expressão qualitativa e identitária na sociedade activa.
O reconhecimento do valor intelectual do próprio indivíduo é, no seio familiar, o primeiro passo para o sucesso escolar e, no campo social, um dos muitos para estabelecer naturalmente a importância da formação académica e profissional como motor de desenvolvimento humano.
Consagrar o indivíduo como o único elemento que pode concentrar e viabilizar o Saber, é a garantia de que o amanhã está bem entregue e só temos que nos preocupar com que nada falhe nessa sequência e escalada natural das sociedades desenvolvidas que têm estes valores como garantidos.
É o saber acumulado e entendido que nos permite uma melhor compreensão da realidade, possibilita variantes de acção sobre ela e afasta-nos do raciocínio imóvel e estéril que nos infecta a autonomia entre indivíduos.

domingo, julho 17, 2005

Sexo-expresso (XX) ou os Sexual Groups Selections



Os Sexual Group Selections não são a performance e a fórmula pura das teorias de selecção natural darwinistas, mas os agentes, esses, detêm conhecimentos sobre os fenómenos sociais e exploram peculiares grupos para gáudio do nosso voyeurismo e fortalecimento das suas economias.
Por mais resistência que se tenha e pudor diplomático que se preze, se há coisa que nos desassossega é o anonimato impenetrável dos que abeiram o nosso quotidiano.
A essência do voyeurismo não passa só pelo estilo ou Espécimen (vulga tara) que nos surge provocador.
Pertence à condição humana e manifesta-se através da curiosidade natural sobre toda a "pessoalidade" diferente e que nos intriga só pelo simples facto de ser estranha.
No entanto, da observação curiosa à perseguição não há mais distância do que a que medeia o bom-senso e a fixação fetichista.
É entre a sensibilidade própria da intimidade de cada um e a tentação de perscrutar a dos outros (principalmente quando a suspeitamos anómala e depravada) que se reúnem os ingredientes para o candidato a voyeur.
Por isso continuam a ser tão intrigantes as inclinações sexuais das figuras públicas, em particular quando sugerem características de elite em que domina a falsa anarquia porque a escolha dos candidatos não deixa de ter critérios próprios.
Quanto mais essas figuras debilitam e devassam a sua discrição, mais a nossa curiosidade aumenta e pode mesmo ser tão mórbida quanto a obscenidade que nos propõem.
"A Quinta das Celebridades" é um modelo (mesmo que rasca) destes Sexual Group Selections.
  • um grupo sexualmente escolhido a dedo e sujeito à intimidade propícia e inevitável já que confinado todos os dias ao isolamento subsistente, autónomo e sem necessidade de recorrer ao contacto exterior;
  • figuras de extensão pública com características especialmente férteis e adequadas ao sexo mediático e viciante (embora muito antes de enclausuradas naquela quintarola falsamente rústica, já fizessem as delícias dos comuns sobre o seu peculiar mundo).
"A Quinta das Celebridades", o "Big Brother" (para ficarmos por "roças" lusitanas), são tudo cópias e exemplos do que as sociedades de informação muito desenvolvidas abrigam a escalas maiores.
"Núcleos" sociais que se alimentam e sobrevivem da dependência (in)directa dos que deste lado as visionam e - através desse reconhecimento - as instituem.
No entanto, os sentimentos promíscuos e as relações "oportunistas" que sobressaem nestes grupos só existem porque a sociedade voyeur lhes dá essa visibilidade enquanto tal.
Quem é mais perverso ou de comportamento dito "menos normal"?
Todos e ninguém, claro!
O "espreita" (tradução fiel do francês voyeur) só se distingue do espiar natural e tolerado, quando esse acto (sem direitos) sobre a intimidade alheia passa a ser motivado pela curiosidade mórbida e se transforma num impulso patológico e sem controlo.
O que importa nos Sexual Group Selections não é o seu hipotético perfil clínico desviante, mas a construção mental que lhe está subjacente e que em alguns aspectos se aproxima da fórmula de Darwin.
O célebre naturalista e fisiologista inglês, quando apresentou na época as famosas teorias das "Origens das espécies por via da Selecção Natural", dizia muito simplesmente que a própria selecção da vida (no sentido da preservação da sua qualidade) passa por uma espécie de altruísmo consciente de grupo e que permite vantagens sobre os outros grupos no sistema.
É no sacrifício de uns e na alienação criteriosa de outros que se consolidam as espécies fortes e que têm mais hipóteses de sobreviver.
Não é à toa que o mecanismo psíquico subjacente ao altruísmo seja extensivamente estudado e teorizado nas disciplinas sociais e científicas, com vista ao desenvolvimento económico e cultural de outros Social Selected Groups.
Por outro lado, com a actual tendência para a "vida esotérica" e o "sentimento profundo e universal do homem civilizado" en vogue (em que as coisas estão todas interligadas e sempre que algo morre tudo é afectado), esta cumplicidade sociológica e moralista com os Sexual Group Selections por parte do espectador/voyeur verifica-se inspiradora na acção comunitária do indivíduo e constitui-se um anti-stressante para a contemporaneidade rotineira.

sábado, julho 16, 2005

o "mensalão" mostrou que lá também há homem!

As denúncias de corrupção sobre alguns deputados governamentais do Brasil lembraram-nos que talvez o "bicho" político tenha alguma coisa do homem comum. Naquele canto da América do Sul trata-se de uma classe normalmente tida como corrupta, economicamente criminosa e de oportunismo parasitário da impotência das classes pobres (a maioria da população), que nunca conheceram outra coisa senão a humanidade miserável que a metrópole burguesa empurra para o esgoto "favelado" ou esquece no pó da estrada tropical.
O Homem distingue-se do bicho porque é capaz de sentimentos e reagir com emoções.

É um ser racional mas em espontaneidade pode surpreender-nos como faz a fera frágil quando se sente ameaçada.
Mas "político" é gente, ou não?
«Quando lhe contei do 'mensalão', o Presidente chorou...»*


(*) Um deputado do Governo brasileiro

quinta-feira, julho 14, 2005

Aos amores de atilho não lhe bastam outros arremessos de sedução e chegam mesmo a levar-nos uma boa parte dos dias a "arrumarem-se"


(O Studebaker -1967)

À beira de um risoto rico e um vinho novo alentejano anormalmente macio, estabeleci considerandos para quem há muito tinha perdido esse privilégio mas hoje deixou a ermida da vergonha e puxou-me ao sentimentalismo.
Um ex-companheiro de há seis anos e anterior amigo de outros tantos largou o purgatório dos amores de atilho (afectos frágeis que a individualidade emaranha fatalmente) e apelou-me à indulgência durante um comensal exótico com a realizadora da Serenela Andrade e uma linguista italiana de nome Nahidi (uma filha de mãe alemã e pai iraniano que nunca esteve nos estúdios mas que a minha amiga jura lhe ter "saído" numa das séries loteadas).
Enquanto numa igreja ou registo civil chegam quatro horas para o arreio jurídico das núpcias cínicas (pois se houve coisa importante do feminismo foi com certeza a liberdade de explorarmos os poros e oratórias que bem entender-mos até à união oficial) já para a desconstrução afectiva do amado não basta ao coração outros arremessos sedutores e chega mesmo a levar-nos uma boa parte dos dias a firmar-se.
Os jantares de Joana não são menos elaborados que os takes dos funcionários públicos da RTP que, sob a sua câmara mágica, parecem outros ou renovados ao espectador.
Há quantos anos a Serenela (não)nos diverte com o seu sorriso doméstico e perspicácia básica?
O que seduz nestas noites de ambiente queiroziano decadente é o estado feliz e quase absurdo que se atinge na sequência do atropelo filosófico da passividade viciada das rotinas da vida "normalizada".
Começa logo tudo à porta.
Primeiro recebe-nos a condição cerimoniante de um negro servil em barro e da década de 30 a estender-nos uma bandeja com grappas de mirtillo para engolir-mos de uma só vez e que Joana garante ter propriedades gustativas perfeitas para o cigarro que antecede a salada de aipo avinagrada que vinha a caminho.
Depois, passado o corredor hexagonal e iluminado por candeeiros resgatados a uma cocheira de Sintra, somos convidados a passar à outra sala por uma loira acartonada de metro e meio das Confecções da Amadora que semi-despida nos pisca o olho e diz que «Preços cómodos são a SUA tradição!».
Todas as relações que nos consomem tem o seu preço, aliás, tem várias tarifas. Os companheiros de curto-curso deixam-me tímida e desconfiada quando reaparecem adocicados e os de longo-curso, ora me abalam a simplicidade que julgava do destino, ora me pertubam o que tinha como garantido para todo o sempre da minha compreensão.
Eu a visionar a pilha interessante dos televisores Invictus de «visão panorâmica» da minha anfitriã e telefona-me o «líder incontestado» da não-decisão e do amor amedrontado que me estoirou um ano de generosidade para com o próximo:
- Estou?
- Sim?
- Não estás a conhecer a voz?
- Parece-me familiar... o timbre é vulgar. Quem fala?
- Bem... é o....

(De repente um silêncio tão estúpido que a Nahidi sorriu-me várias vezes seguidas para ver se estava bem. Sorri e passei-lhe o meu copo de vinho para me levantar dali)
- Eu percebo... deves estar um pouco surpreendida. Queria saber se tenho hipótese... se podemos falar...
Na sala de música, uma pilha de vinis de meter respeito e um Studebaker em lata prensada a prometer-me «Ulta vista». Continuava sem saber o que dizer, afinal o que tinha eu para dizer? Nada!
Um amor de atilho lânguido ao ouvido (que se fosse em 1949 pensava ter morrido na guerra) e aos meus olhos apardalados a «Nova visibilidade de amplitude total e o sensacional incremento da força do Studebaker».
Eu não tinha mesma nada... Ele? Tudo, pelos vistos!
Não é à toa que a minha amiga recusa o baratucho do IKEA ou qualquer património familiar para preencher aquele espaço amplo e esquecido num quarteirão degradado do Campo de Ourique falido.
A realizadora confessa-se impotente para resistir ao charme que os objectos ganham quando evidenciam a passagem dos outros, e o que prefere são os adereços publicitários por que - como têm um carácter documental - tornam-se inevitavelmente histórias vivas quando retratam informativamente o universo de códigos e símbolos culturais de um grupo social ou uma determinada época.
São 170 metros quadrados em rosa querubim e verde vitoriano de um antigo lar de senhoras/esposas do exército e sem a tradicional meia-luz pobretanas dos esmaltes queimados e as sombras ressequidas do comum do séc. XIX.
Uma atmosfera que impõe a suspensão da "normalidade" que ali não consegue habitar e sugere a promiscuidade expontânea dos afectos oprimidos.
Não, não é só a casa. Creio que as 20 mulheres "castradas" prematuramente (ora pela viuvez social, ora pela ditadura do marido prostituído em lençóis progressistas) ainda habitam a generosidade daquele espaço fértil e respiram sobre os convivas das inúmeras salas e dos seus antigos aposentos íntimos, o erotismo emancipado da sua clausura.
«Crush! É tão delicisoso...» sussura-se de um dos fundos. Bem, não é do Orange American Crush mas da touringa da Herdade do Peso que acompanhou o paté francês de ganso selvagem e apurou a casta excêntrica de todos nós.
João, um artista quase sempre desempregado porque até a pior escultura reproduzida em massa vende mais que a sua "Metamorfose Humana no Quotidiano Imprevisto", tem sempre projectos novos para o seu roomer que muda todos os anos de rosto e me parece cada vez mais imberbe e pateta.
Não, o João não fuma Hollywood, logo não é «da tradição e do bom gosto».
Mas o que é que isso interessa... há seis anos também eu encenei burlescos afectos e lascivas pretensões para aquele puritano que me estava agora a importunar diplomaticamente.
Há muito, no tempo próprio da vaidade e do gozo desprendido, o amor deste senhor amedrontou-se. Agora os arrependimentos só podem ser cínicos e as amnistias uma espécie de condolência.
A Kodak diz que «se a vida sorri, tire uma fotografia!» e eu tirei.
Há muito a dele, hoje a dos meus amores que afinal não os tinha bem arrumados.
Decididamente as soirées na casa da Joana são um teatro vivo do corpo sensível dos que lá passam.
À sombra dos pastiches da submissão nobre e à luz dos vitrais enegrecidos da castidade, descobrimo-nos todos uma história inacabada e em cada suspiro confidenciamos a fragilidade e o afecto incodificável que nunca foi verosímel ao próximo.
Ninguém que por lá passa escapa à espacialidade sedutora dos planos exíguos e à memória cruel da publicidade enganosa de cada um.
Na última curta-metragem da Joana há uma casa que foi outrora o embuste insuspeito do erotismo burguês feminino e onde se refugiam hoje uns enamorados e outros tantos com histórias de «homens bem sucedidos» nos seus amores de atilho.

quarta-feira, julho 13, 2005

Marcar pontos "olímpicos" do outro lado das trincheiras II

«Torna-se cada vez mais claro que a invasão do Iraque foi um erro, sendo quase certo que isso criou mais terroristas do que aqueles que ele eliminou (...).
Um acordo de paz entre Israel e a Palestina removeria outro grande centro de recrutamento de terroristas islâmicos além do Iraque. Neste campo, é mais a Europa dos que os EUA que precisa de abrir os olhos, urgentemente, para a necessidade de tomar mais medidas (...).
Deixou de haver política externa. Talvez seja esta a lição mais profunda a retirar do ataque terrorista de Londres».
Timothy Garton Ash - "Público"

terça-feira, julho 12, 2005

Parte do Novo Código da Estrada (como as multas) não passa de um instrumento estatal para arrecadar as receitas que não tem coragem de ir buscar a...

Portugal é uma malha complexa e atabalhoada de estradas velhas que confluem em estradas novas; vias únicas em faixas múltiplas, auto-estradas tantas vezes de qualidade inferior ás nacionais, sinalização confusa e sujeita a "critérios regionais" que a afluência transfronteiriça e europeia não consegue interpretar, etc.
Um autêntico macramê de alcatrão e cimento armado sujeito ao civismo leviano dos condutores portugueses que até hoje podia dar-se ao luxo de tirar o brevet sem necessariamente saberem ler ou escrever.
O Governo decidiu pôr cobro aos amadores e incautos encartados e preparou novas regras que, fundamentalmente, são o agravamento das coimas e a apreensão dos veículos.
No entanto, descurou mais uma vez os seus agentes de segurança sem meios modernos e equiparados à profusão dos itinerários e ao desenvolvimento tecnológico das viaturas que circulam.
A acção governamental do primeiro trimestre aposta numa abordagem repressiva e militarizada sobre os condutores, ao invés da fiscalização em modos reeducadores da consciência e com vista à verdadeira e importante prevenção da mentalidade infractora.
Quem ultrapassava ligeiramente a velocidade permitida na Ponte Vasco da Gama - distraído pelo seu pavimento macio e nocturnidade harmoniosa - pode chegar a casa sem viatura.
Aqueles valentões com não sei quantos cavalos "enturbados" que fazem criminosas race-cars no Montijo, esses continuarão a dar vergonhosos "bailinhos" à Brigada de Trânsito.
Um dia esses maquinófilos das quatro rodas quase chegam à Lua, entretanto o cidadão comum deixa de conduzir e à BT resta-lhe justificar o Pré em policiamento nocturno e parqueado aos milhares de veículos que o Código da Estrada "encostou" na berma definitiva, por que o proprietário não conhece salário para pagar as multas.
Isso é que era bonito de se ver!
O mais certo é que - antes de isso e de não haver lugar para os "rebocados" - já a indústria automóvel se tenha lobbizado com as autoridades e os tecnocratas políticos e "tratado" de arranjar pagamentos por conta para os utentes saldarem as suas dívidas...

quinta-feira, julho 07, 2005

Marcar pontos "olímpicos" do outro lado das trincheiras - na sociedade civil!

A XXVIII competição olímpica de 2012 vai ser realizada em Londres pela terceira vez (a 1ª foi em 1908 e a 2ª vez em 1948) e pode, a curto-prazo, não só reservar-nos mais novidades "explosivas" como tornar-se o palco político do Ocidente enlutado e "reactivo".
Quatro atentados bombistas no metro e num autocarro londrinos repetiram hoje o horror de Madrid que precedeu as Tween Towers.
Trata-se do maior ataque terrorista no Reino Unido mas nem por isso da primeira retaliação do mundo árabe á ofensiva conjunta no Iraque.
Reivindicados por um grupo islâmico ligado à Al-Qaida, foi uma cópia exacta do que ocorreu em Espanha: 4 pontos de explosão distribuídos por 4 zonas movimentadas e durante as horas de ponta.
As últimas 48 horas britânicas extravasaram emoções e sentimentos imprevistos muito além dos expectantes da Cimeira do G8 e da escolha do anfitrião inglês para os Jogos Olímpicos.
A «guerra contra o terrorismo continua». Bush e todos os outros líderes mundiais enviaram os avisos ao fanatismo "surdo" e as palavras de esperança certas para «o dia mais triste do povo britânico».
Curioso, há 97 anos quando os ingleses se estrearam nos Olímpicos, recriaram a sua abertura numa emocionante e cromática massa humana em desfile nunca visto. Dezenas de bandeiras ao vento representando cada país participante e oferecendo ao mundo dos momentos mais inigualáveis de comunhão e celebração inter-nações.
Amanhã e realizada sob o medo sobrevivente do terrorismo, a 28ª Olimpíada da era moderna constitui-se uma oportunidade única para o «estoicismo e espírito de resistência dos londrinos» reagir à hostilidade invasora e para a história humana marcar pontos "olímpicos" do outro lado das trincheiras - na sociedade civil!

quarta-feira, julho 06, 2005

Sexo-expresso (XIX) ou Sexo pelo buraco

«Do buraco, sim, porque os seus filmes estão sempre povoados de orifícios (tem mesmo um filme chamado "The Hole" - "O Buraco"), fluidos e outras lubricidades.
Num verão escaldante, a água potável está a esgotar-se, os corpos nem sempre aguentam o calor que começa a insinuar-se como uma epidemia. Que faz uma enfermeira com uma melancia num túnel? A melancia está ao desbarato, dá para jogos de todo o tipo. até sexuais. Assim começa "The Wayward Cloud": com uma melancia aberta entre as pernas de uma mulher, na qual um homem escava um buraco.
...E ele vai possuí-la través de um corpo inanimado (morto?), através de um buraco (uma janela), sem se tocarem.
Filme carnal, lúbrico, já se disse, mas também com uma disposição fantasmática: há o vazio nos planos, ou a tal sequência em que o par do filme se possui através de uma morte. E o amor no meio disto? É da ordem do expectante, do irremediável
».
Kathleen Gomes, "Público"

"The Wayward Cloud" - 2005

No Inverno passado saiu-me na rifa uma infiltração pequena e cuja humidade não passava de uns very tiny holes num dos cantos do quarto de dormir. As meias-dúzias de telhas partidas foram concertadas, os vizinhos de cima remendaram os seus imprevistos, e a mim restou-me para recuperar em estuque antigo pouco mais de um metro quadrado de rendilhados de fim de século.
Bahhhh! Obra de pouca monta!
As parcas receitas da altura continuaram magras e passou-se a Primavera, o Verão, o Outono, e cheguei ao Inverno com os sonhos e a insónia nocturna continuamente encabeçados por um céu de madeiras tramadas e urdidas em fino pó de alvenaria.
Bahhhh! Não passa deste ano!
Habituou-se a sensibilidade estética áquele buraco, a insegurança à seca contínua desta pouco chuvosa estação e as noites foram chegando e partindo sem que nem mesmo os desejos ou ímpetos - quando acompanhados(!) - se contraíssem com pudor pelo voyerismo do buraco escuro e silencioso.
O amor, o repouso, as leituras viciadas, tudo se desenrolava com desinibição e cumplicidade sobre a cama e à sombra da mancha perene e nostálgica.
Bahhhh! Não acredito!
Um orçamento pouco amigo e o Inverno enxuto e bem intencionado adiou-me a redecoração mais uma vez e deixou-me o sexo presbitico e suspenso naquele eco alteado.
Deixou-me a satisfação cristalina cá em baixo nos lençóis mas o romantismo confuso e disperso na negritude lá de cima.

terça-feira, julho 05, 2005

Não têm pachorra? Obrigado, voltem amanhã!(*)

O pastor que guia o gado miúdo pela serra ao encontro de erva fresca sabe, à partida, que pela exposição a que se sujeita passa a governar a insegurança dos seus. Isto dos blogs é como o pastoreio.
Um campo imenso e habitado por vários pastores que cruzam os seus egos fiéis com a natureza inquisitória ou diligente dos outros.
Se há coisa que não faz sentido é adulterar as prerrogativas e estética de cada individualidade em função da eficácia interpretativa ou do tempo dos receptores. Para os mais modestos ou tímidos, a existência deste canal digital de comunicação não depende do seu visionamento alheio e externo.
Não se arriscará a uma "plástica" do discurso e "falsa" (porque não expontânea e fiel) atitude filosófica?
Nesse caso, é melhor que cada pastor fique em casa e com o pragmatismo seguro.
Os mails variados que tenho recebido nos últimos tempos não me servem, por exemplo, para fazer o "bocadosdegente.blogspot feito pelos leitores" (receita do Abrupto.blogspot de Pacheco Pereira), visto não concretizarem qualquer pretensão teórica e tão pouco terem a ver com a minha índole e pessoalidade de telhados de vidro tantas vezes espatafúrdia!
«Textos demasiado longos», «temáticas relativistas», «sensibilidades rebuscadas», «dispersão incontrolável dos conteúdos», «estruturação cénica da escrita», etc, é fundamentalmente o eco dos fundos do bocadosdegente.blogspot.
Meus queridos leitores, essa economia que me sugerem é impossível e contrária à personalidade que só aqui pode ganhar corpo!
A blogosfera não consigna modos próprios de escrita e da leitura consequente.
Parece-me que esse género "informal" da prosa curta e pouco aprofundada tão típica dos posts, instituíu-se por razões tecnológicas e não por algum estilo pré-definido:

- Esgotam-me a paciência 600 batidas de texto num ecrã(iiiiiiinhooooo) de 15 polegadas que, sujeito a todos os meus movimentos de cabeça, me fadigam a córnea ocular (!!!!!!!!!) e afectam a limpidez do cristalino (!!!!!!!!!) para as variações de luz;

- Enquanto leio na diagonal o Diário de Notícias por que o seu grafismo me cansa, o Público na vertical e só 60% das suas páginas úteis, já os bloguistas que ausculto, pareço ter uma espécie de consideração que (após confirmar o meu interesse pelas IMENSAS linhas) me leva a imprimir as "pretensões" do dito para as ler sem os condicionamentos mencionados;

- Talvez tenha mais sorte que a maioria... é que como o meu português não é dos melhores, não há pontapé na língua que me demova a curiosidade. Para os mais puristas não é menos fácil. Basta-me um dicionário e um prontuário!

- Etc.

Patati, patatá (...), o que interessa meus caros e parcos leitores que tenho o privilégio de serem da minha amistad imparcial e não do anonimato crítico que não há como "fidelizar" empiricamente, é que a médio-prazo torna-se-me impraticável esse tipo de consumo.
Ou esperam que exercite a irreverência desajeitada e o romantismo compulsivo a contragosto?
Não acredito...
Ou terei intrepretado mal o facto de me convocarem pelo mail particular e fora do âmbito da blogosfera?
Patati, patatá (...), deixemo-nos de «conversa da treta» e, se já não têm pachorra, voltem amanhã!

(*) Os outros títulos que eu não usei:
1 - «Para ver (com olhos de ver) a pintura dos últimos dois séculos, vou aos museus e não a um ecrã digital que assassina o essencial da cor, do brilho e da plasticidade»
2 - «Como não tenho "Estudos sobre o comunismo", ofereço-vos myself!»
3 - «Parcimónia dissertiva? É coisa que aqui faço questão de não usar!»
4 - «Críticos, façam desta casa a vossa!»

5 - «Perdoem-me não "rasgar" a genialidade ou não conhecer o humor!»

segunda-feira, julho 04, 2005

«Agora a dança é outra» mas o equilíbrio das forças de poder no mundo continua à sombra da vontade americana (cont.)




Séc. XXI
«A dança agora é outra», já não é a do comunismo de herança estalinista que se extinguiu com o fim da Guerra Fria e - simbolicamente - na queda do muro de Berlim.
É contra um novo mundo, o do Islão (isto enquanto a Ásia não constituir uma ameaça real).
São ofensivas de outro género e inimigos que não têm a configuração geográfica e tradicional de Estados vizinhos com fronteiras. Coabitam connosco e impõem-se nos próprios países que os acolhem - nós. O terreno das operações de guerra deixou de estar só ao alcance pela caixinha mágica da TV e passou a ser aqui ao lado.
Está na hora de se exigir à ONU uma nova filosofia de segurança mundial e a todos os seus países representantes uma responsabilização colectiva diferente da que temos tido até agora, onde a impunidade dos "actos provocadores" de alguns países continua.
Qual é o verdadeiro papel da NATO como «instrumento de defesa do mundo livre» se a Aliança Atlântica foi concebida de raiz para um inimigo no palco europeu que já não está lá. E assim sendo, como encarar a movimentação de contigentes americanos, sobretudo ainda nos mesmos solos? Como legitimá-los à luz dos direitos universais e democráticos consagrados na Carta?
A Europa do séc. XXI tem um novo corredor potencial de conflitos e parece estar mais nas frágeis linhas de divisão com o mundo árabe e a civilização do Islão. Esta ameaça figura-se, quer do ponto de vista estratégico, quer da filosofia operacional, uma dupla incógnita: qual o seu modus operandus e como podemos combatê-lo.
Segundo a ONU «a NATO não se encontra dotada nem preparada para interpretar as características dessa perturbação e reagir adequadamente em segurança perante essa ameaça. É provável que nos próximos anos assistamos à reconfiguração da Aliança como a conhecemos nestes 50 anos».
A acrescentar à agenda, a Organização tem ainda os possíveis e naturais «desequilíbrios globais» consequentes das rivalidades entre as potências regionais (China, Taiwan, Coreia do Sul e do Norte, Japão, Filipinas e a Austrália).
É ainda a NATO uma presença militar superior respeitada, mas sobretudo temida?
A título de desabafo lancei no último post algumas datas isoladas, mas próximas o suficiente naquele espaço de tempo para reflectir sobre a fragilidade da estrutura humana daquele órgão multinações que continua sujeito ao poder de veto ou apoio imprescindível do assento americano.
Kofi Annan acompanhou-me: «...é óbvio que a ONU não funcionará se a Administração americana não der um sinal equívoco de apoio e liderança».
Ora, todos sabemos que os EUA são - e serão por muito tempo - uma nação adepta da sua dominância e supremacia entre povos. E nem o xadrez mundial de hoje, onde o mundo árabe tem cerca de 240 milhões de pessoas, lhe parece inspirar razoabilidade e cautela.
Sabendo à partida que os EUA carregam uma herança pesada, perigosa e sinónima de tendências para a hegemonia, bloqueio de desenvolvimento tecnológico e científico entre a concorrência, censura nas áreas das humanidades por "razões de Estado" imprescindíveis (o cinema, por ex., é tratado como uma indústria crucial pelos estratégicos americanos por que pode subliminar assuntos de paixões negativas ou positivas), eles são os maiores infractores da manutenção qualitativa do ambiente humano global por interesses económicos.
São adeptos do militarismo como expressão política, de poder e de patriotismo, fomentam uma política externa de submissão que culturalmente cimenta os extremismos e incentiva ao terrorismo resistente, e são exímios propulsores da cultura racista generalizada (o seu "calcanhar de Aquiles" que tem gerado por todo o lado a xenofobia e o patriotismo cego).
O mesmo será dizer que, a continuar assim, torna-se evidente a bancarrota do sistema de segurança das Nações Unidas.
O que Kofi Annan tornou claro é a inépcia crónica do Conselho de Segurança para controlar e resolver os atropelos à ordem e à lei internacional.
Lembremo-nos da Bósnia, do Ruanda, do Kosovo, do sobrevivente do Iraque, da imprevisível Coreia do Norte e do silenciado Sudão.
Não admira que ninguém leve a sério a ONU e pouco espere dela.
Que alguns "não tem tomates" para enfrentar os EUA, é uma história já com barbas e dura. Poucos dos 191 representantes não terão sido cúmplices dos seus caprichos e os que restam é por infeliz inferioridade de outro género.
A crua realidade ultrapassa a autonomia comprometida a longo prazo para alguns, trata-se, isso sim, da eterna sujeição ao Tio Sam em consequência directa de este ser o principal produtor e financiador dos seus contigentes.
Enquanto a produção de todas as formas de energia conversíveis para armamento tiverem quase na sua totalidade nas mãos dos EUA, a ONU não tem como assegurar acções de paz ou a sua manutenção.
É um paradoxo que o seu inimigo indirecto seja também o seu amigo directo e o primeiro responsável dos confrontos desta nova Era.
Saímos de uma época abundante em guerras convencionais que se instalaram por todo o século XX, mas outra se insinua, só que desta vez com contornos desconhecidos e muito sinistros na viragem do tempo.
Não, não se exige só à ONU... exige-se a todo o mundo civilizado, ás elites industriais, aos responsáveis políticos e económicos, aos intelectuais e filósofos, a toda a consciência com memória uma reflexão urgente e séria sobre que tipo de entendimentos multilaterais para a civilização humana se querem para o futuro que se impõe e não avisa quando chega.
Porque quando ele chegar... está a guerra aberta!
O palco da guerra tem responsabilidades que nunca envolvem um só sujeito. Quando instalada, os considerandos de quem a terá ou não provocado já pouco importam, importa sim é ajuizar a sua expressão humanitária ou demoníaca, ou seja, os esforços à vista no sentido da trégua.
É sempre determinante para o seu prolongamento ou extinção no tempo, a avaliação externa de outsiders para internacionalmente fazerem pressão para que o conflito se resolva.~Quando não está no terreno é esta a função fundamental da Organização das Nações Unidas!
A ONU fez 60 anos, um período de tempo insignificante para a idade milenar da Sra. Guerra, e lembrei-me de tantos que já pereceram até hoje e que se podiam ter algum anjo protector e de esperança era precisamente a sexagenária ONU:
- Azerbeijão: 10.000
- Bósnia-Herzegovina: 25.000
- Croácia: 25.000
- Chechénia: 70.000
- Curdistão: 30.000
- Argélia: 100.000
- Burundi: 300.000
- Eritreia: 100.000
- Etiópia: 100.000
- Ruanda: 500.000
- Somália: 500.000
- Sudão e Afeganistão: 1,5 milhões
- Iraque: 30.000
- Líbano: 131.000
- Colômbia: 41.000
- El Salvador: 77.000

domingo, julho 03, 2005

«Agora a dança é outra» mas o equilíbrio das forças de poder no mundo continua à sombra da vontade americana



Séc. XX
A II Guerra Mundial termina à custa da acção militar mais atroz que este século e o anterior jamais pôde imaginar e que foram os lançamentos das bombas nucleares sobre o Japão.
Para a vivência dolorosa e massacrada dos Aliados (Grã-Bretanha, Estados Unidos, China, França e mais tarde a União Soviética) e todos os pequenos países satélites ainda não envolvidos directamente no conflito - mas nem por isso a salvo das Potências do Eixo lideradas por Hitler (Alemanha, Itália e Japão) - este autêntico genocídio acabou por ser um mal menor.
Uma intervenção fulminante que permitiu o armistício entre os Aliados, Coreia do Sul, Japão e o fim de um plano geoestratégico e expansionista no mapa terrestre cujo futuro só podia ser dizimador para toda a Europa.
Podemos agradecê-la ao Tio Sam, mas isso não significou que a sua cultura secular, a par da tendência de se constituir a única superpotência, se intimidasse para posteriores acções de ordem militar para «repor a paz, a liberdade e a democracia»:

- 1983: Na América Central (Nicarágua, Honduras, El Salvador e Guatemala) e numa luta de forças entre a Esquerda e a Direita, os EUA insistem em se envolver. Ronald Reagan envia tropas a Granada com o objectivo de impedir a «expansão do comunismo na América Latina» e consegue derrotar a resistência cubana na ilha, derrubando o governo local.
- 1986: Aviões americanos atacam uma base aérea da Líbia na cidade do líder Muammar Gaddafi;
No Panamá, após fracassadas tentativas de depor Manuel Noriega, George Bush, envia 24 mil soldados para invadir o país. Derruba o governo e empossa Guillermo Endara, derrotado nas eleições por Noriega.
- 1990-1991: Dá-se a invasão americana do Kuwait (ocupado com tropas do Iraque) e os EUA impõem ainda um embargo económico ao país. Seguiu-se a intervenção concertada anti-Iraque (países europeus membros da OTAN, Egipto e outros países árabes) que ganhou o título da Operação Tempestade no Deserto.
- 1992: Forças norte-americanas chegam a Somália para intervir numa guerra entre as facções do então presidente Ali Mahdi Muhammad e as tropas do general rebelde Farah Aidib.
- 1993: Em retaliação a um suposto atentado - não concretizado - contra o ex-presidente Bush em visita ao Kuwait, Clinton lança um ataque contra instalações militares iraquianas.
- 1995: Os EUA enviam tropas para o norte da Bósnia, para garantir a assinatura formal do acordo de paz entre Sérvia, Croácia e Bósnia.
- Etc.
Como não há-de a própria ONU acusá-los de «agir demais, ferindo e desprezando interesses, ou de não agir quando seriam os únicos capazes de fazê-lo»?
Os EUA saem do século XX com assuntos demasiado "inéditos" por resolver e que envolvem todas as nações.
Não deixa de ser irónico que a maior superpotência do planeta tenha acumulado tanto poder e se tenha tornado vítima dele agora no século XXI.
Consequência directa dos "direitos de senhor", que os americanos reclamam e exercem por serem o país mais rico e poderoso militarmente, novas tensões - as árabes - tornaram-se perigosas para todos nós quando se deu a acção terrorista do II de Setembro e constituiem o começo de uma nova era de guerrilha - a fanática.
Tudo resultado da ânsia desmedida e louca da «paz mundial» da nação americana e - insólito e perturbador - são também eles a espoleta de origem desses focos, e os mesmos que têm agora que salvar o resto do mundo que (in)directamente arrastaram.