Aos amores de atilho não lhe bastam outros arremessos de sedução e chegam mesmo a levar-nos uma boa parte dos dias a "arrumarem-se"
À beira de um risoto rico e um vinho novo alentejano anormalmente macio, estabeleci considerandos para quem há muito tinha perdido esse privilégio mas hoje deixou a ermida da vergonha e puxou-me ao sentimentalismo.
Um ex-companheiro de há seis anos e anterior amigo de outros tantos largou o purgatório dos amores de atilho (afectos frágeis que a individualidade emaranha fatalmente) e apelou-me à indulgência durante um comensal exótico com a realizadora da Serenela Andrade e uma linguista italiana de nome Nahidi (uma filha de mãe alemã e pai iraniano que nunca esteve nos estúdios mas que a minha amiga jura lhe ter "saído" numa das séries loteadas).
Enquanto numa igreja ou registo civil chegam quatro horas para o arreio jurídico das núpcias cínicas (pois se houve coisa importante do feminismo foi com certeza a liberdade de explorarmos os poros e oratórias que bem entender-mos até à união oficial) já para a desconstrução afectiva do amado não basta ao coração outros arremessos sedutores e chega mesmo a levar-nos uma boa parte dos dias a firmar-se.
Os jantares de Joana não são menos elaborados que os takes dos funcionários públicos da RTP que, sob a sua câmara mágica, parecem outros ou renovados ao espectador.
O que seduz nestas noites de ambiente queiroziano decadente é o estado feliz e quase absurdo que se atinge na sequência do atropelo filosófico da passividade viciada das rotinas da vida "normalizada".
Começa logo tudo à porta.
Depois, passado o corredor hexagonal e iluminado por candeeiros resgatados a uma cocheira de Sintra, somos convidados a passar à outra sala por uma loira acartonada de metro e meio das Confecções da Amadora que semi-despida nos pisca o olho e diz que «Preços cómodos são a SUA tradição!».
Todas as relações que nos consomem tem o seu preço, aliás, tem várias tarifas. Os companheiros de curto-curso deixam-me tímida e desconfiada quando reaparecem adocicados e os de longo-curso, ora me abalam a simplicidade que julgava do destino, ora me pertubam o que tinha como garantido para todo o sempre da minha compreensão.
Eu a visionar a pilha interessante dos televisores Invictus de «visão panorâmica» da minha anfitriã e telefona-me o «líder incontestado» da não-decisão e do amor amedrontado que me estoirou um ano de generosidade para com o próximo:
- Sim?
- Não estás a conhecer a voz?
- Parece-me familiar... o timbre é vulgar. Quem fala?
- Bem... é o....
(De repente um silêncio tão estúpido que a Nahidi sorriu-me várias vezes seguidas para ver se estava bem. Sorri e passei-lhe o meu copo de vinho para me levantar dali)
- Eu percebo... deves estar um pouco surpreendida. Queria saber se tenho hipótese... se podemos falar...
Um amor de atilho lânguido ao ouvido (que se fosse em 1949 pensava ter morrido na guerra) e aos meus olhos apardalados a «Nova visibilidade de amplitude total e o sensacional incremento da força do Studebaker».
Eu não tinha mesma nada... Ele? Tudo, pelos vistos!
Não é à toa que a minha amiga recusa o baratucho do IKEA ou qualquer património familiar para preencher aquele espaço amplo e esquecido num quarteirão degradado do Campo de Ourique falido.
A realizadora confessa-se impotente para resistir ao charme que os objectos ganham quando evidenciam a passagem dos outros, e o que prefere são os adereços publicitários por que - como têm um carácter documental - tornam-se inevitavelmente histórias vivas quando retratam informativamente o universo de códigos e símbolos culturais de um grupo social ou uma determinada época.
São 170 metros quadrados em rosa querubim e verde vitoriano de um antigo lar de senhoras/esposas do exército e sem a tradicional meia-luz pobretanas dos esmaltes queimados e as sombras ressequidas do comum do séc. XIX.
Não, não é só a casa. Creio que as 20 mulheres "castradas" prematuramente (ora pela viuvez social, ora pela ditadura do marido prostituído em lençóis progressistas) ainda habitam a generosidade daquele espaço fértil e respiram sobre os convivas das inúmeras salas e dos seus antigos aposentos íntimos, o erotismo emancipado da sua clausura.
«Crush! É tão delicisoso...» sussura-se de um dos fundos. Bem, não é do Orange American Crush mas da touringa da Herdade do Peso que acompanhou o paté francês de ganso selvagem e apurou a casta excêntrica de todos nós.
João, um artista quase sempre desempregado porque até a pior escultura reproduzida em massa vende mais que a sua "Metamorfose Humana no Quotidiano Imprevisto", tem sempre projectos novos para o seu roomer que muda todos os anos de rosto e me parece cada vez mais imberbe e pateta.
Não, o João não fuma Hollywood, logo não é «da tradição e do bom gosto».
Mas o que é que isso interessa... há seis anos também eu encenei burlescos afectos e lascivas pretensões para aquele puritano que me estava agora a importunar diplomaticamente.
Há muito, no tempo próprio da vaidade e do gozo desprendido, o amor deste senhor amedrontou-se. Agora os arrependimentos só podem ser cínicos e as amnistias uma espécie de condolência.
A Kodak diz que «se a vida sorri, tire uma fotografia!» e eu tirei.
Decididamente as soirées na casa da Joana são um teatro vivo do corpo sensível dos que lá passam.
Ninguém que por lá passa escapa à espacialidade sedutora dos planos exíguos e à memória cruel da publicidade enganosa de cada um.
Na última curta-metragem da Joana há uma casa que foi outrora o embuste insuspeito do erotismo burguês feminino e onde se refugiam hoje uns enamorados e outros tantos com histórias de «homens bem sucedidos» nos seus amores de atilho.
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