sexta-feira, junho 24, 2005

Espremendo bem a prosa... um interesse puramente difamatório?

«A vida de Álvaro Cunhal é a história de um projecto político terrível», era como começava o primeiro parágrafo do último editorial de uma revista semanal ainda nova, mas já sabida dos proémios narrativos da imprensa moralista.
O artigo de opinião nascia torto e não precisava.
Bastava-lhe simplesmente a reflexão crítica do ponto de vista histórico-político ou, se isso não lhe bastasse, a alusão da qualidade inglória do projecto social comunista português até hoje contido pelos portugueses nas urnas.
Porque, se desejasse mesmo mostrar respeito e sensibilidade pelo “morto” ainda fresco, bastava-lhe então lembrar os 20% de votos nas primeiras eleições livres em que Mário Soares saiu vitorioso, e não beliscava minimamente as personagens em perda afectiva, as consciências honestas e os representantes desse ideário político que não singra no poder (o PCP continua a não ultrapassar a quota dos 10-12% nas Legislativas).
Vai-se lá saber por quê ou para quê, do seu carácter a prosa só conseguiu cumprir o lado que revela a tendência ideológica da publicação porque aquele que legitimaria qualquer tipo de juízo (a informação verificada e comprovativa), não só o “abandalhou“ como outorgou a sua própria sentença de índole difamatória («com contexto histórico ou sem contexto histórico, as acções do líder comunista não se recomendam»).
Relativiza e menospreza as evidências dos milhares de pessoas que momentos antes se concentravam aos milhares na rua e no cortejo fúnebre («a maioria dos portugueses que têm o hábito de lhe elogiar a coerência»), como se não fosse uma “realidade de peso” e não merecesse qualquer análise.
Jornalisticamente falando, chega mesmo á falta de profissionalismo quando subtilmente roça a depreciação dos sentimentos implicados e que o bom-senso faria qualquer um coibir-se de comentar para encenação escrita.
Noutro ângulo - o crucial e mais interessante - o editorial decide ignorar a realidade histórica e as convulsões humanas dos movimentos expontâneos e organizados entre os anos 40 e 70 em Portugal e no mundo (Bloco de Leste, NATO, Pacto de Varsóvia, África quase inteira colonizada, Guerra Fria, uma Europa desejosa no projecto inter-nações, etc.) e perde a oportunidade do raciocínio político pertinente.
Vai-se lá saber por quê ou para quê, ao exercício intelectual complexo dos movimentos de massas, organizações sociais e corporativas numa época minada por ditaduras (Espanha, Chile, Brasil, Portugal, Itália, etc.) sobrepõe um “sentimento” irracional e personalizado que não chegamos a perceber se é teima, preconceito político ou ignorância histórica («o apoio activo ás políticas soviéticas que provocaram a morte de milhares de pessoas»).
Álvaro Cunhal não era nenhum santo mas também não era um “disfarçado” impulsionador de atrozes iniquidades mundiais.
Matámos menos almas durante a Guerra Colonial em África?
Quantos americanos e vietnamitas não se foram durante todos aqueles anos?
No velho conflito Israel-Palestina quantos mais árabes ainda estão por “ceifar“?
O editorial escamoteou as circunstâncias políticas da Revolução dos Cravos e da queda de Salazar para fazer parecer Álvaro Cunhal uma coisa que na realidade não é. Se houve processo revolucionário mais “limpo” e humanista foi com certeza o nosso e, sem dúvida, também graças a este político.
A seu tempo, a história acabará por denunciar quem foram os prevaricadores e em que lados estavam.
Vai-se lá saber por quê ou para quê, os actores do texto chegam a fazer-se zeladores dos próprios comunistas, extravasando o desabafo de que o líder comunista teria «executado uma implacável conquista do poder no interior do PCP».
Não temos neste momento o CDS “á nora” e tudo graças á descaracterização doutrinária de Paulo Portas quando tomou a sua direcção?
A seu tempo, O PCP decidirá que rumos ideológicos pretende firmar e que referências histórias deseja guardar para sua inspiração - a revista que não se preocupe - e os militantes comunistas continuarão a dar destaque a quem entenderem de direito legítimo.
Espremendo bem a prosa... um interesse puramente difamatório?

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Editorial: Artigo jornalístico de fundo, geralmente sobre um tema da actualidade, que costuma aparecer sem assinatura e que reflecte a orientação da publicação.
Proémio: Parte inicial de uma obra onde se expõe o argumento, os fins da obra e o modo de tratar o assunto.
Moralismo: Excesso de preocupações morais.