terça-feira, maio 10, 2005

Basta voar até aos trópicos escaldantes, desérticos e fantasiarem uma corrida em grupo e em pelota ostensiva e descarada...

Este jovem réu que não tem nada a haver com cárteis de droga e tem suscitado o interesse da imprensa diária (como o caso dos pilotos aéreos) conheço-o tão bem quanto mal. Tão bem quanto "o charro" que o levou a este momento tão difícil e desconcertante, e tão mal quanto o conhecimento pueril e (des)conhecido dos tempos de curso e associativismo do MECLA (Movimento Estudantil Contra a Lei de Acesso) que se ocasionaram por acaso na mesma escola em Lisboa e no mesmo tempo de "crescimento contestatário".
À imagem da nossa lei penal, a acusação a Ivo Ferreira não se trata de um crime. Talvez de "comportamento marginal", dado que o consumo de haxixe habita a lista das socialidades irreverentes e mal toleradas, mas de um crime propriamente dito (crime = ofensa perigosa à sociedade) não se trata.
Estava o rapaz em casa e ambientado à sua maneira ocidental (signifique isto o que cada um quiser), quando lhe entram porta adentro umas figuras mestiças e fardadas à procura do que já sabiam encontrar e, de antemão, onde sabiam estar inclusivé a aguardá-los.
Agora, imaginem-se vocês estirados no sofá bebendo um bom conhaque aquecido previamente num balão escaldado, com o obsceno cohiba 16 entre anelares e apreciando o bambolear exibicionista de uma companhia jovem e afoita...
Pronto, pronto, eu sei que é um lugar-comum demasiado vulgar, pronto...
Então imaginem-se vocês estirados no sofá na companhia de outros mais e visionando - por curiosidade - antigos celulóides de propaganda política franco-nazi... ou, se preferirem, porque não "voar" até trópicos escaldantes, desérticos e fantasiarem uma corrida em grupo e em pelota ostensiva e descarada...
Três coisas se sugerem de imediato em qualquer um destes contextos: o comportamento público, o comportamento em privado e as regras sociais (gerais) da sua conduta considerada "correcta" e bem aceite.
Em Portugal, o consumo de drogas leves só é passível de ser criminalizado se se tratar de quantidades suficientes para o tráfico de estupefacientes. Ou seja, um charro é tolerado.
Mas mesmo quando cá se fumava haxixe às escondidas, havia instituída a liberdade da reunião privada e, muito importante, a liberdade de se fazer entre as paredes da nossa própria casa o que se quisesse, desde que a expressão dessa acção não alcançasse a esfera pública.
Já no Dubai, e ao que parece, consideram-se estes costumes de "suspeição criminosa", mesmo praticados no domínio privado.
Não é que não interesse, mas não é importante discutir a malha complexa das nacionalidades pelo mundo fora no que toca às suas regras cívicas, morais e (i)legitimamente passíveis de constituirem figuras-crimes.
Povos ou sociedades mais desenvolvidas são todos produto do mesmo: séculos sedimentados de poeira da história social, religiosa e cultural de cada um no seu tempo.
Neste caso trata-se de droga e, até agora, o mesmo charro inofensivo que se fuma na discoteca ou se fumou há muito nas traseiras da escola ou do nosso bairro em Portugal - mas podíamos estar a falar, por exemplo, de nudez naturalista.
Imaginem quão perplexo e violento não seria para a minha família e outros tantos militantes, quando surpreendidos pelos jornais pela minha súbita clausura forçada numa prisão de delito comum e de expressão medieval, por motivos de prática nudista "criminosa"...
Outras três coisas se sugerem de imediato neste contexto: a liberdade cultural (e religiosa), a liberdade fundamental do direito individual e os direitos universais de qualquer homem em qualquer parte do mundo.
Considerando uma concepção comum e universal dos direitos e liberdades aqui sugeridos e implícitos, se houve algum crime (crime = ofensa perigosa), foi a leviandade com o réu expôs a sua dignidade e o seu valor fundamental de pessoa humana na passagem e estadia profissional por um país estrangeiro - à partida uma socialidade que não assegura a condição de total respeito e absoluto reconhecimento pela sua diversidade e diferença individual, cultural e moral.
A Ivo Ferreira de nada serve o artigo 2º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1), que agora está em terras estranhas e onde estranhas lhe são as Leis e as Gentes, mas suscita à lembrança o Art.29º (1.O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade).
Ao meu ex-colega resta-lhe apenas - e infelizmente - que o interesse diário da imprensa e a pressão da família importune o sossego diplomático das entidades estatais, promova esforços para a "reciprocidade embaixatriz" e consiga dar luz às "humanidades estrangeiras" e às honras de clemência possíveis no Direito Internacional Público (2) ou Privado (3).

(1) Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autónomo ou sujeito a alguma limitação de soberania.
(2) Conjunto de princípios que regram os direitos e deveres exteriores e as relações das pessoas jurídicas que fazem parte da comunidade internacional (...), assim como as regras comuns de protecção individual interna ou externa estabelecidades por acordos internacionais (1934).
(3) Conjunto de princípios que determinam os limites no espaço da competências legislativas dos Estados, quando há de aplicar-se a relações jurídicas que possam estar submetidas a mais de uma legislação (1931).