segunda-feira, abril 25, 2005

Passeando pelas brasas do Génesis

Preparo os dias da cinza. [1]
Os tempos sem sobressalto. [2]
A terra árida onde apenas o vento [3]
dispersa a inutilidade das ervas. [4]
Aguardo o silêncio fundo [5]
das vozes que não se ouvem. [6]
A sobra, a escuta inútil [7]
de uma alegria perdida. [8]

Agradeço os dias da cinza [9]
o tempo do coração inerte. [10]
Nele guarda-se o fogo [11]
que nem o desejo alcança. [12]
Espero no pó das brasas extintas [13]
o ressurgir de uma chama, [14]
escondida e de novo acesa [15]
no mais frio dos dias da cinza. [16]


Uma bela metáfora... bem escrita e poeticamente limpa.
Do ponto de vista "antropológico" e culturalmente falando... bastante interessante!
Uma pequenina poesia quase perfeita...
Um imaginário à luz do universo cristão que invoca os ambientes do deserto despovoado e árido como o lugar ideal para o jejum social e a união com Deus - o desprendimento interior (solidão) e no exterior «das vozes extintas».
Aqui, o sujeito abstracto estrutura-se num ritmo que evolui claramente de um lugar para outro em crescendo e só num sentido (em vez de circular, logo ausentar-se e regressar de novo). E, nessa sucessão, percebe-se que no I grupo versado se preparam os vários sujeitos equivalentes às acções do II grupo: [1]-[9]; [2]-[10]; [3]-[11]; [4]-[12]; [5]-[13]; [6]-[14]; [7]-[15]; [8]-[16].
Se trocarmos as voltas aos pares e casarmos os novos versos, reunimos um todo mais condolente da inspiração bíblica («Os homens são Pó e Cinzas»).

Pode-se imaginar um corpo narrativo eloquente e desenhado nas «cinzas» que, afinal, oferece outra alegria e reserva mais esperança no seu tempo qualitativo.

Preparo os dias da cinza
tempos sem sobressaltos inúteis
áridos mas dedicados à escuta
do silêncio fundo da alegria perdida.


Agradeço o tempo inerte do fogo
guardo no pó extinto das cinzas
o ressurgir das chamas escondidas
que de novo me alcançam
nos dias frios do desejo


Uma "espinha" hedonista com o mesmo código erudito, mas mais feliz e altruísta - porque mais humano na fatalidade da acção.
Permite-nos um tempo espiritual menos inglório (porque além de necessário é natural) e não menos sujeito à condição do alcance póstumo em detrimento de um tempo anterior cumprido.
É nesta dimensão que me perturbam os versos. No significante poético encurralado no I e II grupos (o Júbilo devoto e a Conversão aceite) e no absolutismo destes dois universos de desenvoltura (o antes e depois «das cinzas», o tempo «útil ou inútil» e o coração «alegre ou triste»), forçamente confinados aos valores positivos/negativos e na boa/má correspondência, como tal, merecedora ou não do descanso nas «cinzas».
Porque não um imaginário livre do juízo de valor intrínseco, ao contrário do acto dividido que pressupõe uma evolução qualitativa e serve para se justificar a si próprio?
Como podiam estes versos ser mais generosos, se neles urge a expiação pecaminosa?
Não, não podem.

O Poeta faz juz à sua vulnerabilidade religiosa e expõe-se, subterrâneo, à violência do acto de contrição. Oferece-se em fé ao carpir do "violado" e no intuito de alcançar a poética divina do seu tempo mortal de peregrino e imortal de cristão.
Se eu não soubesse da condição espiritual do Poeta (sugerida que está na legenda inicial), podia interpretar nesta poesia a linguagem simbólica da expressão realista do "Homem Novo" (sem abstrações sobrenaturais), que consegue revelar a mesma intensidade de sentimento na sua existência estética aliada ao pensamento evolucionista e isenta da emancipação individual projectada no "servilismo" ao Espírito Santo.
Lembrar-me-ia de Thomas Mann,

«A nossa alegria diante dum sistema metafísico, a nossa satisfação na presença de uma construção do pensamento, em que a organização espiritual do Mundo se mostra num conjunto lógico, coerente e harmonioso, tudo depende sempre e eminentemente da estética; têm a mesma origem que o prazer, que a alta satisfação, sempre serena afinal, que a actividade artística nos que proporciona quando cria a ordem e a forma que nos permite abranger com a vista o caos da vida, dando-lhe transparência»,

porque o espanto poético de www.passearotempo.blogspot.com (no seu primordial, sobre a passagem espiritual do homem na vida) não me acusaria nunca a chancela mística, implícita e relacionada com o livro do Genesis.
Neste belo poema, une-nos a profundidade romântica do "ser", mas separa-me do Poeta o seu mapa filosófico e submisso às «cinzas».
Separam-nos os códigos da passagem humana e as metas do homem realizado no mundo idealista.
Para mim só existe um domínio existencial e vivificado e, consequentemente, um solo corpo narrativo em crescendo vivo...
Para o www.passearotempo.blogspot.com, existe alguém que se martiriza penosamente entre a penitência interior exigida pelas «cinzas», e a sublimação exterior no sentido da geografia redentora e divina... da união com algo que lhe é exterior e transcendente.
A cristandade assegurou-se que a morte, esse momento de vida "sumida", fosse um tempo de sentimento triste por directamente associado à perda de algo, neste caso a vida, mas agrega-lhe uma condicionante muito particular.
Acrescenta e destingue, que esse momento sentimental não tem - nem pode ter - a nobreza de valor humano se desprovido da avaliação da vida pecaminosa anterior.
Ou seja, a morte é triste.
Não só por perdemos a participação e presença na nossa vida daquele que "vai", mas principalmente porque essa entidade afectiva pode vir a "chumbar" no Tribunal dos Fiéis e na Instituição dos Penitentes.
Assim, infeliz não é só quem morre.

É também quem, ainda vivo, não se purifica e deambula espiritualmente-morto às portas da Presidência da Quaresma: «vivo penarás em oração» para quando morreres «voltares em pó à terra donde foste levado também em pó».
Aqui, à beira do meu amigo Poeta, desejo afectuosamente que, quando "sumido da vida" e sem o «tempo útil» da redenção, se passeie feliz na mesma.
Sem sobressaltos e, sobretudo, sereno no silêncio defunto, mesmo sabendo-o escondido no escolho da devoção e feito do «pó árido» dos penitentes dispersos pelos «dias frios e inertes do deserto» do pecado.
Se passeie, sobretudo, na poesia... onde os credos da vida feita suplantam «as sobras» da sua insignificância.
Mas, o que aqui é deveras importante, não é a minha suspeita sobre a inspiração do Poeta, mas o belo poema que me recorda um amigo espiritual que há-de sempre insurgir-se sobre a esterilidade da sua temporalidade vivificada.
Uma pequenina poesia quase perfeita!

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

A metáfora da cinza pode ter várias conotações, entre as quais se pode encontrar a da morte física. Mas não é o caso. No poema, tem o sentido da travessia do deserto (também um sentido bíblico), o tempo da busca interior, da pausa necessária ao auto-conhecimento, do parar com todos os ruídos do exterior e ouvir a voz interna. Implica, talvez, um conceito de morte, mas apenas da morte de alguma parte (psicológica) menos útil. Afinal, para haver mudança há-de haver sempre algo que que deixa. Este tempo da travessia, é um tempo de profunda reflexão e de trabalho interior, e solitário. Mas não «des-esperançoso». Contêm a certeza do renascimento e da volta à vida, com mais riqueza de espírito, sabedoria, esperança e alegria. Sem pecado, nem culpa pelo passado.
: )*

19:25  

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