A "cátedra" irritante do conhecimento adquirido e firmado
(Cátedra: designação para a cadeira do bispo na catedral onde ele fala ao povo e da sua doutrina)
Invocar o trono da "cátedra" como condição sine qua non para a reflexão de uma determinada temática, na medida em que legitima a multiplicidade singular da sua conversação, é impertinência, senão preconceito disfarçado.
Sugerir que temas, em particular quando se trata de emaranhados novelos de subjectividades (chamemos-lhes Pi, em homenagem à famosa constante numérica), se possam desvalorizar pela ausência da "dita cuja", e por isso arriscarem-se a constituir ilações gratuitas, é leviano ou inteligência desonesta.
É diplomaticamente dar a entender que, para si e por ora, "está tudo dito"(!). E, para o outro, traduz-se numa iniciativa filosofante esgotada à nascença pela relativização do seu estatuto de expoência e infalibilidade.
Por que razão não se pode aliar a vastidão e complexidade de realidades aparentemente intangíveis (Pi) ao doutrinarismo salutar da "cátedra"? Reconhecer, ainda assim, a idoneidade e sofisticação profissional dos representantes de Pi? Porquê, se Ela conceptualmente exorta o fértil horizonte do conhecimento e deseja-se o lugar humilde para seu testemunho?
Assegurar a tradição (no que significa o pensamento memorizado na prática) de um saber não passa também pela comunicação crítica do seu valor? Além de escrito, falado e comunicado?
A anticrítica da adjectivação redutora
A variável da simplificação é amiga do Todo imediato mas não das Partes também importantes. Talvez seja produtiva na praticabilidade e no exercício, na necessidade de roubar tempo ao próprio tempo das coisas, mas é indubitavelmente inimiga do aprofundamento e da qualidade natural de complexo do Saber.
A urgência nos dias de hoje em assimiliar e rentabilizar a informação atribui a Pi a característica de "complicado" em si e um conhecimento que não oferece explicações satisfatórias para o que dele se observa.
E, se não tivermos consciente um modelo empírico que nos permite cruzar as suas várias dimensões e ainda assim acharmos importante considerar Pi, resta-nos um suspeito pedantismo.
São as realidades complexas (Pi) que não dominamos (domesticamos) na vida e que não instrumentalizamos em sabedoria corrente, que nos catapultam para a comunicação artificial dos conteúdos ou para a expressão pessoal pretensiosa. Ou seja, o pedantismo: a vaidade do que não conhecemos na complexidade mas precisamos e, como tal, exibimos simples.
A perplexidade inusitada a Pi
O erário idealista humano é, por excelência, ávido de informação e os homens que se sentam na "cátedra", quando são demasiado ambiciosos para a concretização do saber, muitas vezes reduzem-se a alegorias populares e místicas da intelectualidade filósofa.
Porque os valores modernos se sobrepõem à cultura civilizacional e buscam imperativamente a produtividade absoluta, entendeu-se o Homem deste século instintivamente avesso e indisponível à qualidade morosa da Complexidade (Pi).
Como transformar em valor de mercadoria um facto misterioso (Pi) que nos deixa atónitos e impotentes perante a sua ruptura com os nossos raciocínios automáticos?
Quando há o reconhecimento de uma realidade em que nos movemos que comporta elementos desconhecidos (Pi) que não esperávamos e existe a dificuldade de os compreendermos no contexto que temos desse mesmo momento, dá-se a perplexidade fatal e, das duas, uma: ou aceitamos o desafio do estudo e da exploração, ou desvalorizamos a sua importância (não porque não a reconhecemos mas porque não nos parece lucrosa no imediato).
Abordar a complexidade de um Saber é analisar o conjunto das relações e processos de desenvolvimento inerentes, dar visibilidade às dificuldades da sua leitura e interpretação, e, mais importante que tudo, tentar transformar a sua realidade "difícil" na simplicidade dos conhecimentos já adquiridos e assimilados.
A diferença entre Pi e a "cátedra" irritante
Lidar de maneira satisfatória com o quotidiano exequível é mais do que o automatismo das fórmulas e regras decoradas para nos organizarmos no tempo prático.
O sucesso do amanhã está em saber aplicar e transformar a razão sustentada do que se aprendeu ontem, no valor cultural dos actos, na diferença que revelam em cada um de nós e entre si, e, fundamentalmente, ter a noção de que a práxis é o primeiro passo mas não o único. É nestes entretantos que a complexidade de Pi se vinga e a "cátedra" se engasga.
Analisar e comunicar bem deviam, a priori, exigir o conhecimento dos seus instrumentos de comunicação - neste caso a palavra.
Porque é na experiência vivificada das realidades que se invocam que o exercício do saber ultrapassa o pedantismo e revela a real capacidade de compreender os seus contextos e dominar a complexidade (Pi) na sua amplitude.
O pedantismo - um saber inócuo e presente em todos nós - está directamente associado à valorização pessoal e social da palavra, em detrimento do seu próprio significado e do objecto que ela representa. E, infelizmente, o conhecimento do facto quantificável e experimentável tem servido mais para as disputas e vaidades do homem, do que propriamente para o seu virtuosismo.
Preocupamo-nos mais em cuidar das opiniões dos outros e do saber alheio, do que em torná-lo nosso: «Se [o saber] não modifica nem melhora o estado de perfeição, fora certamente preferível não adquirí-lo. Melhor seria não ter aprendido nada» (Michel Montaigne, 1580)
A) O texto presente serve uma correspondência pessoal com outro bloguista a propósito de "Estes fartos amores..." e, como há informação omissa, o mais certo é não perceberem patavina da sua finalidade... mas, como calculam, isso não tem importância nenhuma...
B) No último post distanciei em "séculos" os inícios da Psicologia como disciplina de conhecimento, o que deveria ser em "anos". Uma calinada que logo os meus amigos me lembraram. Mea culpa!
1 Comments:
Pois, quando falei que o homem (Júlio Machado Vaz) me irrita porque fala de cátedra era, nas tuas próprias palavras, porque "O pedantismo - um saber inócuo e presente em todos nós - está directamente associado à valorização pessoal e social da palavra" É mesmo isso que eu acho do tipo. Um palavroso. E um chato. Desculpa a franqueza. E tás perdoada quanto ao lapso. Quanto à questão do Pi (complexidade) é outra conversa, a ter à frente de um chá, com um gato a rondar. Beijos Tim
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