terça-feira, abril 12, 2005

Um regresso deveras penoso...

1 - Quando começei esta prosa não sabia se a havia de encabeçar por "Ás paredes me confesso" ou "Em minha defesa me confesso", porque, no mais fundo dos meus fundos, não me era ainda claro se estava perante a inevitável e distinta oportunidade de acabar esta "farsa" (e em que não me vexaria ou os outros que de alguma forma foram cúmplices) ou perante a única possível para esclarecer de uma vez por todas o imaginário que eu pretendera para o bocadosdegente.blogspot.com.
A diferença era que enquanto eu o fizesses "às paredes" estava claramente a menosprezar a determinação do próprio acto confessionário e, se o fizesse centrado na minha exclusiva pessoa, mais que justificar-me, estava á priori a reconhecer o pecado e por consequência rogar pela sua absolvição.
De qualquer maneira, esta aparente contrição não chegaria para decidir o meu crucial dilema:

- deveria revelar a minha "verdadeira" individualidade (no que me é genuinamente próprio) aos que desse lado não me conhecem ou, simplesmente, assumi-la "ao natural" e em jeito escrito, significando isto Nada em concreto porque o Tudo, como se viu até agora, pressupõe-se afinal que não faz parte de mim, logo mortalmente esvaziado.
- confessar a minha humilde «condição de sapateiro» (nas palavras de minha mãe) ou com unhas e dentes defender o meu ideário espiritualista e de qualquer comum mortal que, como eu, aspira a uma existência mais literata.


2 - Nestas duas últimas semanas o que deviam ter sido só férias forçadas por motivos de ordem menor - como obras de recuperação e manutenção lá de casa - revelaram-se 15 dias perplexos por labores personalistas bem mais escalavrados e (des)estruturantes.
Agora, o exílio bloguista causado pelo "apagão" intelectual e pela crítica silenciada já não não me parece tão sofrível. Reconheço, aliás, que foi disciplinarmente revelador porque, desta vez, pude concentrar-me única e exclusivamente na organização da leitura e consequente escrita alucinante que vem sempre por arrasto.
A insegurança rápido se fez segura e a impossibilidade de aceder á tecnologia para edição não impediu nem o fervilhar das idéias que a fertilidade dos dias encerra, nem o deleite maior e que tão poucas vezes se ocasiona: a escrita madrugadora das noites extendidas pela leitura.
Entre os tempos lidos e os tempos escritos assegurava que a "casa não fosse abaixo" e tratava das ressacas da amistad y sus relaciones que a profissão egoísta secundariza. Neste campo, e para minha surpresa, "saíu-me o tiro pela culatra" ao descobrir que aos 34 anos dormir nas casas dos amigos já não é razão para reavivar festivamente as intimidades e muito menos para as cumplicidades "de alex" dos solteiros e sózinhos.
É que nos entretantos dos meus 34 a última coisa que apetece aos outros mais velhos, que já andam à porta dos quarentas e muitos, é acamparem nostalgias às 4.00h da manhã no chão da sala e comungarem os entretantos da idade que se reduzem á fatal e desoladorada solidão das suas vidas.
«Não é um drama, todos lá chegamos um dia...» convenci-me para me custar menos a aposentadoria deles e a minha hospedagem provisória.
Salvaram-me da condição humana ambígua algumas noites pardas com um grupo mais restricto e diletante de comunhões filósofas á mesa.
Assim imaginava eu que não seriam tão maus estes dias: pela manhã entregava o corpo da leitura à esplanada primaveril; à tarde escrevinhava as idéias efervescentes no colo da "Paixão Segundo São Mateus" bachiana e á noite degustava á mesa as excelentes e criativas amizades que tanto saudava.

3 - Parva fui eu que achei por bem terminar "á grande e á francesa" e dedicar parte deste tempo á paternidade criativa (e sempre exemplar), esquecendo-me porém que junto com ela vem sempre a maternidade incondicional da crítica tendencialmente prática e simplista.
Esses pares de dias que lhes ofereci com honrarias de primeira, já que estava na sua dependência total pela ausência do automóvel que não havia para me levar longe dos subúrbios, tão depressa fizeram juz aos propósitos filiais como frustraram toda e qualquer iniciativa nostálgica do regresso ás origens.
Mal tinha passado a primeira noite a discutir entusiasmada o abstracionismo moderno com meu pai e logo a manhã insistia desesperada no retorno a casa com desculpas mal amanhadas de uns quaisquer imperativos profissionais.
É que entre cafés e cafézinhos, filmes e filminhos, inocentemente a minha mãe conseguiu envergonhar-me (esperem... ainda não lhe encontrei o termo), digamos "suicidar-me" emocionalmente o embrulho empírico. E por mais que a minha trivialidade a tente convencer de que o conhecimento reunido pela experiência da prática (ou pela prática da experiência???) pode concretizar algum conteúdo passível de se organizar e raciocionar em idéia ou fundamento, não há nada a fazer.
Para ela, pertenço inexoravelmente ao lugar-comum dos "indiferenciados" e, com requintes de malvadez e involuntária perversão, ainda se deu ao trabalho de disfarçar a banalidade que entendia para a minha condição pessoal e lembrar que eu podia e devia continuar a usar a importante biblioteca deles, onde, por exemplo, aí sim, encontraria a poesia na sua verdadeira dimensão e «feita pelos que a sabem fazer e dar a entender».
O meu filantropo, a minha referência universal humanista - o meu pai - bem a admoestava e tentava interessar para o registo poético do meu hobby bloguista que não ficava a perder nunca porque, no mínimo e mesmo antes de «cair em mim», nada seria infortuito dado que me obrigava a ler e explorar melhor a literatura do género:
- Deixa lá a miúda Antonieta. Não tem nada a perder...
- Mas achas que ela percebe alguma coisa do que está para ali a escrever? Não vês que são só palavras caras... -
e olhava para mim como se eu tivesse enganado alguém.
- A poesia é assim mesmo... Põe a genial Augustina-Bessa Luís a poetizar e vais ver... Antonieta, que raio! Até parece que tu não conheces o discurso poético!
- Mas achas natural que ela fale e escreva desta maneira? Achas natural nela?
- Se for a sua pretensão, porque não?
Em meia hora e por causa de um mail de resposta a propósito de uma nova tradução de um amigo sobre um belíssimo poema de W. B. Yeats apercebi-me que para Antonieta o bocadosdegente.blogspot.com é um verdadeiro drama...
Ao fim de seis míseros meses de blog, este "senhor digital" trata-se de uma séria tragédia shakesperiana. Uma "droga doutrinária" de não sei bem o quê que, em dias como hoje, á minha mãe incomodam e a mim satisfazem o isolamento e a solidão que andam casadas com a independência e autonomia modernas. Uma "fixação" que, infelizmente, se estima solteira e sem os vínculos sociais "tradicionais" que dão uniões, filhos, netos e toda uma estrutura onde os progenitores possam ainda participar da vida dos que pariram.
Para mim... um regresso deveras penoso porque se havia coisa que tinha a certeza era que enquanto o bocadosdegente.blogspot.com ficasse alheado de meus pais, o tempo só me poderia ajudar: dar-me-ia tempo para com o tempo da minha incompetência se desvalorizar ou ganhar merecidamente valor, mesmo que menor, e, sobretudo, aliviar-me desse cunho e herança de ambos que, quando cru e estéril, é o peso da vida apoética.
É para mim a fuga possível à insignificância da minha existência e à vulgaridade da minha pessoa, mas não é para minha mãe o que Ruy Belo - que ela tanto conhece e aprecia - escreveu e tão simplesmente serve a escrita que se basta a si mesmo: «O poema é um objecto, uma coisa do mundo exterior. Uma vez terminado passa a ter existência própria (...). É um corpo vivo, e são exigências de autonomia, que asseguram e delimitam a sua fundamental unidade».