Um casal é como uma balança, ora tomba para aqui, ora tomba para ali…
Foi bom companheiro e parecia particularmente dotado para a aceitação e compreensão das incoerências femininas, característica pouco comum no seu género.
Se era por concessão ou por concordância, foi coisa que nunca tive bem a certeza, o que interessa é que quando foi preciso, ou melhor, lhe foi imposto sem direito a opinião, ele alinhava sem que se lhe sentisse a crítica ou até a resignação que disfarçava tão habilmente.
Destacava-se uma paciência invulgar que amassada com ternura e levada nos braços a forno bem quente e a repousar o tempo que precisasse, era quentura fértil que considerava melhor depois os caprichos. Um magnífico bolo inglês recheado de todos os frutos secos e generoso o bastante de frutas doces e coloridas para regalo dos olhos.
Dessas virtudes já não posso eu vangloriar-me e quem disse que pertencia à mulher a criatividade na gestão complexa da "diferença" enganou-se.
Por exemplo, a ele sempre se chegaram os miúdos nos momentos mais eleitoralistas da maternidade lá de casa.
- Quem é que vem comigo para a esplanada?
Silêncio no quarto, os cães já quase a deitarem-me ao chão na excitação da rua que se adivinhava e o meu homem enterrado no sofá absorvido por uma viagem de glamour nos Champs Élysées de Paris pela altura do Outono.
- Vamos à esplanada comer madalenas de chocolate?
Nada. Levo-me à porta do quarto dos miúdos e digo-lhes mais uma vez:
- O pai vai lá ter depois de ver televisão…
- Ficamos com o pai! – respondiam sem sequer olhar para mim ou preocuparem-se com o possível sentimento de rejeição que pudesse sentir.
- Okay! Não saímos os três há duas semanas porque que não pára de chover. Okay meninos!
Se fosse ele já estavam a trepar-lhe pernas acima e a rogar-lhe que não ficasse chateado porque era deveras importante o que estavam a fazer ou então:
- Vamos pai!!!!! Podemos levar os cães a correr no parque?
Quem sai aos seus não degenera e para o pagode estão sempre disponíveis a gastar a energia da infância ávida por maluquices.
De imediato a bagunça instalava-se porque sempre que aqueles macacos iam à rua sobrava para mim.
Saíam os três loucos pela escada abaixo estremecendo tudo o que é quadro e quadrinho, e na rua - não se dando por satisfeitos - corriam desalmados os cinco de tal maneira que ao longe não se percebia o que era cão e o que era gente.
Eu, divertida à janela, mirava-os doidos aos pulos pela rua abaixo a levar tudo à frente.
As velhotas davam rodopios e saltavam às soleiras para não tropeçarem nos cães histéricos da correria, os pretos atiravam-se para cima dos carros próximos com medo deles (sem que eu perceba porquê se são cães meigos. Malucos, mas cães meigos...), os fregueses na mercearia baralhavam a fruta nos cestos tal era o susto que apanhavam de repente e outros mais que não conheço e receava sempre ver estatelados no chão, caírem de redondo por causa daqueles loucos que varriam o passeio e os demais que andavam no seu encalço.
Percebem agora? Ás vezes penso que em vez de duas tinha três crianças e dois cães, ou seja, uma carga de trabalhos que vocês nem imaginam.
Um dia, toldada pelo ciúme e inveja daquela alegria toda, chamei-o à casa de banho e disse-lhe para sua atenção:
- Meu amor, já que os miúdos te consideram o deus das folies bergére cá de casa e a paternidade perfeita para as suas fantasias, fica sabendo que hoje não saio deste banho em folhas de alfazema - que me devo faz muito tempo - enquanto não apanharem a lama e a relva toda que trouxeram de arrasto da rua e a que os cães têm agarrada às patas que a esta hora já deve estar a ganhar raízes no sofá.
Vi-lhe a boca semiaberta porque não teve tempo de falar e fechei-lhe a cortina do banho bem na fronte para afundar-me na água que me chamava quente e vaporosa.
Correrias, berros, mais correrias e uns latidos esquisitos foi só o que eu ouvi a seguir.
A porta da casa de banho fechou-se sozinha com a corrente de ar que aquilo tudo fazia e quedei-me serena e relaxada pela azulejaria branca embaciada de preguiça.
Hesito sempre na severidade. Não gosto da mãe coragem de Nabokov, poderosa e sem zangas porque sem defeitos. Esse papel deixo-o para a mãe biológica e ex-mulher dele. Sempre lhe disse: afago os teus filhos na cama e afago-te a ti também, mas a inquisição casadoira fá-la tu à tua maneira e não contes com a minha cumplicidade!
Depois de os miúdos nascerem, o patriarca foi recusado no leito quase por um ano. Castrado é o que se pode dizer, que mesmo a trepar às paredes ele não o faz "à mão" por nada deste mundo, abdicando estupidamente do seu próprio bem estar e alívio.
A ex-mulher demorou um ano a aceitar-se de novo no corpo deformado e escancarado por peles que não conhecia e adiposidades que muito menos sonhava.
Com humor, tentou convencê-la que podia ser melhor para o frio mas ela não se despia e ficava horrorizada só de se imaginar solta e, louca na cama, trepá-lo armada com um rabo gordo, peitos laços, pneus e papos, estrias..., tudo, no fundo, as verdadeiras chagas do amor e da dedicação que num plano carnal só estraga e sacrifica o feminino dócil e jovem.
Até a compreendo... qualquer grama mais que pressinta na minha (des)elegância conjuro logo a escondê-lo da visão masculina, como se ele não fosse naturalmente meu e me roubasse desenvoltura erótica, mas não há nada a fazer. Nós, estúpidas mulheres, não nos revemos fora dos modelos irreais e impossíveis das passarelles, nem à força da sapatada.
Como a compreendo...
Desgraçado... Castrado e a acordar durante a noite com a respiração que lhe faltava. Além de suprimido o sexo descompressor tinha ao lado a indiferença severa do sentimento complexado num corpo flácido, pesado e sem a expressão afectiva que se espera ter na cama a enrolar-se connosco.
Como o compreendo...
Na verdade não me é mais difícil de compreender as misérias dos outros que as minhas, mas as contradições ou teorias românticas da treta...
Correrias, berros, mais correrias e uns latidos esquisitos foi coisa que não durou muito. O que viria depois era a porta de casa a fechar-se pela última vez e a deixar-me sozinha entregue à dúvida e à certeza de que se há coisa que os homens prezam como intocável é a sua misteriosa e indefinida insatisfação. E os filhos, esses também não se esquecem!!!
Se um homem se sente posto de lado pela mãe-coragem de Nabokov, inferiorizada a sua dominância pela independência de uma amazona e a virilidade molestada pelo afecto introspectivo e autónomo feminino, então o que é que o seduz? O que é que ele quer?
Só se for a sua mãe imaculada, é o que resta...
Porque as mulheres, enquanto por cá andam, olham-nas convictos de que a sua individualidade se resume a eles e ao que com eles se gera imaculado.
Tudo, todas e inteiras para o sacrifício amoroso e a gula erótica dos companheiros.
Não os compreendo... e eles parecem também não perceber porquê.
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