Sexo-expresso (IX) ou o Sexo das formas
[Numa noite de Verão a Rainha dos Elfos apaixona-se por um mortal com cabeça de burro e também um trabalhador local que ensaiava no bosque uma comédia de teatro amador para apresentar no casamento do Duque de Atenas e a Rainha das Amazonas]
Bottom (Tecelão) - Porque terão corrido? Decerto imaginaram alguma maroteira para me meter medo.
Snout (Marceneiro) - Ó Bottom, estás mudado! Que vejo em tua cabeça?
Bottom - Que vedes? Vedes uma cabeça de burro, a vossa; não será isso?
Quince (Carpinteiro) - Deus te abençoe, Bottom! Deus te abençoe. Estás transformado!
Bottom - Compreendo a brincadeira. Querem fazer-me de asno, para eu me amedrontar, como se fosse possível semelhante coisa. Mas façam o que fizerem, não arredarei o pé daqui. Passarei de um lado para o outro, e pôr-me-ei a cantar, para que eles percebam que não estou com medo. O melro negro e catita de biquinho alaranjado, o tordo de voz bonita, o carricinho espantado...
Titânia (Rainha dos elfos) - Que anjo me desperta do meu leito de flores?
Bottom - O pardal, a cotovia, a rolinha, o tentilhão, o cuco a cantar de dia sem que os homens digam "Não", porque em verdade, quem se poria a raciocinar com um pássaro tão estúpido? Quem diria a um pássaro que ele mente, por mais que repita: "Cuco"?
Titânia - Canta outra vez, gentil mortal, te peço. Tua voz os ouvidos me enamora, como o teu corpo os olhos me arrebata. E de tal modo a tua formosura me enleva e me comove, que eu proclamo, sem mais desculpas procurar, que te amo.
Bottom - Quer parecer-me, senhora, que para tanto vos assiste razção muito minguada. No entanto, para dizer verdade, hoje em dia a razão e o amor quase não andam juntos. É pena que alguns vizinhos honestos não se esforcem para deixá-los amigos. Como vedes, também posso ser espirituoso, em se oferecendo ocasião.
Titânia - És tão sábio quando belo.
Bottom - Nem tanto assim; se eu tivesse espírito suficiente para sair deste bosque, teria tudo de o que necessito.
Titânia - Não ponhas noutra parte o coração; no bosque ficarás, quer queiras ou não. Um espírito eu sou, de voz sincera; verão perene em meu país impera, e amor te voto. Por tudo isso, vem; silfos belos vais ter como eu, também, que jóias te trarão do mar profundo, e te farão dormir sempre jucundo. Da mortal grosseria vou livrar-te e em espírito aéreo transformar-te. Traça! Mostarda! Flor-de-ervilha! Teia!
(...)
Excerto de "Sonho de uma Noite de Verão" de William Shakespear
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