quinta-feira, março 03, 2005

B'ora ao Bairro, Vicente?

Há quinze anos um reputado intelectual, crítico e aspirante a produtor cinematográfico elaborou com uma equipa, não menos reconhecida do seu meio, um projecto jornalístico que primasse pela factualidade transparente do conhecimento, pela informação isenta de pressões e a tolerância (ou a tão em moda multiculturalidade) á verdade das várias sociabilidades portuguesas.
Esta fábrica de ideias progrediu e instituíu uma "sindicância informativa" própria que hoje todos reconhecem com desenvoltura fértil e seriedade de mérito para a análise e reflexão da condição social portuguesa, mesmo sendo um projecto ciclicamente sujeito ás tonalidades políticas do seu universo editorial.
Á parte do seu contexto financeiro não menos difícil que o de outras publicações, é inegável que interna e externamente com as mudanças e exigências geracionais o "Público" tem hoje uma "vida feliz" e está para durar.
É um espelho fiel e quase rigoroso da realidade portuguesa (ainda que a sua velatura agrade umas vezes mais a uns, outras mais a outros), e como redacção menor do pulsar teórico nacional (no que significa de síntese forçada), reconheça-se-lhe honestamente a escrita limpa da dinâmica cidadã, política, empresarial, económica e até do seu próprio ciclo de directores (Vicente Jorge Silva, Nicolau Santos, Saarsfield Cabral, Nuno Pacheco como Director-Interino, José Manuel Fernandes, etc).
Assim se compreendem as contrariedades (contradições?) que em 15 anos, se assim o entendermos, podemos registar.
Uma delas, histórica pertença do anedotário nacional, é do seu primeiro director Vicente Jorge Silva.
Esta figura de craveira erudita que graças a alguma convivência pessoal asseguro-vos que nem com uma boa piela desleixa o seu sarcasmo "bordalense", há muitos anos desbocou-se na sua obrigatória pessoalidade omissa e imperativa á justeza da neutralidade.

Inconvenientemente firmou o injusto e redutor chavão que ainda hoje se 'caga em sentença' quando dá jeito criticar sem fundamentar ou desconsiderar desonestamente os mais novos.
O timoneiro a cargo de uma obra que ainda procurava conquistar um lugar ao sol na moderna Imprensa de referência até lá dominada pelo inovador "Expresso", e num acto pedante/elitista de ostentação de um ambiente intelectual que na sua génese será sempre paralelo á cultura standardizada, entendeu por "probatório" testemunho a redução "procaz" dos mais novos a:
- uma mão cheia de gente "inculta" e intelectualmente "tísica";
- "desirmanados" de todo e qualquer "sindicalismo produtivo";
- cidadãos "vagabundos" da modernidade";
- "estóicos" da cidadania "oportunista" do sistema;
- "primatas medíocres" da "vulgaridade funcional" da Europa e parte do Mundo desenvolvido;
- exército da "cultura do entrolho";
- a "GERAÇÃO RASCA"!!!!!!!!!;
Perante a caricatura retumbante e verve jocosa ao jeito do seu tão apreciado Rafael Bordalo Pinheiro, ocorreram-me na altura também verdadeiras inflamações fiéis ao tom e vocabulário do VJS, mas danar-me eu daquela pujança vocabular era-me na verdade insustentável.
Na altura a acutilância dos meus impropérios verbais não conseguia soletrar mais do que "estupor", "sacana", "filho da mãe", "canastrão", "convencido", "pedante", etc, e confesso que ainda hoje invejo os que com a pronúncia perfeita e no momento certo fazem do palavrão mais do que um vulgar desabafo de má-língua e ousam a expressão estética da natureza rude do humor.
Dava-me jeito sim (ai como me dava!!!) ter lido o que li até hoje, para lhe citar pispineta:
«Ao diabo os amadores de definições. Bem "esperto" aquele que possa dizer onde começa a caricatura, ou onde ela acaba.» A. Alexanders.
Feitas as contas, também eu, naquela altura, pertencia a essa «geração rasca», deambulando entre o Bairro Alto (onde o podemos ver tantas vezes), a faculdade e os hiatos do personalismo infértil e inócuo. O que não me "bestializou" nem impediu o desenvolvimento dessa consciência "patriótica-cultural-vivificante" (como soa mal, caramba!).
Hoje, produto do "rasca" e do "não rasca", do "Chico Fininho", do charro, do "Público", da impertinência de figuras como VJS, da seriedade do meu 1º escritor preferido por afinidade directa, da honestidade em geral dos jornalistas e jornais, etc, lembrei-me da "dita" que já não levo tão a peito.
Despertou-me a sua lembrança a particularidade de uma modesta colunazinha no suplemento "Leituras" do "Público" onde se dá o Óscar de Ouro a "Um Amor Feliz" de David-Mourão Ferreira.
Ora, fora os que eventualmente O estudam nos programas curriculares, os que há muito perderam o exemplar que tinham, os filhos da Esquerda e da intelectualidade de VJS, os que esbarraram com Ele por acaso,etc, sobejarão ainda assim muitos mais leitores e talvez "daqueles" que há 15 anos não liam ou viam sequer teatro.
Numa livraria algures na cidade do Porto, o "Equador" do mediático Miguel Sousa Tavares é preterido pela qualidade da ficção saída do prelo há 19 anos (1986).
Os títulos do escaparate não se ficam por aqui e firmam que valores e referências literárias consistentes são uma realidade do universo dos leitores portugueses:

"À espera no centeio" - J.D. Salinger; "Pensei que o meu pai era deus" - Paul Auster; "Sputnick, meu amor" - Haruki Murakami; "Portugal, hoje. O medo de existir" - José Gil; "As lições dos Mestres" - George Steiner; etc.
B'ora ao Bairro, Vicente?