sábado, fevereiro 19, 2005

O PSL deve estar muito aflito para me escrever em tão incaracterística, apartidária, impessoal, descarimbada e vulgar folha de resma do mais barato

Vinha da rua e da embirração ao gigantesco caixote verde do lixo que àquela hora escolhe sempre (ou alguém malévolo escolhe por ele) prostrar-se à porta e exigir que os velhos do prédio menos desenvoltos tentem em menos de um metro quadrado passar por entre a sua boca suja e mal-educada com os sacos das compras, as malas e o corpo cansado de ter feito vários metros por entre poias de cão, carros mal estacionados e outros tantos caixotes que foram expulsos do seu vão de escada.
A diferença é que enquanto os outros caixotes lançam-se à rua arejada e larga, o meu, o n.º 96 da Rua de Arroios, ao que parece, é poupado ao vexame público e deixado tímido e envergonhado entre a porta disfarçada e a calçada que está a um degrau.
No meu prédio, antes de fecharmos ou abrirmos a porta, temos primeiro que lhe pedir licença para chegarmos à fechadura e depois desculpa pelo apertão imposto e o safanão antipático de a fecharmos forte e bem feio nas suas ventas.
Ás tantas não sei se o mau feitor escolhe atazaná-lo nestas danças diárias (até à meia-noite da sua recolha) pela sua exagerada dimensão e cor verde garrafa que não condiz com a condição limpa que se lhe espera ou se é pura embirração com os vizinhos que nunca se esforçam por respeitá-lo nos seus deveres e dar-lhe com gosto e à hora certa a rua.
Ultrapassada a barreira imunda que é a entrada do n.º 96 transformada num digno banquete verde de congelados vazios gordurosos, fezes de gatos e cascas de batatas que nunca mais acabam, prova do (des)zelo (des)asseado dos meus vizinhos, espreito o correio matutino e dou de caras com um queixume do entristecido e incompreendido Pedro Santana Lopes que deve estar muito aflito para me escrever em tão incaracterística, apartidária, impessoal, descarimbada e vulgar folha de resma do mais barato que há para me pedir um favor e dar-lhe de barato o meu voto:

«SE NÃO COSTUMA VOTAR, LEIA ESTA CARTA.
Caro(a) Amigo(a)
Não pare de ler esta carta.
Se o fizer, fará o mesmo que o Presidente da República fez a Portugal, ao interromper um conjunto de medidas que beneficiavam os portugueses e as portuguesas.
Portugal precisa do seu voto para fazer justiça.
Só com o seu voto será possível prosseguir as políticas que favorecem os que menos ganham e que exigem mais dos que mais têm e mais recebem.
Você não costuma votar, e não é por acaso.
Afastou-se pelas mesmas razões que eles nos querem afastar.
E quem são eles?
Alguns poderosos a quem interessa que tudo fique na mesma.
Incluindo a velha maneira de fazer política.
Eles acham que eu sou de fora do sistema que eles querem manter. Já pensou bem nisso?
Provavelmente nós temos algo em comum: não nos demos bem com este sistema.
Tenho defeitos como todos os seres humanos, mas conhece algum político em Portugal que eles tratem tão mal como a mim?
Também o tratam mal a si? Já somos vários.
Ajude-me a fazer-lhes frente.
Desta vez, venha votar. É um favor que lhe peço!
Por todos nós,
Pedro Santana Lopes»


Chegada da rua, humilhada pelo caixote de lixo estacionado à porta que nem porteira ultrazelosa e depois de ultrapassada a aberração do banquete gorduroso, agrobiológico e fecal dos meus vizinhos, sou confrontada com o desabafo autovitimizante do PSL que descubro «ter algo em comum» numa espécie de psicanálise de moldes domésticos.
O PSL se aqui viesse em campanha com certeza não contava com verdade tão verdadeira.
É que também como ele a minha vizinha é um «ser humano com defeitos» e há 50 anos que a mulherzinha alimenta uma modesta colónia de pombos nas minhas traseiras por uma janelinha que não tem qualquer poiso a não ser as minhas janelonas ao lado.
A passarada vem todas as santas refeições ao embeirado e envidraçado do meu «Portugal dar o seu voto e fazer justiça»: caga-me o estendal, a roupa, as vidraças e tudo o mais que ficar à mercê daquela esvoaçada toda.
Eu que sou tradicionalmente de esquerda até parei um bocadinho no «seu voto que permitiria prosseguir as políticas que favorecem os que menos ganham» e pensei: se calhar o PSL tem razão.
Se o raio da mulher tivesse uma reforma maior podia ir ao médico e tratar a sua hipertrofia. E, tratada convenientemente, já não havia como recusar-se a fazer a rua e o jardim porque as suas pernas e coração eram fortes para deixar a pombalhada toda lá fora, em vez de quase dentro da minha casa.
Ou então iria votar sobre as pernas novas para «exigir mais dos que mais têm e mais recebem» e pedir a construção de um Parque Natural de Protecção e Manutenção de toda a bicharada com duas e quatro patas que caga meia-cidade e ninguém se parece importar, incluindo «alguns poderosos a quem devia interessar mas fica tudo na mesma».
Este interlúdio aterrador de que o PSL podia revelar alguma lucidez não se ficou por aqui e mais me lembrei para me atazanar as certezas de que o político não faz juz às minhas cores partidárias.
Na altura também eu pensei que a minha arma seria «a velha maneira de fazer política», ou seja, confrontar educadamente o prevaricador de forma a dar-lhe a ideia de que o poder da sabedoria era seu e a solução só podia também sair de si.
Com a retórica bem estudada e um jeito deliberadamente subjugado bati eu um dia à porta da vizinha apelando à inquestionável experiência com a passarada e precioso conhecimento urbano-imundo da mesma:
- Ó vizinha, diga-me lá, como é que a senhora faz quando se levanta numa manhã radiosa e de cigarro numa mão e café fresco na outra se abeira da janela para sentir os primeiros raios de sol na pele e lhe sai logo na tola uma boa duma caca ovípera?
A mulherzinha dissertou longamente sobre os que «a acompanham desde criança (a pombalhada toda) e ainda têm com ela cumplicidades quasi-humanas de valor incalculável nesta cidade desumana».
No fim, já farta de estar em pé e em respeitoso sentido a uma matrafona que só conhece camisas de noite com grandes nódoas, disse-me com os olhos muito abertos e brilhantes, como se de poção milagrosa se tratasse:
- A vizinha só tem de 20 em 20 centímetros de corda pendurar sacos plásticos.
- Sacos plásticos??????????
- Sim, que os pequeninos assustam-se muito. E tente usar plástico leve e colorido que é para à mínima aragem de ar os sacos mexerem-se e eles apanharem um susto. Percebeu?

Agradeci, recolhi-me estúpida por ter perdido o meu tempo e a minha reserva natural à convivência inter-condomínica e fui para dentro a sentir o que só hoje o PSL me aclarou: «provavelmente nós temos algo em comum: não nos demos bem com este sistema».
Também como este político «eles acham que eu sou de fora do sistema que eles querem manter» o que não é verdade, porque cheguei mesmo a estar em frente do tal milho roxo que se dá aos pombos para os matar e não tive a coragem para o fazer.
«Já pensou bem nisso?» E afinal de contas «não os trato tão mal como eles a mim», era o que eu devia ter dito à vizinha e não disse, nem nada até hoje fiz.
Ora já chega! Não tenho nada a ver com este senhor político que me toma por ignorante e analfabeta nestas coisas do voto que dou e depois não cobro!
«Costumo votar, e não é por acaso», senhor PSL.
É por saber que me assiste esta coisa democrática dos eleitos que só podem obrigar-se a defender-me quando para lá voam.
Se «os tratam mal e até somos vários» não podem por isso negligentemente dizer que se trata de uma conspiração «de outros» e «afastarem-se por razões» menos claras do que as do poleiro tão anteriormente cobiçado e agora levianamente abandonado.
Nesta missiva chorosa do PSL (é de notar que a carta é só do PSL e não do PSD) já estou também a ver a despedida aquando da sua derrota a 20 de Fevereiro:

«Caros(as) Amigos(as)
Não pare de ler esta carta se quiser saber porque me afastei.
Se o fizer, fará o mesmo que o Presidente da República um dia me fez a mim e a Portugal, ao interromper um conjunto de homens e medidas para o futuro que vos beneficiava só a vocês, homens e mulheres deste país.
Afasto-me, não pelos defeitos comuns que tenho, nem pelas razões com que deixo todos os projectos a meio, mas porque ELES (!!!!) me quiseram afastar.
E quem são ELES?
ESSES que os portugueses e as portuguesas não me ajudaram a fazer frente?
Não, não pare de ler esta carta!!!!!!!!!!
Se quiser mesmo saber a verdade que a Comunicação Social não mostra e Portugal merece saber, não pare de ler esta carta!!!!!!!!!!!
Não me lê pelas mesmas razões que ELES me quiserem afastar?
OS poderosos estão mesmo à espera que não me leia e tudo fique na mesma!!!!!!!!
É a velha maneira de ELES fazerem política!!!!!!!!!!!
É um favor que lhe peço!!!!!
Pois muito bem! Desta vez pedi-lhe o favor de vir votar. Da próxima já não lho peço, nem por todos nós!
Pedro Santana Lopes»